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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Arquivo X: Bibliotèque nationale de France

Segue abaixo um relato verídico de uma professora aparentemente normal, mas que sem medo do perigo, com a audácia de uma Indiana Jones da musicologia consegue enganar droids e aliens da segurança, transpor portas a prova de bala, descer montanhas de aço a profundezas que fariam o próprio Júlio Verne tremer, decifrar cada gesto e olhar das esfinges guardiãs do oráculo sagrado, para finalmente adentrar nas câmaras secretas da Bibliotèque nationale de France... de salto alto e Longchamp... ===========================================================

Estou acostumada a frequentar a BnF da Rue Richelieu, dept.de Musique, onde tudo é calmo e lento, mas dentro dos padrões da normalidade (francesa). O chercheur é instalado numa mesa, preenche os formulários de pedido de micro-filme, e/ou , como é o meu caso mais recentemente, os "dossiês" do Fond Montpensier. Este, consta de caixas separadas, uma para cada país, com recortes de jornais e programas, separados em pastas entituladas "pianistas", "compositores", "concertos", etc...; só podemos pedir 10 pastas por dia, examinando uma e devolvendo ao atendente para receber outra, e assim por diante; mesmo que por vezes haja apenas 1 recorte de jornal na dita pasta. No caso dos microfilmes, após o preenchimento do requerimento - como para as pastas, 1 requerimento por bobina - geralmente aproveitamos a espera para examinar algum periódico ou livro acessível nas estantes, até que silenciosamente, alguém se aproxima da nossa mesa e deposita discretamente um bilhete indicando a sala onde podemos ter acesso ao microfilme, que esta lá, esperando por nós. Tudo isto pode parecer extremamente surrealista, mas acostuma-se; principalmente quando finalmente temos acesso aos documentos e ficamos maravilhados com os achados.

Pois bem, em julho deste ano, precisava ter acesso a certos materiais áudio-visuais - entrevistas, gravações de programas ao vivo, etc...- e para isto, dirigi-me à biblioteca François Miterrand, no 13e. Uma obra impressionante de arquitetura moderna pelo tamanho e pelo mistério. A entrada é dificil de achar, e ao chegarmos, a recepção é tão ampla e cheia de possibilidades - guichês, computadores, salas, corredores...- que achei melhor pedir informação a uma da antendentes antes de sair perambulando em busca do Rès-du-jardin, onde se encontra a Section Audiovisuel. Lá fora, já existe uma seta, indicando a direção deste lugar que pelo nome sugere "Shangrilah", ou algo parecido, mas como todas as setas naquele país, não indica précisément a direção a seguir.

Obviamente, só os "escolhidos", ou seja, quem tem a carteirinha de chercheur, pode acessar esta parte da biblioteca, e assim, a atendente me indicou a entrada e o sensor eletrônico onde deveria passar meu cartão para poder transpor as portas blindadas e altíssimas localizadas à extrema esquerda de quem entra na Biblioteca. Pois bem, assim fiz, esperando encontrar do outro lado das portas, uma sala de leitura ou algo parecido.

Não.

Vi-me fechada num espaço inteiramente blindado, sem portas ou janelas, e uma Looooooooooooooooooooooooooooooooooonga escada rolante - sentido descendente. Muito descendente. Paredes blindadas dos dois lados. Respirei fundo e desci. Ao final da escada, um outro hall, onde passei por outro sensor eletrônico, e novo balcão de atendimento, onde fiquei sabendo que precisava de uma reserva do material que desejava investigar, para então poder passar por outro sensor que me daria acesso às salas de leitura. A reserva pode ser feita através dos computadores localizados ali mesmo no hall, ou, da minha casa, pela internet. Acessei os computadores e separei alguns itens. Ao terminar, fui informada que, apesar da seção ficar aberta até as 20hs, os pedidos só podem ser feitos até as 17hs. Eram 16hs45. Forget about it.

Mas a atendente, muito gentilmente me permitiu passar o cartão por mais um sensor e transpor outra porta blindada altíssima, para ir até a seção audiovisuel ao menos para "assuntar". As portas se abrem e eu me vejo à frente de três corredores imensos, iluminados por luzes fluorescentes azuis e nenhuma placa ou seta. Achei a seção após alguns minutos de guessing game e dirigi-me à atendente da seção, para já acessar o arquivo e deixar minha reserva feita para o dia seguinte. Consulta e reserva puderam ser feitas colocando meu cartão em outro sensor localizado ao lado do computador, e resevando apenas 7 itens - não mais - mesa e horário. Perguntei então como fazer para acessar de casa, visto que não possuo o sensor para ler meu cartão. Lógico, estava indicado, precisamos de um ALIAS (código ou senha, criados ali mesmo para este fim). Perguntei a ela como fazer. A atendente, que trabalha nesta seção para dar assistência aos pesquisadores, não fazia a mínima ideia - désolée. Aparentemente, consegui all by myself , criar um ALIAS. Ainda não tentei reservar de casa; farei-o antes de minha próxima viagem, para poupar tempo. Se funcionar, prometo que divulgo aos quatro ventos. Vale a pena.

Esqueci de dizer que, antes de transpor o primeiro sensor lá em cima, na entrada, temos que deixar casacos e sacolas no vestiaire. A bolsa de mão só pode passar conosco se tiver uma determinada dimensão; senão, devemos deixá-la lá também, e eles providenciam uma pasta de plástico para carregarmos nossos pertences mais preciosos conosco. Evidentemente, quem pensou nestas medidas (15cm por 15cm) não acompanha a moda feminina; nenhuma bolsa atualmente tem estas medidas. Todas são muito maiores; a atendente, logicamente sabe disto e me ensinou o truque : amasse os lados da bolsa, que geralmente são fofinhos, e ela fica do tamanho requerido e ninguém perceberá que você esta na verdade "burlando" o controle da biblioteca em nome da moda.

No dia seguinte, estava lá, o material estava a minha espera na mesa, e acessei todos os vídeos que queria . Assisti entrevistas e programas de divulgação de música contemporânea com Claude Helfer, Boulez, e outros. Mas a sensação dos "contatos imediatos de 3° grau " continua.


Madame X

Outubro de 2010.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Porte ilegal de flauta

Já perdi diversos objetos no raio-x dos aeroportos. Por puro descuido e esquecimento tentava entrar num avião com um saca-rolhas ou com uma moderna chave de fendas dentro da mochila. Então, com aquele sorriso amarelo e compreensivo, entregava minhas aquisições pontiagudas aos fiscais da segurança de voo. Nunca fui perguntar para ninguém da área, mas imagino que ser funcionário da alfândega ou o pessoal do raio-x do aeroporto tem suas belas vantagens: já soube de funcionário implicando com caixas de vinho para consumo pessoal... Que chato deve ser apreender uma caixinha de vinhos bem escolhidos numa das lojas “Nicolas” de Paris... Ou então implicar com cremes comprados no Duty Free, devidamente embalados e grampeados. Isso não importou aos funcionários do Aeroporto de Lisboa. Mas repare na estratégia deles: você chega em Lisboa com compras de cremes e perfumes numa sacola lacrada do Duty Free de Recife, por exemplo. Os guardas do aeroporto dizem que a quantidade é ilegal para ser levada como bagagem de mão e obrigam o passageiro a despachar os produtos. Misteriosamente quando abrimos a mala em casa notamos que ela foi revirada e que alguns dos cremes sumiram. Por isso lembre-se, se isso acontecer, passe o cadeado na mala, é bom não contar com a sorte de encontrar um funcionário honesto.
Mas isso não tem nada a ver com o detector de metais e o raio-x. Lembro bem de um episódio muito engraçado no aeroporto de Florianópolis alguns anos atrás, acho que em 2003. Na noite anterior a uma viagem de turismo familiar para Natal toquei num concerto em Florianópolis e no repertório tocamos o famoso concerto para violão de Joaquim Rodrigo, aquele do famoso solo de corne-inglês no segundo movimento. Por coincidência o tocador de corne-inglês do nosso concerto era importado de Porto Alegre e acabamos nos encontrando no aeroporto na manhã seguinte. Lá estávamos nós, com objetos estranhos dentro de nossas mochilas, instrumentos de sopro pontiagudos e ameaçadores tentando passar pelo crivo do raio-x. A flauta passou bem e as caixas do oboé e do corne-inglês também, mas a caixinha de ferramentas do meu colega, com suas minúsculas chaves de fenda e afiados estiletes, inevitavelmente criaram a tensão de um ataque terrorista em potencial. Então, o músico das canas polidas se viu obrigado a pegar uma de suas palhetas e demonstrar aos atentos funcionários do aeroporto de Florianópolis a serventia de suas ameaçadoras lâminas, tirando uma lasquinha de madeira e fazendo aquele som peculiar das palhetas sem o instrumento. Foi um verdadeiro show que o autorizou a entrar no avião com todas as armas.
É claro que fazer o que ele fez não é assim tão complicado e naquela época ainda contávamos com a ingenuidade do sistema. Porém isto não é mais possível. Nesta minha última vinda a Recife, três dias atrás, tive uma surpresa. Como sempre, coloquei minha flauta na mochila que pretendia colocar dentro do avião, um pouco acima de minha cabeça, não longe dos meus olhos. Alegre e faceiro como um Mr. Bean dos manguezais catarinenses atravessei o detector de metais e aguardava do outro lado a chegada da esteira com minha mochila e sua preciosa carga. Foi quando a guardiã da segurança me perguntou: “Isso é uma flauta?” Num pensamento estranhei que ela sabia o nome do meu instrumento, coisa rara nesses lugares. Disse que sim e então vi que o mundo tinha girado mais um dente de sua enferrujada engrenagem rumo ao futuro. “Você não pode levar seu instrumento com você, precisa despachar como bagagem.” –“O quê? Mas por quê? Eu sempre levei comigo!” Numa rápida e civilizada discussão todos soubemos que eu tinha vindo da França no fim de junho, que essa lei era nova e tinha cerca de um mês, que proibia o porte de objetos metálicos circulares e compridos, como uma flauta transversal. Imagine então os estiletes do meu colega oboísta... Confesso que já sabia que a flauta é realmente uma arma em potencial. Amasse o bocal com jeito e tenha uma bela faca de prata maciça, ou tire as chaves do corpo do instrumento, depois amasse engenhosamente e tenha quase uma lança. Isso eu penso sempre quando entro num banco e preciso conversar com o segurança por causa do detector de metais da porta giratória. Abrindo a caixa da flauta em frente aos olhos curiosos dos vigias já tive a sensação de quase conseguir um aluno. Se realmente eu for profissional, montar e tocar um pouquinho, acho que já conseguiria a confiança instantânea, tipo aquela amizade frouxa e despreocupada de desconhecidos que vão com a sua cara, na melhor das hipóteses talvez até mesmo do gerente do banco. Depois de algumas semanas é só entrar armado e fazer a festa fantasiado de flautista de Hamelin. (Acho que essa estratégia não foi tentada ainda nem em Hollywood)
Três dias atrás no aeroporto de Florianópolis, acusado por porte ilegal de flauta, tive que correr emburrado até o balcão da companhia aérea, e despachar minha mochila com a flauta e minha querida pastinha amarela “Flauta Solo”, com as Fantasias do Telemann, Sonatas da Família Bach e outras. Ao finalmente sentar muito mal humorado na poltrona do avião, ao ponto de pensar “se essa merda cair, caiu...”, e já começar a ficar entediado com a espera e ter que me contentar com a revista da própria companhia, lembrei do livro que pretendia continuar lendo e que agora também estava amargando o desconforto no porão do avião: um livro de Shlomo Sand “Comment le peuple juif fut inventé?”(Como o povo judeu foi inventado?”), que comprei junto com o livro de Paul Veyne, que já terminei de ler, “Quando o nosso mundo se tornou cristão”...
Mas também pensei numa outra possibilidade para o confisco intransigente de minha flauta. Que talvez os funcionários do aeroporto de Florianópolis não queriam mesmo era o perigo de um flautista com sua flauta a bordo: vai que o flautista desata a estudar a terceira oitava em pleno voo, ou pior ainda, fica travado num dos compassos do terceiro movimento da sonata do Poulenc! Como minha família já teve paciência comigo...

Leandro Gaertner
Recife, 8 de outubro de 2010.
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