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domingo, 28 de novembro de 2010

Dias singulares de um antigo pomar


Este é um texto simples sobre alguns poucos dias singulares. Talvez só poucas pessoas saibam do que falo, ou talvez, este texto, também encontre todos os que um dia brincaram com primos num distante pomar da infância. E que em dias singulares, num reencontro muito tempo depois, tentam reacertar os ponteiros daquela antiga brincadeira.

Reencontro as minhas próprias histórias de pomar, com o antigo pé de nozes, pé de nona, de carambola, goiabeiras, amorinha, o canavial do vizinho, os pinheiros de natal e tantas outras árvores que nos serviram de casa, esconderijo, de fraio! e de fantasia. Agora, nestes dias valiosos, onde a sinceridade quer sair crua, mas amorosa e cuidadosa ao mesmo tempo, meu antigo pomar reaparece como num sonho.

Reencontro primos, amigos com o mesmo avô, correndo descalços pulando as ondulações do gramado, se desviando dos galhos mais baixos, saltando os formigueiros. Para depois andar com cara de cansaço, braços largados e ofegantes, cabelo suado, com o pé verde na soleira da porta, querendo água.

Coisa de primo brincar assim, despreocupado, sobe o morro e a árvore, anda pelo capim com o joelho ralado, às vezes dá um Ai! com espinho no pé. Depois conta histórias na varanda, todos falam ao mesmo tempo, quebra nozes na calçada e vai tomar um café na mesa da vó.

Coisa de primo não dormir de noite, conversar até quase o galo cantar. Ouvir a casa em silêncio e escura, ainda sentir o cheiro vindo da cozinha, do bafo e estalos da geladeira, no meio da noite. Os primos ainda estão contando suas histórias quando alguém já tateia a luz do banheiro três e vinte da madrugada, arrastando os chinelos. Dos outros quartos se ouvem só murmúrios e risinhos.

Primos, que não são irmãos, são amigos com o mesmo avô, são tudo isso. Primos ficam adultos, ficam sérios, viajam e vão morar ainda mais longe. Agora não são mais só amigos com o mesmo avô que moram na cidade ao lado, no outro bairro ou na outra rua. Esses amigos quase não se veem mais, distantes, lembram-se das cores de um pomar, de um jardim, de uma casa, de uma máquina de moer cana, das mãos do nosso avô.

Em dias singulares se reencontram, amorosos e esforçados. O primo ainda é um menino curioso dentro de um homem gentil e bondoso, um verdadeiro cavalheiro, um irônico em construção. A prima ainda é uma menina falante com a sinceridade à flor da pele, é a mãe e a filha cuidadosa. Filha cuidadosa. Nestes poucos e valiosos dias, valiosos seres, se reencontraram pra brincar e conversar, e como riram estes dois e seus queridos.

Eles são primos, amigos estranhos com o mesmo avô. Riram muito. Eu queria ter sentidos em dobro pra poder perceber de novo eles falando e se entendendo. Conversa de primo. Falando de netos sem netos, de cursos de grito e das diferenças do “Ê e do É do Borogodó”, de ouros da Arábia e dos cartões de crédito. Falando da bendita língua presa ao lado da caixa d’água do quase falecido Niemeyer que homenageia a mãe do presidente na praia de Boa Viagem. Tudo por causa da Marinha. Do hotel do presidente e da seleção e do carro que anda em placas de concreto que expande na BR, mas que não faz buraco na cidade.

Conversa de primo. Falando do quiosque reformado, corrida de cavalo e cigarro do Derby, hospital de referência, luzes de natal e gado confinado. Luzes de natal verde, fotossíntese, luzes azuli-roxas e nave espacial, carne gratuita com suco de limão e matrizes culturais do Recôncavo Baiano, movidos acarajé, que não usam elevador e dormem no chão.

Coisa de primo. Brincando de esconder no shopping Recife, contando até mil... meu capri endoidando! Valendo! O fraio é no falo do Brennand, não vale ficar de bruço senão dói. Do silêncio da era pós-motor-à-combustão, do silêncio de Tóquio, de Paris, da salle de bain, da arte do peido da arte, e suas “estórias”.

Das bibliotecárias do Recife, do Miguelzão-Manoelão, do caminho do ônibus, canteiro de obras pernambucano, de um presidente, ministro inglês e presidenta, do sal e brasa, de um banquete entre paredes e árvores, de um queijo coalho que se transforma em abobrinha avinagrada. Do carnaval, de Michael Jackson no olodum, passando pelas sobrancelhas de André Rieu, pela apoteose da Unidos da Tijuca, um chorinho irônico, o encontro do maracatu e do afoxé em Olinda e nas ruas mornas do Recife Antigo.

Primos se encontram pra falar da e de uma missa católica e também de outras igrejas, de sua música e amusia nauseante, e de suas peruas traidoras. Da santa ceia revisitada sempre com a faca na mão. De amigos humanistas,de saguis que explodem, e que graças a um deus, o homem prefere o homem à máquina do homem.

Os primos se unem para rir de uma comentarista anônima de blog. Que raiva! Circo de um palhaço só! Festival de gafes, coisa de primos que estão brincando de pega-pega, correndo pela grama do pomar, saltando os formigueiros, rindo à toa, gargalhando de tão felizes juntos, de novo com o pé verde chegando na casa do vô.

Em dias singulares como estes, os primos se reencontram, se descobrem diferentes, primos de longe no tempo. Ainda brincam, falam sem parar, riem muito, contam histórias ao mesmo tempo e sonham com a voz do mesmo avô. São estranhos confidentes, sinceros, cuidadosos e amorosos. Todos nós loucos na medida certa... quem sabe? Estranhos buscando aos risos o mesmo antigo pomar.


Para Celine e Osnir, primos que conseguiram se reencontrar, e agora brincam e conversam.


Com carinho,

Leandro Gaertner

Recife, 28 de novembro de 2010.


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Imagem: "The meeting" (Janett Marie)

http://janettmarie.blogspot.com/

terça-feira, 23 de novembro de 2010

-estamos no meio-

Estamos no meio do rio. Não somos o policial federal que reclama do barulho dos seus vizinhos com a arma na mão, mas também não somos a pequena comunidade de humanos que moram numa casa sem TV, sem internet, em desapego ao material. São dois extremos, produtos de nossa sociedade. Nós estamos aí no meio.

Um policial federal, até onde me consta, orgulhoso deste cargo. Jovem e pai de diversos filhos, acho que uns quatro ou cinco, morador de um simplório condomínio, destes do meio do caminho, destes de uma classe média estudantil, próximo aos sons da 101, dos odores do Cavoco, à sombra da SUDENE.

Uma comunidade de desapegados, numa casa, não, numa fortaleza murada em frente aos olhos semi-cerrados do batalhão, perto de um castelo holandês cheio de jóias antigas, não muito longe dos ares pensativos, pensativos, pensativos, da universidade.

O policial, com a farda atrás da porta, com a arma na mão, troféu dos idiotas, desce um lance de escadas de queixo firme e chuta a porta entreaberta aos convidados de uma festa. Grita e ameaça duas falantes gentis bolinhas marrons de pêlo, uma do centro do continente outra do extremo calorento. Duas bolinhas falantes surpreendidas pelo penetra com troféu de idiota.

A comunidade entre muros, entre árvores, faz seu próprio pão, abre as portas a todos e acolhe. Com milenares movimentos explora e ajuda nas dores do corpo, do ser, a comunidade exala incenso e humanidade. Não acolhe a internet, acolhe o homem, os bichos e as plantas. A internet é também o homem. Uma ilha das sensações, um retorno ou um passo além, um lugar sem troféus.

O policial preso no seu pequeno quarto do pânico, das mulheres ou homens que não teve, das noites que não dormiu, dos livros que não leu, das imundícies que ouviu e viu, agora aponta sua poderosa arma preta para uma bolinha branca enrolada numa toalha azul.

A comunidade canta a existência e abraça quem chega. Um lugar da Terra, bondoso e frio, à espera, aberto, à espera, é só chegar. Os desapegados entenderam longe e assim ignoram quase tudo, como a natureza. Ignora e pulsa. Estão à espera e jamais invadem. Eles passam.

O policial que grita com a bolinha, que não grita, mas faz poesia e vive para pensar como fazer mais bolinhas novas e agitadas viverem na poesia, uma bolinha que vive para homenagear o universo, doce bolinha cosmopolita essa. Um revólver intruso, duro e mortal, ele não quer só passar. Um invasor, pedinte, ele quer a vida do outro, só ele existe, um idiota com seu troféu.

A comunidade, comum de gente que não entende mais o que acontece lá fora. Gente desapegada e cansada, uma desistência, um outro caminho, uma outra margem do rio, o topo de uma montanha, quem sabe. A comunidade é também mundo, que toca no mundo o mínimo possível, que o toca na medida do possível. Não se esconde. É também mundo. Humanos como natureza, eles são.

O policial também não se esconde, tem sua armadura, tem sua arma, tem seu carro, têm seus números e seus códigos. Pode sim descer as escadas e querer a vida de outro. É quase um bicho encurralado, assustado que sai da toca tocado pela fumaça e pelos risos. É um bicho sim, que anda sobre a Terra, tem direito a ela, mesmo sem entender nada, ou muito pouco.

A comunidade tem gente que não usa camisa, não usa nem chinelo, talvez um chinelinho de couro, uma saia de côco. Entres as árvores e os muros falam português, francês, alemão, espanhol, inglês, tudo misturado num recifês contemporâneo. São pessoas que dançam, gostam de sentar na terra, andar nela, ficam horas vendo uma flor com preguiça de abrir e daí sempre abrem sua porta.

O policial não abre a sua porta, ela é blindada, tem uma farda lá pendurada que ele mostra aos poucos visitantes. Ele não abre nada, ele invade, mete o pé gritando, não tolera garrafas se quebrando pela escada do prédio. A língua dele faz visitantes correrem em pavor e sentirem a bala da arma queimando nas costas. É um atraso.

A comunidade não é fria, mas também não é calorosa não. Lá as notícias não voam, não tem internet, as notícias andam devagar, elas passam e não duram, igual à natureza. Gente desapegada, livre e boa da comunidade não vai resolver, vai deixar, convidar, a ficar e a passar com ela. É como a Lua que nos acompanha lado a lado no espaço.

O policial é um bicho que pensa ser o senhor do instante, fugazes, que segue um monte de ideias que se pretendem ideais. Pensa pouco. É um ingênuo, ingênio, que por ter ouvido muita imundície pensa ter ouvido tudo. Ainda não conheceu o outro lado do rio, só uma espiadinha já ajudaria. Se isto acontecesse não sairia pelas escadas de arma em punho, ameaçando a vida ou a liberdade de poetas, que vivem pra pensar como ensinar poesia.

A comunidade não faz ameaças, nem sabe o que é isso. Também não gostaria que vissem o outro lado do rio como nós vimos. Podem ficar lá na pequena ilha entre muralhas, podem ir para a montanha, se unam à natureza e nos ajudem de vez em quando. Eles nem pensam em ajudar, só estão e são, é só chegar, olhar, ouvir, cheirar e ficar feliz, é como a Lua. Eu ainda conheço muito pouco, preciso de um telescópio e de um microscópio, de mais filosofia.

Nós não somos o policial federal que invade e ameaça grotesco (me perdoem as grotas) com seu troféu dos idiotas nas mãos, também não somos os seres serenos da comunidade que não acolhe a internet. Nós estamos no meio, como eles gozamos e sofremos. Aqui é o melhor lugar? Não sei. É uma merda, mas eu gosto. Gostamos de ver tudo que dá. Gostamos de andar por tudo, falar com todos, com bondosos, cuidadosos, que nos amam, que nos suportam, displicentes, aproveitadores, colaboradores, gênios e imbecis, a maioria tudo isso ao mesmo tempo, corremos mais riscos. De vez em quando nos apavoramos com os extremos como o aqui personificado por um policial federal vizinho do andar de cima, como também nos apavoramos com seu pretenso arqui-inimigo, um cocainômano armado que quer nos roubar, só mais um com seu troféu de idiota, pronto a _tirar a vida de quem só está no meio do rio, passando e vendo tudo, à mercê, à deriva, tentando entender, avançando rio acima.

Pra Camba!


Le

Recife, 23 de novembro de 2010.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

...uma Flauta cósmica...

Como olhar para uma tese de musicologia depois de tomar conhecimento sobre o que nós já sabemos do Cosmos? Eis a questão...

Antes de pensar em musicologia, fiquei pensando da maneira mais pragmática possível sobre o que é “tocar flauta” aqui, neste lugar que chamamos humildemente de Cosmos. Através de um cilindro oco de origem rochosa, com furos e pequenos engenhos arranjados com cuidado sistemático brincamos com ondas mecânicas de um certo tipo, ondas percebidas assim com exclusividade por nossos organismos devido a um processo de transformações biológicas de milhões de anos. A brincadeira com estas ondas mecânicas, que chamamos “som”, ainda foram se organizando até atingir um estágio de produção de sentidos, uma linguagem, que chamamos de “música”. Poderia ser até bem poético e dizer que a flauta representa o som da Terra, já que é feita de metal e o metal extraído das rochas. Não somente desta Terra, mas também de outras Terras e Martes, qualquer planeta rochoso. Isso seria injustiça com os instrumentos feitos de madeira, além de injusto com os planetas gasosos. Os instrumentos de madeira poderiam ser o som de outros organismos que crescem sobre a Terra, as árvores. Apesar de engraçadinho, departamentalizar deste jeito é inútil. Parece que toda matéria pode pertencer, poderia ter pertencido, poderá pertencer, já pôde ter pertencido, já pertenceu a todos os lugares, em todos os tempos. Toda matéria made in Terra é também made in Cosmos!

Se olhássemos de longe, de outro sistema estelar, de outro planeta ou até, quiçá, pudéssemos ver com os pés fincados a bordo de um planeta intergaláctico, alguém segurando este pedaço de matéria cósmica engenhosamente perfurada, brincando com ondas cósmicas mecânicas, integrando este frágil organismo biológico ao que ele pertence de verdade, estou certo que teríamos uma visão cósmica da felicidade! Um humano tocando uma flauta, ou um violino, um piano, um berimbau, uma ocarina, um pandeiro, assobiando, cantando... é um sinal de uma “consciência de si criadora”. Acredito que isto seja bem-vindo ao Cosmos. Na verdade, acredito que algo que conhecemos como “humanidade” seria para além de um acaso (isto sabemos que é um fato), um produto final do Cosmos, que através de nós é consciente de si. Acredito também que não somos os únicos a tornarem o Cosmos consciente de si e por outros cantos, espalhadas pelo Cosmos, sei que outras flautas também tocam. E neste espaço e tempo de proporções ignotas à nossa condição, que talvez se reconfigure totalmente em ciclos infinitos, como por exemplo um infinito ser vivo que sempre nasce e morre a cada “trilhões de anos” (um dos lados da Teoria do Big Bang), todo gesto criador de um ser consciente de si é uma homenagem ao Universo, como também é uma doce homenagem o solitário polvo que morre lentamente para proteger e salvar seus descendentes.

Tocar um instrumento musical é uma ligação física com o Cosmos, na verdade viver consciente é uma ligação física! Indo um pouco mais longe, tudo é físico! Mas consciência: solidão de nossa espécie! Solidão de nossa espécie? Não podemos desprezar as consciências das outras espécies.

Tocar flauta é fazer música com um pedaço de pedra, de osso ou de madeira polida, de Terra, de Cosmos polido. A flauta é um pedaço do Cosmos humanizado, uma arma também é. Plantar e salvar uma vida biológica, existir, nos conhecermos, estudar, aprender, ensinar, o uso de nossas ferramentas para a busca do conhecimento, a ampliação de nossa consciência: isto homenageia o Cosmos. A arte e a verdadeira ciência são também homenagens. A fé também é um produto de nossa consciência, mas ela deve estar também atualizada com o “agora humano”, com a “franja do espírito do tempo humano”, do contrário ela é negligente e injusta com os que passaram.

Quando penso em uma coisa boa da humanidade penso em alguém tocando um instrumento. Imagino um ser visitante de outros cantos do Cosmos curioso com esta atividade. Acho que ele acharia engraçado. Provavelmente não poderia ouvir como ouvimos, entenderia como inofensivo à sua própria sobrevivência e até, talvez, a imagem de um humano com uma flauta poderia ser para ele a prova de que temos consciência cósmica. Acho também que este ser hipotético entenderia que a flauta é bem-vinda no Universo.

Como adoro ficção-científica, outro dia estava pensando, depois de brincar com uma menina de 3 anos: se ocorresse um evento incrível, como a chegada de uma enorme nave alienígena na Terra e, se essa civilização alien estivesse nos testando, eu não pensaria duas vezes, mandaria uma criança de 3 anos para nos representar. Ah Clarinha! Que olhos brilhantes! Que sinceridade natural, que alegria de estar viva, que curiosidade, que humanidade mais gostosa! Mas, se a lei não permitir uma criança, mande logo a segunda opção, mandem um artista, mandem um cosmopolita.


Leandro Gaertner
Terra, Recife, agora.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

COSMOS de Carl Sagan

O que é o Cosmos? Para Carl Sagan é o oposto do caos... Cosmos é a ordem elegante, constante, a lógica sutil que predomina em tudo no universo. Envolve desde os eventos mais distantes das escalas humanas, como a morte de uma estrela, até o desabrochar de uma florzinha no jardim da praça. Eu esqueço, esquecemos, ao longo dos nossos dias respirando o ar que existe neste planeta, que fazemos parte de algo grandioso. Algo que nem mesmo caberia na nossa pequena e local linguagem; a palavra "grande" não faz sentido ao cosmos, apesar de fazer sentido de onde olhamos para ele. Nós simplesmente estamos aqui, em forma de uma matéria muito rara e preciosa, matéria consciente de sua própria existência.

Carl Sagan, Steven Soter e Ann Druyan escreveram a série Cosmos, que foi ao ar na TV pela primeira vez em 1980, transmitido pela Public Broadcasting Service. Nas palavras de Ann Druyan "Cosmos é repleta de empreendimento científico e ainda tenta comunicar a alta elevação espiritual da evolução central e as maravilhas do universo. Então, por favor, desfrutem de Cosmos, a orgulhosa saga de como através da busca de 40 mil gerações de nossos ancestrais nós chegamos a descobrir nossas coordenadas no espaço e no tempo..."

Ler Sagan e assistir Cosmos é uma injeção de humanidade, nos lembra onde estamos, quem somos, o que sabemos... Nos enche de esperança e humildade.



Assista os vídeos em português no canal TVEscola0002 no YouTube a partir deste link:



Ou compre os DVDs da série Cosmos, fácil de localizar através do Google.


quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Charles Chaplin

Quando criança, lembro que vi algumas cenas de filmes do Carlitos, talvez até mesmo tenha visto filmes inteiros, mas não lembro... Somente ontem fui parar e ver um filme inteiro, e atento e aberto para entender o que ele queria dizer. E o olhar, a fala, o riso, a dança, a música, a brincadeira de menino dele me atingiram na veia, no osso, no coração, sei do que ele está falando! Está falando! Continua falando! Esta é a maravilha da arte, ela fala por muito tempo, muitos tempos. Acredito que um artista não é alguém a frente de seu tempo, é alguém que poderia viver em todos os tempos, necessário em todos os tempos, acho que isto é a eternidade. A ideia de eternidade como infinitude temporal, o "para sempre", não nos compete, pode até mesmo nem ser humano e dela só posso ter os sonhos mais certamente imprecisos. Hoje entendo a agonia de Carlitos... mas acho que somente posso entender, não sentir. Minha agonia sinto eu. Os sonhos que Chaplin cantou ao mundo são também os meus sonhos... Com Chaplin na tela dá pra entender que a genialidade é o infinito encerrado num ser! Com seu olhar ele nos ilumina.


O último discurso

de “O Grande Ditador”


Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio... negros... brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.


O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloquente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de faze-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!

Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!
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Charles Chaplin
Terra, 70 anos atrás
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http://www.youtube.com/watch?v=FPzgq8sNbMI

http://www.culturabrasil.pro.br/chaplin1.htm

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Arquivo X: Bibliotèque nationale de France

Segue abaixo um relato verídico de uma professora aparentemente normal, mas que sem medo do perigo, com a audácia de uma Indiana Jones da musicologia consegue enganar droids e aliens da segurança, transpor portas a prova de bala, descer montanhas de aço a profundezas que fariam o próprio Júlio Verne tremer, decifrar cada gesto e olhar das esfinges guardiãs do oráculo sagrado, para finalmente adentrar nas câmaras secretas da Bibliotèque nationale de France... de salto alto e Longchamp... ===========================================================

Estou acostumada a frequentar a BnF da Rue Richelieu, dept.de Musique, onde tudo é calmo e lento, mas dentro dos padrões da normalidade (francesa). O chercheur é instalado numa mesa, preenche os formulários de pedido de micro-filme, e/ou , como é o meu caso mais recentemente, os "dossiês" do Fond Montpensier. Este, consta de caixas separadas, uma para cada país, com recortes de jornais e programas, separados em pastas entituladas "pianistas", "compositores", "concertos", etc...; só podemos pedir 10 pastas por dia, examinando uma e devolvendo ao atendente para receber outra, e assim por diante; mesmo que por vezes haja apenas 1 recorte de jornal na dita pasta. No caso dos microfilmes, após o preenchimento do requerimento - como para as pastas, 1 requerimento por bobina - geralmente aproveitamos a espera para examinar algum periódico ou livro acessível nas estantes, até que silenciosamente, alguém se aproxima da nossa mesa e deposita discretamente um bilhete indicando a sala onde podemos ter acesso ao microfilme, que esta lá, esperando por nós. Tudo isto pode parecer extremamente surrealista, mas acostuma-se; principalmente quando finalmente temos acesso aos documentos e ficamos maravilhados com os achados.

Pois bem, em julho deste ano, precisava ter acesso a certos materiais áudio-visuais - entrevistas, gravações de programas ao vivo, etc...- e para isto, dirigi-me à biblioteca François Miterrand, no 13e. Uma obra impressionante de arquitetura moderna pelo tamanho e pelo mistério. A entrada é dificil de achar, e ao chegarmos, a recepção é tão ampla e cheia de possibilidades - guichês, computadores, salas, corredores...- que achei melhor pedir informação a uma da antendentes antes de sair perambulando em busca do Rès-du-jardin, onde se encontra a Section Audiovisuel. Lá fora, já existe uma seta, indicando a direção deste lugar que pelo nome sugere "Shangrilah", ou algo parecido, mas como todas as setas naquele país, não indica précisément a direção a seguir.

Obviamente, só os "escolhidos", ou seja, quem tem a carteirinha de chercheur, pode acessar esta parte da biblioteca, e assim, a atendente me indicou a entrada e o sensor eletrônico onde deveria passar meu cartão para poder transpor as portas blindadas e altíssimas localizadas à extrema esquerda de quem entra na Biblioteca. Pois bem, assim fiz, esperando encontrar do outro lado das portas, uma sala de leitura ou algo parecido.

Não.

Vi-me fechada num espaço inteiramente blindado, sem portas ou janelas, e uma Looooooooooooooooooooooooooooooooooonga escada rolante - sentido descendente. Muito descendente. Paredes blindadas dos dois lados. Respirei fundo e desci. Ao final da escada, um outro hall, onde passei por outro sensor eletrônico, e novo balcão de atendimento, onde fiquei sabendo que precisava de uma reserva do material que desejava investigar, para então poder passar por outro sensor que me daria acesso às salas de leitura. A reserva pode ser feita através dos computadores localizados ali mesmo no hall, ou, da minha casa, pela internet. Acessei os computadores e separei alguns itens. Ao terminar, fui informada que, apesar da seção ficar aberta até as 20hs, os pedidos só podem ser feitos até as 17hs. Eram 16hs45. Forget about it.

Mas a atendente, muito gentilmente me permitiu passar o cartão por mais um sensor e transpor outra porta blindada altíssima, para ir até a seção audiovisuel ao menos para "assuntar". As portas se abrem e eu me vejo à frente de três corredores imensos, iluminados por luzes fluorescentes azuis e nenhuma placa ou seta. Achei a seção após alguns minutos de guessing game e dirigi-me à atendente da seção, para já acessar o arquivo e deixar minha reserva feita para o dia seguinte. Consulta e reserva puderam ser feitas colocando meu cartão em outro sensor localizado ao lado do computador, e resevando apenas 7 itens - não mais - mesa e horário. Perguntei então como fazer para acessar de casa, visto que não possuo o sensor para ler meu cartão. Lógico, estava indicado, precisamos de um ALIAS (código ou senha, criados ali mesmo para este fim). Perguntei a ela como fazer. A atendente, que trabalha nesta seção para dar assistência aos pesquisadores, não fazia a mínima ideia - désolée. Aparentemente, consegui all by myself , criar um ALIAS. Ainda não tentei reservar de casa; farei-o antes de minha próxima viagem, para poupar tempo. Se funcionar, prometo que divulgo aos quatro ventos. Vale a pena.

Esqueci de dizer que, antes de transpor o primeiro sensor lá em cima, na entrada, temos que deixar casacos e sacolas no vestiaire. A bolsa de mão só pode passar conosco se tiver uma determinada dimensão; senão, devemos deixá-la lá também, e eles providenciam uma pasta de plástico para carregarmos nossos pertences mais preciosos conosco. Evidentemente, quem pensou nestas medidas (15cm por 15cm) não acompanha a moda feminina; nenhuma bolsa atualmente tem estas medidas. Todas são muito maiores; a atendente, logicamente sabe disto e me ensinou o truque : amasse os lados da bolsa, que geralmente são fofinhos, e ela fica do tamanho requerido e ninguém perceberá que você esta na verdade "burlando" o controle da biblioteca em nome da moda.

No dia seguinte, estava lá, o material estava a minha espera na mesa, e acessei todos os vídeos que queria . Assisti entrevistas e programas de divulgação de música contemporânea com Claude Helfer, Boulez, e outros. Mas a sensação dos "contatos imediatos de 3° grau " continua.


Madame X

Outubro de 2010.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Porte ilegal de flauta

Já perdi diversos objetos no raio-x dos aeroportos. Por puro descuido e esquecimento tentava entrar num avião com um saca-rolhas ou com uma moderna chave de fendas dentro da mochila. Então, com aquele sorriso amarelo e compreensivo, entregava minhas aquisições pontiagudas aos fiscais da segurança de voo. Nunca fui perguntar para ninguém da área, mas imagino que ser funcionário da alfândega ou o pessoal do raio-x do aeroporto tem suas belas vantagens: já soube de funcionário implicando com caixas de vinho para consumo pessoal... Que chato deve ser apreender uma caixinha de vinhos bem escolhidos numa das lojas “Nicolas” de Paris... Ou então implicar com cremes comprados no Duty Free, devidamente embalados e grampeados. Isso não importou aos funcionários do Aeroporto de Lisboa. Mas repare na estratégia deles: você chega em Lisboa com compras de cremes e perfumes numa sacola lacrada do Duty Free de Recife, por exemplo. Os guardas do aeroporto dizem que a quantidade é ilegal para ser levada como bagagem de mão e obrigam o passageiro a despachar os produtos. Misteriosamente quando abrimos a mala em casa notamos que ela foi revirada e que alguns dos cremes sumiram. Por isso lembre-se, se isso acontecer, passe o cadeado na mala, é bom não contar com a sorte de encontrar um funcionário honesto.
Mas isso não tem nada a ver com o detector de metais e o raio-x. Lembro bem de um episódio muito engraçado no aeroporto de Florianópolis alguns anos atrás, acho que em 2003. Na noite anterior a uma viagem de turismo familiar para Natal toquei num concerto em Florianópolis e no repertório tocamos o famoso concerto para violão de Joaquim Rodrigo, aquele do famoso solo de corne-inglês no segundo movimento. Por coincidência o tocador de corne-inglês do nosso concerto era importado de Porto Alegre e acabamos nos encontrando no aeroporto na manhã seguinte. Lá estávamos nós, com objetos estranhos dentro de nossas mochilas, instrumentos de sopro pontiagudos e ameaçadores tentando passar pelo crivo do raio-x. A flauta passou bem e as caixas do oboé e do corne-inglês também, mas a caixinha de ferramentas do meu colega, com suas minúsculas chaves de fenda e afiados estiletes, inevitavelmente criaram a tensão de um ataque terrorista em potencial. Então, o músico das canas polidas se viu obrigado a pegar uma de suas palhetas e demonstrar aos atentos funcionários do aeroporto de Florianópolis a serventia de suas ameaçadoras lâminas, tirando uma lasquinha de madeira e fazendo aquele som peculiar das palhetas sem o instrumento. Foi um verdadeiro show que o autorizou a entrar no avião com todas as armas.
É claro que fazer o que ele fez não é assim tão complicado e naquela época ainda contávamos com a ingenuidade do sistema. Porém isto não é mais possível. Nesta minha última vinda a Recife, três dias atrás, tive uma surpresa. Como sempre, coloquei minha flauta na mochila que pretendia colocar dentro do avião, um pouco acima de minha cabeça, não longe dos meus olhos. Alegre e faceiro como um Mr. Bean dos manguezais catarinenses atravessei o detector de metais e aguardava do outro lado a chegada da esteira com minha mochila e sua preciosa carga. Foi quando a guardiã da segurança me perguntou: “Isso é uma flauta?” Num pensamento estranhei que ela sabia o nome do meu instrumento, coisa rara nesses lugares. Disse que sim e então vi que o mundo tinha girado mais um dente de sua enferrujada engrenagem rumo ao futuro. “Você não pode levar seu instrumento com você, precisa despachar como bagagem.” –“O quê? Mas por quê? Eu sempre levei comigo!” Numa rápida e civilizada discussão todos soubemos que eu tinha vindo da França no fim de junho, que essa lei era nova e tinha cerca de um mês, que proibia o porte de objetos metálicos circulares e compridos, como uma flauta transversal. Imagine então os estiletes do meu colega oboísta... Confesso que já sabia que a flauta é realmente uma arma em potencial. Amasse o bocal com jeito e tenha uma bela faca de prata maciça, ou tire as chaves do corpo do instrumento, depois amasse engenhosamente e tenha quase uma lança. Isso eu penso sempre quando entro num banco e preciso conversar com o segurança por causa do detector de metais da porta giratória. Abrindo a caixa da flauta em frente aos olhos curiosos dos vigias já tive a sensação de quase conseguir um aluno. Se realmente eu for profissional, montar e tocar um pouquinho, acho que já conseguiria a confiança instantânea, tipo aquela amizade frouxa e despreocupada de desconhecidos que vão com a sua cara, na melhor das hipóteses talvez até mesmo do gerente do banco. Depois de algumas semanas é só entrar armado e fazer a festa fantasiado de flautista de Hamelin. (Acho que essa estratégia não foi tentada ainda nem em Hollywood)
Três dias atrás no aeroporto de Florianópolis, acusado por porte ilegal de flauta, tive que correr emburrado até o balcão da companhia aérea, e despachar minha mochila com a flauta e minha querida pastinha amarela “Flauta Solo”, com as Fantasias do Telemann, Sonatas da Família Bach e outras. Ao finalmente sentar muito mal humorado na poltrona do avião, ao ponto de pensar “se essa merda cair, caiu...”, e já começar a ficar entediado com a espera e ter que me contentar com a revista da própria companhia, lembrei do livro que pretendia continuar lendo e que agora também estava amargando o desconforto no porão do avião: um livro de Shlomo Sand “Comment le peuple juif fut inventé?”(Como o povo judeu foi inventado?”), que comprei junto com o livro de Paul Veyne, que já terminei de ler, “Quando o nosso mundo se tornou cristão”...
Mas também pensei numa outra possibilidade para o confisco intransigente de minha flauta. Que talvez os funcionários do aeroporto de Florianópolis não queriam mesmo era o perigo de um flautista com sua flauta a bordo: vai que o flautista desata a estudar a terceira oitava em pleno voo, ou pior ainda, fica travado num dos compassos do terceiro movimento da sonata do Poulenc! Como minha família já teve paciência comigo...

Leandro Gaertner
Recife, 8 de outubro de 2010.
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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

LE MAGNÉTOPHONE DES AÈDES

Caros Leitores

Na extrema necessidade de um pouco de bom humor, anexo aqui um texto que conheci ano passado de um outro blog em francês feito pelo pessoal do Cercle de Musicologie de Montréal, Université de Montréal. Tudo iniciativa dos alunos e olha que maneiro o logotipo deles! Deu até inveja branca!


O link do blog é: http://cercledemusicologie.unblog.fr/ e o link do site é: http://www.cercledemusicologie.com/

O texto é engraçadíssimo e faz parte de uma série de postagens, uma troca de cartas entre o "Fou-thèse" (Louco-Tese) e o "Pro-thèse" (Pró-Tese). Escolhi este texto que é um desabafo do Louco-Tese, que então narra as desventuras de se lançar no ignoto, coisa que acontece quando decidimos escrever uma tese.

Acredito que você "thésard" irá se identificar.

Saudações deste blogueiro!
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LE MAGNÉTOPHONE DES AÈDES

Jour 26 de ma rédaction
226 jours avant la remise de la première version de ma thèse

13h00 – Dans mon bureau

Chère Pro-thèse,

En lisant ta dernière lettre, j’étais pétrifié d’admiration à ton endroit. Comme tu es productive! Comme tu es active! Tu sembles bondir avec grâce d’une tâche à l’autre, telle une agile gazelle intellectuelle, le pied léger, le nez au vent, un livre à la main, une présentation Power Point sous le bras. Et je suis sûr qu’à travers tout ça, tu réussis à rester toujours très bien habillée.

D’accord, je sais bien que les gazelles n’ont ni main ni bras. Et qu’on ne saurait tenir des documents Power Point à la hauteur de son aisselle. Mais tu pardonneras la médiocrité de mes métaphores quand je t’aurai conté l’ampleur de mon malheur : j’ai été victime de blocage!

Pas un petit blocage, là, quelque chose de gros. Le Kilimandjaro des blocages. Le vide. La stérilité. Le trou noir. La ligne horizontale sur l’électrocardiogramme de ma créativité. La goutte de sueur qui perle lentement à la base de ma nuque et qui glisse le long de ma colonne vertébrale, le temps d’une éternité, laissant derrière elle comme un sillon brûlant. Le cerveau qui tourne à vide, incapable de s’activer, sauf pour répéter en boucle: « Mais pourquoi me suis-je embarqué dans une entreprise aussi décourageante et futile? Pourquoi une thèse en musicologie? Pourquoi? Alors qu’on manque de bras dans le domaine de la santé!»

J’ai failli tout abandonner plus d’une fois. Puis je me suis repris en main. Il le faut. Mon co-directeur de thèse m’attend demain. Je dois lui montrer le début de mon chapitre un. Je prends les grands moyens : je sors. Au diable mon bureau poussiéreux! Je vais travailler dans un café. Mon sac à dos est prêt, plein à craquer de l’essentiel de mes livres et de mes papiers, plus mon portable. Je pars. Je suis parti.

Le même jour, 14h05 – dans un café

Ça m’a pris un peu de temps, mais me voici installé. J’ai été un peu retardé. Le temps était incertain, j’ai dû ouvrir la télé à Météo Média pour savoir si je devais mettre mon imper ou mon coupe-vent. Les publicités n’en finissaient plus puis je suis tombé sur un reportage très pertinent sur les différentes sortes de pollen. Je te raconterai.

Enfin, il a fallu trouver le bon café. Pas facile! Ceux qui sont vraiment bien, avec une place en vitrine, sont toujours pleins. Si je recherche les vitrines, c’est pour avoir de la lumière, du beau soleil qui vient éclairer mon clavier bourdonnant d’activité. Et peut-être même une petite brise, car parfois on ouvre les fenêtres des cafés. Et parfois les feuilles s’envolent et il faut aller les chercher à quatre pattes jusque sous les roues d’un camion. Mais c’est une autre histoire.

J’ai enfin trouvé un café agréable, avec une table en vitrine. J’ai de la lumière. Et des gens qui regardent. Oui, je l’avoue, j’aime bien que les gens me voient travailler. J’imagine qu’ils admirent ma concentration, mon courage, ma persévérance (s’ils restent assez longtemps pour voir tout ça, évidemment), et ça m’encourage. Ou, à tout le moins, ça me porte à avoir l’air occupé.

Ça y est. Je suis installé, mon ordinateur fait entendre sa respiration rassurante. Je me lance. Je travaille. Je thèse.

Le même jour, 14h35 – au café

J’ai mal au coeur. C’est sans doute dû au fait que j’ai bu trois cafés en trente minutes. Il me semble que ça ne se fait pas, de rester dans un café sans consommer. J’ai peur d’exaspérer le serveur en occupant une table trop longtemps, alors je consomme. Mais je ne suis pas habitué de boire autant d’espresso. Enfin, ça va peut-être me faire débloquer (au sens littéraire du terme, on se comprend).

En tout cas, je l’espère, car le blocage est une sensation extrêmement pénible. Comme si je devais pelleter une montagne de gravier avec une cuillère à café. Je suis devant la montagne, je regarde le gravier… la cuillère… le gravier… Bon tu comprends l’idée. Au bout de quelques jours de ce régime, j’ai essayé diverses choses pour m’en sortir :

1) Écrire à la main. Je ne sais plus qui m’a suggéré ça, mais c’est vraiment nul. C’est comme changer ma cuillère à café pour une fourchette à dessert.

2) M’enregistrer tandis que je parle. Avec quoi on s’enregistre, de nos jours? J’ai perdu un peu le fil de la technologie, de ce côté. Et je refuse d’investir dans un gadget que je ne suis même pas sûr d’utiliser plus de trois fois. J’ai donc ressorti un mini-magnétophone absolument archaïque (je suis sûr que les aèdes en utilisaient de semblables). J’ai baragouiné comme j’ai pu devant ce qui semblait être le micro intégré. Mais les piles étaient sans doute un peu fatiguées, car quand je les ai remplacées par des neuves pour me réécouter, je sonnais comme dans un sketch de François Pérusse, ce qui me déconcentrait complètement. De toute façon, honnêtement, je ne disais pas grand-chose d’intelligent.

3) En parler autour de moi, expliquer mon projet à quelqu’un. J’ai invité un ami à souper pour abuser de son oreille. Très gentil, il a fait semblant de trouver palpitant mon sujet de thèse. Afin d’avoir l’air intéressé, il levait les sourcils le plus haut qu’il pouvait, en étouffant vaillamment ses bâillements. Mais l’explication a été interrompue par un téléphone de ma mère. Mon ami en a profité pour se sauver au dépanneur. Qu’à cela ne tienne, j’ai tenté de débiter mon baratin à l’auteure de mes jours. Mais elle mourait plutôt d’envie de me raconter le dernier épisode de L’auberge du chien noir. Comme je suis un fils assez respectueux, après trois tentatives, j’ai renoncé à l’interrompre. (D’autant plus que l’épisode avait l’air vraiment bon.)

4) Reste l’idée d’aller écrire ailleurs. Sortir de mon marasme = sortir de mon bureau, m’installer dans un café. M’y voici. J’essaie de me concentrer. Mais l’excès de caféine me rend un peu fébrile. Et il me semble que le serveur me regarde avec des gros yeux. Je vais commander un déca.

Le lendemain matin, 9h00 – chez moi

Je n’ai pas dormi de la nuit. On dirait bien que le déca aussi me rend fébrile. J’ai été assis au café jusqu’à la fin de l’après-midi, j’ai dû en prendre au moins quatre. Peut-être que mon organisme ne reconnaît pas l’absence de caféine. Il reçoit les arômes du café et enregistre : fébrilité! Ce qui n’a pas aidé, c’est que mon vieux Chameau a décidé de venir me crier dans les oreilles à quatre heures du matin. Il devient de plus en plus gâteux. Ou bien l’esprit de ma co-directrice de thèse s’est faufilé jusqu’en lui. Ses miaulements semblaient me dire: «Lève-toi, fainéant, grouille-toi les neurones et va t’occuper DE TA THÈSE!»

Enfin, j’ai profité de mon insomnie pour tenter un collage désespéré : j’ai pris le début du travail de session de mon séminaire de recherche, j’y ai fait entrer de force des bouts de mon examen de synthèse, j’ai entrelardé le tout de nombreuses citations plus ou moins pertinentes, ça m’a donné une cinquantaine de pages bien tassées. Mon co-directeur de thèse n’a qu’à bien se tenir. Je serai fort, je serai serein, je vais le convaincre que ma thèse est sur la bonne voie.

Le même jour, 10h15 – à la bibliothèque, en sortant du bureau de mon co-directeur de thèse

Au moins, j’ai réussi à ne pas pleurer. En tout cas, pas tout de suite en entrant. J’ai attendu cinq bonnes minutes. Et, très franchement, ce serait tout à fait exagéré de parler de « sanglots ». J’avais la voix qui tremblait et je ravalais beaucoup, tout ça restait très digne. Et ce qui doit compter pour quelque chose: j’ai résisté à la violente impulsion de déchirer mon chapitre un et de le piétiner. C’est à peine si je l’ai lancé contre le mur. Quand même, ce n’est pas rien.

Mon co-directeur a été très encourageant. Après avoir ramassé le cadre qui était tombé sous le choc (une photo de sa famille : la vitre n’était même pas brisée!), il m’a fait une suggestion. Selon lui, je dois absolument prononcer une conférence, ça serait bon pour ma confiance. Justement, il y a des possibilités dans une grosse ville à quelques heures d’ici, et les musicologues locaux seraient sûrement ravis de me recevoir.

De prime abord, j’ai trouvé que c’était une bonne idée. Sur un coup de tête, j’ai même affirmé que j’utiliserais Power Point pour la première fois. Avec des extraits musicaux. Mais là, je suis devant mon ordinateur. Je ne sais pas par où commencer. Je me sens comme si je devais laver toutes les fenêtres de la Place Ville-Marie avec un petit mouchoir. Et revoici la goutte de sueur à la base de ma nuque… Du calme, je vais y arriver. Et pour commencer, je vais remplacer le déca par de la camomille.

Salutations thésardeuses,

Ton collègue,

Fou-thèse

16 octobre 2008

domingo, 26 de setembro de 2010

(Devaneios de uma manhã de insônia)


Nos últimos dias tenho ido contra minha natureza e acordado cedo, antes das 7 horas, às vezes por compromisso, mas na maioria das vezes por simples ansiedade. Mesmo hoje, um dia após o fim do concurso para professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa e livre das leituras sem fim, perdi o sono junto com as primeiras claridades. E, mesmo cansado de ver letras, uma necessidade enorme de escrever algo bem pessoal foram meus primeiros pensamentos logo ao perceber que estava acordado, sem querer construir personagens, sem querer escrever em forma de conto, só escrever meus devaneios frutos desta insônia.
Li muitos artigos, capítulos de livros e mesmo livros inteiros sobre educação e educação musical para me preparar para o concurso e hoje finalmente não preciso mais pensar nisso. Posso andar na praia e não ficar pensando no sorteio dos temas do concurso. (Vale mencionar que os temas sorteados foram ótimos para mim, o ponto n°9 “Reflexões sobre a educação musical no Brasil e a música como componente curricular obrigatório nas escolas de educação básica” para a prova escrita foi bom pela amplitude da discussão e o ponto n°1 “Teoria e prática em disciplinas teórico-musicais: possibilidades para a formação no curso de Licenciatura em Música” para a prova didática foi excelente por se aproximar muito da minha própria prática docente). Fiz a prova escrita na sexta e a prova didática no sábado, ontem. Acho que ainda devo estar com as ideias a mil por hora devido às leituras e à forte elaboração exigida nas duas provas, pensar, escrever e falar seriamente sobre alguma coisa nos leva a lugares profundos, nos transforma, me sinto muito forte, revigorado, mas também com vontade de não pensar em nada, mas isso eu não consigo.
Hoje quero escrever, mas não muito. Só estou a fim de dar aquela blogada mesmo... Tipo, escrever para “meu querido diário”... Ah, como fiquei contente em saber que tive novos leitores do meu blog, meus queridos professores e também amigos Isaac e Zélia... Também confesso que fiquei um pouco sem jeito, afinal, aqui estão minhas impressões desprovidas de qualquer filtro, ou pelo menos pouquíssimos filtros, se levarmos em conta os dez mil filtros da polidez do ambiente acadêmico. Na verdade, fiquei lisonjeado!
Ontem no concurso me questionaram muito sobre o doutorado e essa manhã acordei também pensando muito na Sorbonne. Lembrei da imagem que construí numa conversa com a Cambacica lá em Paris. Pensamos juntos na Sorbonne, Paris IV, como um “grande pulmão” no centro da cidade. Como essa universidade é primordialmente a casa das ciências humanas, das “humanidades”, pensamos e acreditamos ser até mesmo uma casa para “a Humanidade”! A Sorbonne, com suas dezenas e dezenas e dezenas de seminários semanais em Música, Literatura, Filosofia, Psicologia, Sociologia, Educação, Linguística, que acontecem quase o ano inteiro, é um verdadeiro pulmão que oxigena Paris. Imaginamos aquele lindo prédio bem no meio da cidade como um órgão para a saúde das ideias deste ser complexo, que é a sociedade, nós, mulheres e homens e nosso meio. Fiquei pensando na beleza que é uma instituição como a Sorbonne, tão grande, tão real, funcionando, pública, aberta, uma linda academia, uma linda caverna dos saberes humanos, um verdadeiro tesouro da Humanidade.
Também pensei hoje nos meus seminários do doutorado e tantos outros que acompanhei do mestrado da Sorbonne. Essa manhã fiquei aqui ouvindo as náiades de Itapema, matutando sobre a diversidade de gente que aparecia para falar nos seminários, gente de todos os cantos, de todos os sotaques. Fiquei pensando que essa diversidade organizada em debates é maravilhosa e tenho esperança que até já possa ser um reflexo de nossa época. Um amor e respeito à humanidade inteira, um senso de irmandade, para além de laços de espécie, laços de habitantes do mesmo planeta, que possamos começar a nos ver mesmo como raridades vivas, e que apesar de nossos socos e grunhidos nós conseguimos olhar o céu com sonhos habitados...
Não posso não me emocionar ao imaginar os primeiros lampejos profundos do ser! Aquele homem de cócoras ainda com pedras e paus, nos primeiros anos na companhia do fogo, olhando as estrelas e se enxergando abaixo delas! Aqueles seres incríveis de Lascaux e Altamira! Como já andamos desde nossos amados antepassados, esses seres distantes são nossos pais, mas também como ainda somos tão parecidos, como ainda estamos no abismo... Ai que abismo... Que abismo... Que doce abismo nos encontramos, ser-estamos, ÊTRE - TO BE - SEIN, que doce abismo, que doce montanha, que cheiroso mar, árvores e campos, terra, que fomos parar, estando correto ou não a teoria sobre as infinitas variáveis de uma matéria eterna!
Tenho muita esperança na nossa época, que essa aproximação da diversidade seja um passo à irmandade e ao amor. Hoje acredito que o amor à humanidade sistematizado desta maneira, pela aproximação da diversidade, todos de mãos dadas, pode suprir uma lacuna vital nos anseios do homem. Pode suprir e já supre totalmente, pelo menos no meu caso, certamente do meu orientador, e certamente de muitos outros seres habitados pelos céus do presente. Acredito que estas são as crenças coletivas discutidas em lugares como a Sorbonne, como em tantas outras boas universidades do mundo. Lugares de humanos que se arrepiam e se emocionam com sua descendência longínqua, entendem e amam as conquistas das ideias e dos pensamentos até aqui. Precisamos continuar nos emocionando assim, pelo amor e esperança, pela beleza intrínseca à raridade da vida.
Os últimos 200 anos têm sido especialmente movimentados na humanidade. Até cerca de 150 anos atrás éramos felizes e esperançosos na concepção de uma providência divina, assim ela nos foi ensinada eterna, então estudávamos filosofia de mãos atadas, ou seja, fazíamos teologia. Depois acreditamos na nação, na bandeira, no hino, na língua pátria, e assim a nação também nos foi ensinada como eterna. Isso tudo é inexoravelmente diluído aos poucos e dá lugares às novas crenças. Em lugares como a Sorbonne eu acho que isso já está acontecendo. E onde eu estiver isso com certeza estará acontecendo, em cada frase que falo ou escrevo, em cada olhar, abraço, sorriso ou em cada sonho de minha flauta. Minha esperança é que acreditemos na irmandade, não somente entre nossa espécie, na irmandade com tudo que está ao nosso redor, até mesmo na irmandade com as estrelas, com o tempo! Afinal, como habitamos também somos habitados!
Quando falamos em instituições e sociedade contemporânea, precisamos de maneira indelével pensar em larga escala e assim também somos obrigados a pensar em educação. Hoje acredito que pela educação chegaremos onde quisermos, na arte, na natureza que nos cerca e habitamos e fazemos parte, nos pensamentos complexos e na irmandade, pela educação chegaremos na felicidade coletiva e na não violência.
Só para encerrar com uma piadinha... Está claro para mim que em uma sociedade sem educação, alguém como Tiririca continuará sendo chamado de artista e alguém como Alexandre Pato será um gênio. Depois dessa preciso andar na areia... Beijo me liga...


Leandro Gaertner
Itapema, 26 de setembro de 2010.

Imagem: “Rooms by the sea” de Edward Hopper.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

~ O Monge Celibatário ~


Por uma das janelas de um antigo mosteiro construído no alto dos rochedos, um monge observa a plebe que caminha lá longe na areia da praia. São pequenos pontos sombreados que andam apressados de um lado para o outro até desaparecerem atrás do morro, lá onde estão os campos cultivados. Alguns ainda se perdem entre as casas do vilarejo, que estica seus braços de pedra e lama até muito próximo do mar. Muito longe, no limite do que os olhos podem enxergar, mostrando-se entre a fina camada da poeira das ondas, montanhas verdes avançam mar adentro e abraçam a baía do mosteiro.
O monge apóia e descansa os olhos na linha do horizonte e vê tons de rosa, os mais ricos azuis e respira fundo aquele ar salgado. Sonha nostálgico com uma aventura num barco que tentaria chegar até o fim do oceano. Quem sabe ainda nestes dias mais alguém apareça em busca de seus conhecimentos e então poderá falar de figueiras e outras árvores, dos passarinhos, de viagens e da música.
*
Em trajes rotos, num marrom acinzentado, desce devagar os estreitos degraus até as ruas do vilarejo. Caminha compassado, muito lentamente e quase incógnito, pelo gentil movimento dos habitantes. Escuta os sons dos feirantes, dos saltimbancos, das sinetas, dos velhos de braços cruzados e encostados, sentados no chão. Algumas lindas donzelas ainda com cheiro de leite, outras já exalando jasmim, saltitam exibindo seus cachos e quadris recém torneados. Elas olham de soslaio para dentro da taverna, espiam sorrateiras os que saem da casa do joalheiro, falam coisas leves ao mensageiro que corre atarefado. Meninos brincam na porta e esperam os gritos da mãe gorda. Então ela aparece; as pernas inchadas e venosas, uns fios, cerdas, abaixo do queixo, com um pequeno ranhento chorando, no balanço, entre um pano imundo e as dobras do braço.
O monge em sandálias de couro caminha rumo ao depósito de valores para ver se a ajuda do Papa já havia chegado. Passa por um trabalhador carregado de cordas e o cumprimenta. Na rua, entre os animais e as pessoas, entre um pensamento e outro insinuam-se cheiros de pão e de flores vindo das casas. O pensamento então entra neste outros mundos ao lado e espia a tranquilidade aparente.
Antes que o dia termine, o monge retoma o caminho dos rochedos, passando pelo sinuoso caminho até os degraus de pedra gasta. Sobe paciente até o isolado mosteiro com as cores e os sons do vilarejo em redemoinho na memória. Quantos sabores não provara? Sobe ao encontro dos textos, da flauta e do silêncio.

Caro leitor. Esta seria a descrição de um monge celibatário nas últimas estações de um feudo medieval? Ledo engano!

Este monge sou eu em Itapema.


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Imagem: "Le Château des Pyrénées" de R. Magritte (1959)

Itapema, 14 de setembro de 2010.
Leandro Gaertner


domingo, 15 de agosto de 2010

Duas histórias de guerra no Brasil: coisa de cinema.

O cinema brasileiro deu um reverberante grito de independência nos últimos 15 ou 20 anos, isto é fato e nem precisa ser um expert para perceber. Para aqueles que assistiam filmes brazuca na TV em meados dos anos 90, basta lembrar das pornochanchadas com os Antonios Fagundes de camisa aberta e companhia. Aqueles filmes, produtos finais dos anos 70 e início dos 80, com fuscas, roquezinho de garagem, laquê e trezoitão... Agora raciocino que eles não puderam ser exibidos na época da ditadura e assim chegaram na TV bem na época da minha adolescência. Sorte dos hormônios nerds de hoje que tem a internet!
Porém, a despeito do grito de alforria das novas safras de cineastas sobre estes filmes meio drama, meio palavrão, meio putaria e que, diga-se de passagem, ainda sobrevivem e evoluem no talento de Alexandres Frotas, arrisco a dizer que, na minha posição de espectador-consumidor, parece que o cinema feito no Brasil atual rodopia a grosso modo numa nova tradição pelos extremos: ou produz filmes muito ruins e inúteis, que não agradam a absolutamente ninguém, como as produções de Xuxa (acho que estou enganado, muitas crianças nutridas a base de Cheetos e o pessoal do Quiquito gostam dos filmes da Xuxa) ou então, em um outro extremo, filmes muito bons, mas “cabeça” demais, que agradam somente a pequenos círculos de gente cabeça em momentos cabeça, como “Amarelo Manga”... É claro que também tem uma série de filmes regionalistas aí no meio, nem ruins nem bons, que já enjoei; aquele folclore, aqueles sotaques forçados, aquela choradeira, aqueles atores de novela, aquela caricatura que já deu o que tinha que dar, como Central do Brasil, O homem que desafiou o diabo... Confesso que gostei muito do filme “Cidade de Deus”, roteiro, trilha, atores, e ainda foi bom de mercado. O “Tropa de Elite” foi numa proposta parecida, bom de mercado, bem cuidado na técnica e no elenco, mas caiu numa moralzinha barata que além de botar na conta do Papa também pôs na conta da classe média. Enfim, estou tentando chegar numa panorâmica simplista e lugar comum, de um consumidor típico mediano, frequentador de cinemas de shopping, não muito informado, sem grandes erudições nem reflexões sobre a arte de fazer filmes, e o mais importante, sem fazer filmes. E toda essa introdução para contar duas histórias de guerra que posso imaginar um dia transformadas em filmes, se fosse eu um contista de talento e renome, ou então se aqui tivéssemos, é claro, uma indústria cinematográfica[1].
As duas histórias de guerra que quero contar de forma breve e com uma dose de fantasia, são desdobramentos da Segunda Guerra Mundial que foram parar no Brasil e que tive o privilégio de escutá-las de seus reais coadjuvantes ao longo deste último ano. As duas são assustadoras e terríveis, como uma boa e velha história de guerra.

[1] Confesso estar consciente de minha ingenuidade, de não ser senhor de minhas vontades e de tentar inventar meu mundo ideal onde não haveria o condicional “Se”. Um condicional “Se” também só pode ser inventado, é um falso problema e no contexto desta introdução sei que não é importante.

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O adestrador

Em um navio recém ancorado, dois homens conversam muito próximos, lado a lado, na parte mais alta da popa. A maneira como estão virados para a parte de trás do barco, olhando para o norte, de ombros quase colados, ressalta ainda mais a simetria de suas roupas e aparência. Cabelos muito curtos e alinhados, calça e camisa de manga curta social. Esta mesma cena se repetira algumas vezes durante a longa viagem de quase um mês, quando os dois quase nunca saíram de suas cabines. Outros passageiros comentavam que eram irmãos, alguém mais curioso também poderia notar sua calculada discrição, sempre sozinhos conversando e bebendo na última mesa no elegante bar do restaurante. A rotina não tem sido simples para eles desde o fim da guerra. Há cerca de um ano, um pouco antes do golpe final, já vinham sofrendo com constantes mudanças, viagens sem fim e sempre com muito cuidado na escolha dos lugares e nas pessoas com quem falavam. Eram conhecidos, estavam marcados. Havia um clima de raiva e desapontamento em todas as cidades. Tudo tinha mudado e ninguém mais entendia o que antes era a promessa mais clara. Todo um sonho de 15 anos desmoronava e agora a única possibilidade de sobreviver era se afastar de vez de tudo aquilo.
Antes que o navio continuasse a viagem pelo Atlântico rumo à última capital da América do Sul, um dos homens com duas enormes malas quadradas já se misturava pelo burburinho dos arredores do cais do Rio de Janeiro. Durante a longa fuga rumo ao sul desconhecido, quando já se sentiam seguros e a razão voltava dentro dos velhos afetos, os dois decidiram se separar, decisão que ia para além da precaução e alcançava a vontade que Jürgen Kreuzemacher tinha de aventura. O outro viajante ainda continuaria no plano original até o porto final.
O alemão que passava um pouco dos quarenta anos, agora andava lentamente entre a multidão acalorada da capital brasileira e parecia não se interessar pelo novo cenário. Olhava tudo com distância, mas sem tornar-se repulsivo. Também preferiu, com muita calma, contornar à distância um grupo de militares. Quando estava quase chegando à rua principal e saía daquela algazarra de feira, um rapaz bastante falante se aproximou oferecendo ajuda para levar as malas. Kreuzemacher falava espanhol com perfeição, condizente com seu passaporte argentino e havia aprendido algumas frases básicas no novo idioma. No início relutou um pouco em lhe dar atenção, por razões que jamais poderiam ser capturadas pela atenção fugaz ou conhecimento do rapaz. Mas ele precisava de orientação para chegar na “estação de ônibus” e foi com seu novo ajudante até encontrar um taxista. Achou conveniente acelerar o processo de escapada daquele ambiente de porto e nos metros restantes até o carro mostrou um falso interesse na conversa do moço que não parava de falar, era melhor parecer integrado, interagindo sorridente com pessoas locais do que ficar parado ou andando em círculos e chamar a atenção. Ansiava há muito tempo estar num lugar onde ninguém lhe faria perguntas.
Na rodoviária percebeu um grande fluxo de pessoas, na maioria homens jovens, se amontoando num canto do pátio. Era uma empresa de ônibus que fazia a linha para a região central do país e mandava dois ônibus lotados todos os dias, longe do mar, longe das grandes cidades, uma terra cheia de promessas, de espaço sobrando e trabalho. Jürgen Kreuzemacher não achou nada mais apropriado para sua situação do que se misturar com migrantes; muitos vindos de navio do nordeste ou sul do Brasil, gente que não se conhecia, só preocupados com a própria sobrevivência como ele. Pagou o dobro e conseguiu um lugar já no próximo ônibus para Goiás que sairia na mesma tarde. Um dia e meio de estrada até chegar e o alemão já sentia aquela tranquilidade que sentimos quando temos a impressão de começar algo do início, uma sensação até mesmo fácil de imaginar. Facilitado por sua altura mediana, foi se soltando confortavelmente no assento e pouco antes de adormecer com a cabeça apoiada no vidro, quando o motorista manobrava para sair do pátio da rodoviária, observa impassível dois cães brigando por um pedaço de carne na calçada em frente aos outros passageiros. Ele fecha os olhos devagar.
Em poucas semanas se adapta aos novos hábitos e consegue um bom emprego de caseiro numa fazenda distante alguns quilômetros de uma pequena cidade. Sua educação e polidez o ajudaram muito durante este processo. Kreuzemacher realçou em várias ocasiões sua experiência e facilidade em lidar com animais, o que incentivou o interesse do novo patrão, um filho de migrante, nascido em Goiás e patriarca de uma grande família, todos trabalhadores e moradores da imensa propriedade. O alemão era um homem culto de aparência saudável e robusta aliada a uns leves traços de homem maduro, tudo perfeito para suas novas funções, algumas até então desempenhadas pelo próprio patrão que começava a dar sinais de cansaço. Para ele o novo trabalho era ideal: iria morar numa fazenda isolada, com pouca comunicação com a cidade, longe das perguntas, longe da desconfiança e daí poderia seguir em frente.
A rotina da fazenda não parecia exigente ao recém chegado. Cumpria suas funções e ainda organizava novos trabalhos de um jeito metódico, inclusive logo arranjou tempo e meios de construir um grande canil. O patrão não se incomodava com o silêncio do gringo, que trabalhava quando era preciso, nunca reclamava, parecia honesto, era limpo e era criativo, cuidava dos cães e sabia lidar com os animais doentes. Como os outros empregados também tinha sua pequena casa naquela pequena comunidade. Por ser sozinho ficou com a casinha nova de três cômodos atrás da casa principal, que até sua chegada era usada para os hóspedes. Os outros moradores da propriedade no início se interessaram pela história do gringo, mas aos poucos foram deixando de lado a curiosidade naquele homem quietão de olhos cinzas, muito quieto, que jamais aparecia nos encontros, raramente bebia, e de longe observava enquanto acariciava um de seus cães.
Em meses de trabalho na fazenda, o gringo tinha ido poucas vezes até a cidade, quase sempre para comprar o jornal da capital e ir ao bordel. O patrão e os filhos comentavam sobre ele de um jeito despreocupado, ele quase não existia. Jürgen Kreuzemacher chegara numa posição de respeito, pois era competente, não errava, era obediente, porém não ultrapassava a linha que o mantinha ainda assim invisível. Ninguém podia reclamar dele, ele parecia correto, nada poderia ser dito dele. O patrão pensava no início que o estrangeiro educado não demoraria em tomar iniciativas e ajudá-lo na administração da fazenda, depois esqueceu disso e o gringo se tornou só mais um empregado com suas funções na manutenção do esquema. Aos olhos dos outros, Jürgen se tornava cada vez mais familiar na paisagem. Aquele quietão que entendia de bichos, que tinha pintado todas as casas, construído o canil, parecia estar à disposição para qualquer trabalho, era só um solitário homem sério.
Um dos empregados, o mais antigo, que não fazia parte da família, era o único a observar mais tempo e mais atento os dias do alemão.Era o Jeremias, ou Nego Jeri, um homem nos seus sessenta anos, um matuto que não conseguia ficar perto do gringo. Não sabia porque, mas aquele gringo não era coisa boa. Já imaginava que aquele negócio de falar com os cães com uma língua estranha era coisa arranjada pelo próprio Coisa Ruim. Mais ninguém se metia com a cachorrada que latia enfurecida com a chegada de qualquer estranho. Jeri nunca conseguiu ver os olhos do gringo, eles nunca se encontraram, mas isso só os dois sabiam. E o matuto que não parava de cuspir no chão poeirento andava cada vez mais incomodado. Kreuzemacher não pensava em Jeremias, apesar de saber há tempo que o negro lhe observava, que era um bisbilhoteiro. Na verdade, Kreuzemacher não se importava com ninguém e só seguia a risca sua rotina de trabalho. Talvez fosse essa indiferença tão fria do gringo que incomodava. Não parecia nem contente nem descontente, era neutro, um jeito indiferente, parecia estar ali mas também não. Tinha a mesma indiferença da natureza, do todo, ante os seres e as coisas. Era um ser-coisa ou uma coisa-ser. E era esta sobrenaturalidade que assustava Nego Jeri, que não conseguia achar um nome para o vazio que sentia. Só ficava fazendo o sinal da cruz todo arrepiado.
No meio de uma tarde de sol, como quase todas as outras naquelas paragens, um visitante chamou a atenção do alemão. Um homem de barba mal feita e um pouco manco apareceu e já conversava com o patrão na calçada da casa principal. “Ei gringo! Acalme um pouco essa cachorrada!” Kreuzemacher de longe olhava o estranho enquanto jogava uns nacos de gordura aos cães. O estranho de andar atrofiado, botas surradas e pontudas também olhava tudo com atenção enquanto falava com o dono da fazenda. Deram algumas voltas entre a garagem e o pátio, sempre conversando, falando de preços, de dinheiro e então ele foi embora. – “Quem era patrão?” – “Pelo sotaque não é daqui. Ele queria me vender ração. Eu disse que produzia aqui mesmo e que não precisava, mas tive que mostrar e explicar tudo. Um coitado.
Quando caiu a noite Kreuzemacher sabia que precisava ir até a cidade. Tinha que encontrar esse homem. Como de costume, se arrumou e com o cabelo cuidadosamente penteado para o lado, pegou a bicicleta e foi ao bordel. Já era cliente conhecido, cumprimentou as amigas com uma palavra e sentou-se perto do balcão. – “Chegou cedo hoje alemão... Já te chamo ela...” – “Não. Hoje não. Só quero beber um pouco.” E sem falar mais nada só ficou lá no meio do bordel sentado e esperando. Depois de cerca de meia hora dois homens com as botas imundas entram e pedem cachaça. Como ele imaginara. O estranho vendedor de ração agora bebia e conversava com o outro quando lhe notou na mesa ao lado. “Que foi alemão? Nunca viu um homem?... Espera aí... Eu já te vi... Tu trabalhas lá na fazenda.” Sem dizer nada Kreuzemacher concorda com a cabeça. – “Que foi? O gato comeu tua língua seu Caga Nata? Vem aqui! Quero te perguntar umas coisas!” O alemão juntou-se aos dois homens e logo viu que o manco não era mesmo vendedor de nada. Então começou a inverter a conversa. Disse que não gostava de trabalhar na fazenda, que era explorado, nunca era pago... O manco põe a mão nos ombros do estrangeiro e diz: - “Eu sei como é isso. É tudo sacanagem! Gringo, a minha história é outra...” Kreuzemacher espera alguns segundos até falar a meia voz: – “Já entendi tudo. Se quiser posso ajudar.” Os dois homens se olharam largando os copos no balcão e se viraram juntos para o gringo que não mexia um músculo. – “Entendeu o quê alemão?” Sem alterar a expressão, como um autômato auto-confiante em completo desdém pelo seu interlocutor ele responde: - “Entendi que vocês vieram até aqui para assaltar a fazenda. E eu posso ajudar.” Os dois se olharam de novo com os olhos arregalados e com a pele do rosto já roxa deram um soco no balcão soltando uma grotesca gargalhada. Kreuzemacher mexeu os lábios esboçando um sorriso enquanto pegava no copo. – “Então acho que agora temos assuntos a tratar gringo doido!” E continuaram rindo. Naquela mesma noite, antes de voltar à fazenda, Kreuzemacher falou pela última vez com os dois ladrões: - “Vai ser, tem que ser neste fim de semana! Todos estarão lá! Em três nós podemos pegar tudo! Vai ter muito ouro! Não vai restar nem o nome pra contar a história!
Na noite de sábado, como Kreuzemacher sabia, estava prevista há semanas uma grande festa de aniversário onde todos os membros da família se encontrariam. Assim que o sol se escondeu atrás do cerrado, os parentes foram chegando alegres, junto alguns poucos amigos de cidades vizinhas. Nada naquela noite morna e cheirosa que se formava na fazenda poderia imaginar o horror que logo começaria. As bandeirinhas no varandão, a casa branca com frisos azuis, os abraços de boas vindas, o som dos sapos e da água da pequena lagoa, as gargalhadas na subida dos degraus, os risinhos das crianças... Este mundo não poderia imaginar o terror de outros mundos distantes... Um pouco antes do jantar ser servido, as mulheres estão entre a sala de visitas e a cozinha, preparam a mesa e conversam alto, alguns homens fumam com o patrão na sala de trás, uns jovens bebem animados na garagem junto à churrasqueira, as crianças passam correndo e exploram todos os cantos, dois empregados com suas famílias estão em suas casas e Jeremias ainda acaba de limpar as ferramentas, sozinho lá pelos lados do estábulo.
Com passos firmes, em sua melhor roupa e com os cabelos escrupulosamente alinhados, o gringo entra sem se anunciar pela porta do casebre de um dos empregados e, antes que a surpresa mulher possa reagir, de olhar fixo e lábios apertados enterra uma faca aguda na altura do seu coração, lhe tampando a boca. Vai até o cômodo do lado e faz o mesmo com o marido que se vestia. Lava as mãos rápido, sai da casa e tranca a porta. Do mesmo modo, um minuto mais tarde vai até o outro casebre. Entra muito rápido e encontra o casal na cozinha. Com a mão direita dá um soco no rosto da mulher que cai desacordada, ao mesmo tempo que revela a faca, enterrando com toda a força na fronte do homem. Depois se ajoelha mecanicamente ao lado da mulher no chão e mira no coração. Dali vai até a garagem e vê cinco jovens embriagados. Finge pedir ajuda e atrai um a um para a parte de trás do galpão, onde vai matando todos na escuridão e no silêncio. Ao voltar à garagem encontra Jeremias que num susto tenta se desviar. O gringo dá um passo pro lado, olha frio para o negro aterrorizado e girando o corpo veloz agarra o pescoço do homem, enfiando a faca fundo na espinha. Nego Jeri amolece as pernas e cai no chão inconsciente. Bufando como um louco, o alemão mete a mão na boca de sua vítima e lhe arranca a língua. O assassino agora vai rápido até o portão da frente e com uma lanterna dá o sinal combinado com os ladrões que esperavam no meio do mato do outro lado da estrada. Os dois aparecem armados e se encontram todos na porta da frente da casa. Numa histeria absurda entram gritando e mandando todos para a pequena sala dos fundos. O patrão não entende o que o gringo fazia ali, todo sujo de sangue, será que estava ferido?! Entre os gritos ouve-se o primeiro tiro e cai um homem. Em desespero todos se empurram para dentro da sala, tudo em poucos segundos, todos convidados amontoados, apavorados, algumas crianças, todas mulheres, todos os homens. Kreuzemacher reaparece na porta: - “A gente vai libertar um a um... Vem aqui! Você primeiro!” E puxa uma mulher pelo braço até a sala de visitas. As vítimas são levadas uma a uma, homens, mães, filhos, filhas, ameaçadas pelas armas e assassinadas a facadas pelos diversos quartos da casa. Os últimos homens presos no quarto dos fundos não entendem o horror e são executados entre gritos de desespero com as armas de fogo. De repente, após o último estouro, só restaram alguns gritinhos pelo pátio. Kreuzemacher foi ao escritório do patrão, pegou uma pistola e então os ladrões, um ao lado do outro no corredor da casa, não acreditavam no que viam. O gringo assassinava as crianças que chegavam correndo e antes que os dois pudessem reagir já estavam sob a mira da arma, e foram executados.
Nego Jeri ainda estava desacordado no terreiro quando o assassino reaparece na varanda da casa. Nada mais resta da família, todos os amigos mais próximos estão mortos, todas as crianças, todas as mulheres, os empregados, os filhos, o patrão, a mulher, os ladrões. A noite continuava morna, mas o silêncio era estranho. Jürgen Kreuzemacher anda direto até Jeremias, joga um balde de água e apunhala seu abdômen. “Acorda preto. Pra tua raça tenho algo especial que não faço há muito tempo!” Quase sem força para abrir os olhos o homem caído repara que tem os braços amarrados para trás e está dentro de um carrinho de mão. Sem sentir nada, vê suas próprias pernas moles que vão se arrastando no chão. Grita de horror, não sabe que não tem mais ninguém. Não consegue se debater, não entende mais sua voz. As imagens se confundem, não entende por que está no carrinho. Por quê o gringo está abrindo o canil. Kreuzemacher ajeita o carrinho na porta e deixa o homem com os olhos arregalados escorregar. Sente um puxão no corpo e em choque acha que vê os cães destroçando suas pernas e então sai de sua garganta um grito que nunca ouvira. Cai no chão em espasmos pavorosos. Tudo está dormente e a dor vem em ondas. O adestrador fica até o fim dos gritos e observa os três cães famintos disputando o corpo arrebentado.
No bolso da calça estraçalhada estava um documento de identidade militar coberto de terra e sangue, onde quase não se via mais seus símbolos antigos muito conhecidos naquela época. Dois SS cruzados dentro de uma coroa de folhas de carvalho, sobre a coroa uma águia de asas abertas, com a cabeça voltada para a direira.

Este conto baseia-se no seguinte relato: com o fim da Segunda Guerra Mundial, dois ex-oficiais nazistas fogem para a América do Sul. Um deles, um adestrador de cães do exército de Hitler, se isola numa propriedade rural de Goiás como empregado. Depois de alguns meses na fazenda, o alemão assassina todos os membros da família proprietária e passa a utilizar o sobrenome e os bens de suas vítimas...


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Baependi

Ao tatear as paredes dentro de um prédio escuro, um homem ainda jovem acha conhecer aquele lugar, mas não tem certeza, com base em suas lembranças o próprio tempo se cruza naquele cenário que parece ter um pouco de vários lugares. Apesar de não estar ansioso, esfrega os olhos e pisca várias vezes tentando ajeitar sua visão embaçada, caminha devagar por uma claridade difusa e nem pensa se pode ser dia ou noite, sente seu corpo com mil toneladas. Pensa que pode estar sem os óculos... Não é isso, está de óculos e agora encontra um grupo de pessoas e entre elas um amigo do passado. Está muito feliz e lhe dá um abraço demorado, chora com toda sinceridade por encontrá-lo e enquanto aperta as mãos do amigo sorrindo repara que não reconhece mais ninguém ao redor deles. Já estavam num outro lugar agora, num tipo de saguão. Mas como foram se encontrar? Onde estavam afinal? O homem pensa que aquilo não faz o menor sentido, onde estão? O que é isso? Mas é claro!!! - “Rápido! Estou sonhando! Preciso segurar alguma coisa!” Na infância ele voava, ou melhor, nadava no ar, corria para pegar embalo e planava a baixa altura, então se atirava de penhascos e caía devagar, como era maravilhoso aquele friozinho na barriga, mal ficava sabendo que sonhava e já queria sair voando! Bem depois, tinha aprendido que ao segurar algum objeto durante um “sonho consciente” dá para permanecer mais tempo no controle do sonho, fica mais fácil, ou menos difícil de não acordar e assim poder explorar as possibilidades que só num sonho pode-se ter. Já havia conseguido o controle algumas poucas vezes e sempre que lhe ocorria este lampejo de consciência dentro do sonho e procurava algo para segurar e fazer a “ligação física” com o sonho, olhava para o chão e lá encontrava um montinho de gravetos. Um montinho de gravetos bem finos prontos para o fogão à lenha! E isso já acontecia pela quarta ou quinta vez. Sempre aquele montinho arrumado de gravetos lá esperando no chão. O homem estava perdido nestes pensamentos, ávido e se agarrando ao sonho com os pauzinhos apertados em sua mão, quando tudo se transforma. De novo, anda dentro de um corredor escuro, é muito difícil ficar em pé, outras pessoas estão ao seu redor, caem e batem em suas pernas; onde está?; esbarram em seu ombro, ele mesmo cai e continua se apoiando nas paredes. Em um grito vindo de longe o soldado finalmente se reconhece e entende onde está. Sente uma dor insuportável nos ouvidos. Estava mesmo acontecendo. Não consegue mais avançar nem mesmo se levantar, sua cabeça encosta no teto e outros homens começam a cair sem parar sobre ele, o chão treme e se abre abaixo, então o soldado apoiado nos cotovelos abre bem os olhos e grita acordado no meio do fogo.

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O sol acabava de sumir, as luzes da Baía da Guanabara acendiam aos poucos e lá andavam dezenas de soldados em farda verde para longe do navio, ganhando a cidade. Só naquela semana já era a terceira vez que esta cena se repetia, o terceiro alarme, a terceira convocação de emergência. Tudo estava pronto, todos os equipamentos para a guerra estavam a bordo, as longas manhãs de espera em forma, as despedidas que se prolongavam agora por mais de um mês e mais uma vez os soldados saíam dispensados para a noite. A última ordem de sempre: 5h em ponto no pátio do cais para a revista e inspeção. Já tinham ouvido esta ordem mais de dez vezes no último mês, mas o Baependi ainda continuava respirando firme, bem ancorado nas águas frescas do agosto carioca.
Nos últimos dias tem se comentado que alguns navios foram atacados no nordeste, com certeza por submarinos alemães. Porém, alguns soldados, que ouviram de outros soldados, que ouviram de alguém, que sabia de casos vindos lá das terras de Natal, contavam uma outra história a meia voz: “Os americanos nos querem na guerra.” Os dois jovens militares repetiam esta frase desde a noite anterior e ainda não sabiam do que se tratava. Sabiam da guerra contra os alemães e que um barco os aguardava para levá-los até ela. Não entendiam bem isso que diziam dos americanos, só sabiam que tinha uma base americana na ponta do nordeste que servia para poder decolar de avião e atacar na África. Quando já perambulavam pelos contornos ondulados do calçadão de Copacabana, também sabiam que teriam mais uma longa noite até se apresentarem à unidade na manhã seguinte.
Cabo Hernandes fora incorporado ao exército para serviços burocráticos por causa da guerra e Sargento Cordeiro já havia iniciado a carreira militar há algum tempo por tradição familiar. Os dois amigos na casa dos 25 anos eram um pouco mais velhos que a maioria dos convocados e chegavam como os irmãos mais experientes, nascidos e conhecedores da capital, sabiam o que fazer e aonde ir para passar as vésperas do combate. Nestes tempos de guerra e espera, mesmo distantes das explosões e das mortes que assolavam a Europa, África e Ásia, os soldados recém convocados sentiam crescer dia a dia o peso da expectativa. Quanto a Hernandes e Cordeiro, eles estavam naquele lugar muito complicado dentro de uma instituição. Ainda pareciam jovens adolescentes cheios de curiosidade e disposição para passar noites e noites esbanjando vida, mas também não eram mais subordinados tão inexperientes e estranhavam o que era estranho. É claro que não desperdiçariam aquela noite de vigília, como também não desperdiçaram as outras, e como um convocado ao combate, em mais uma véspera de ir à batalha, festejam a despedida. “Mas que merda é essa de navio torpedeado?!” “Garçon! Traz mais uma que amanhã vamos pra guerra!!!”
Os dois soldados estavam animados em um requintado salão da capital e a noite avançava fácil. Depois de horas avançadas, iam restando pelas mesas e pendurados no balcão alguns soldados, alguns músicos recém chegados de outras festas, atores, outros charlatões, também uns figurões de bengala e bem acompanhados e é claro, uma mesa inteira colorida com a fina flor da beleza polaca. Ah... Aquelas mulheres exuberantes e educadas, naquela noite a volúpia e a cortesia estava disfarçava de leque e chapéu. Cabo Hernandes e Sargento Cordeiro eram senhores e já contavam com a vitória no momento em que se aproximaram sorridentes. E foi o que aconteceu, quando num piscar de olhos estavam perdidos, a salvo, entre esmaltes, batons e as mais perfumadas lantejoulas. Não se sabe por quanto tempo ali ficaram e depois por quanto tempo andaram brincando com a areia. Só os primeiros raios na curva do mar para despertar os dois soldados e fazer as branquíssimas estrangeiras derreterem como cera, até sumirem na esquina do hotel... “Vamos ao Baependi!”
Correram como loucos por todos os atalhos possíveis, cortaram túneis e descobriram as mais desviadas escadarias vigiadas pelo próprio Cristo de braços abertos e crucificados. A manhã chegava devagar junto com um forte cheiro de fumaça vinda do cais e os dois homens corriam e riam: “Viva o Brasil! Viva a Polônia!” –“Vamos para a guerra!” Ao dobrarem a última ruela, um som grave de despedida finalmente saia das entranhas de madeira e ferro do velho vapor. Antes que pudessem chegar, o Baependi já se afastava com centenas de lencinhos. Hernandes e Cordeiro viram emocionados de longe a unidade de meninos soldados, na parte mais alta do navio, sacudindo suas boinas verdes, entre dezenas de outras famílias, crianças e tripulantes atarefados correndo pelo convés. O som foi se tornando mais raro e mais grave e no fim da festa no cais, o paciente Baependi ganhava força fumando como um índio velho e então ia rumo nordeste com sua preciosa carga.
E assim restaram aqueles dois queridos soldados sozinhos no porto, para poderem ter uma vida inteira e contar a história.


Fato Histórico: O Brasil ainda não tinha entrado oficialmente na guerra quando o Navio Baependi foi torpedeado duas vezes na noite de 15 de agosto de 1942 [2] ao navegar rumo ao Recife, em águas revoltas a cerca de 30 quilômetros do litoral de Sergipe. Após o ataque, atribuído a um submarino alemão, o navio levou menos de 5 minutos para afundar. Dos 306 passageiros a bordo, a maioria civis, famílias e crianças, além de uma unidade do exército, somente 36 sobreviveram. Todas as crianças morreram. Na mesma noite também foram atacados os navios Araraquara e Aníbal Benévolo, somando 551 mortes em menos de 10 horas.[3]

Dois soldados não chegaram a tempo para o embarque.



[2] A data desta publicação no blog é alusiva aos 68 anos da tragédia.
[3] Para saber mais leia o livro O Brasil na mira de Hitler, do jornalista Roberto Sander (Editora Objetiva).

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Leandro Gaertner
Itapema, julho e agosto de 2010.