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sábado, 11 de abril de 2009

Dr. Jekill na classe média (Conto)

[1]

I Jekill[2]

Dr. Jekill não se altera quando anda pelas ruas da cidade, porém isto não significa que não explode por dentro. Os outros cidadãos não podem nem suspeitar que aquela figura comum caminhando rápido e cadenciadamente entre eles encerra um desgosto quase ao ritmo de seus passos.
-Que horror! Está tudo errado!
São raros os momentos que esta frase não lhe vem à cabeça quando observa o movimento à sua volta. Num primeiro olhar externo pode ser mesmo um pouco extravagante dar tanto valor e criticar as banalidades práticas e necessárias à vida em grupo se é levado em conta uma outra realidade adversa, como uma guerra, uma tragédia natural ou uma epidemia, mas a verdade é que neste momento e mesmo nesta realidade Jekill corroe-se! Isto deve ficar bem claro aos leitores para que não haja uma má e raivosa interpretação quanto às angústias deste pobre diabo, que desabafa um queixume em cada esquina. Apesar de nunca ter vivido uma guerra ou ver seus amigos conterrâneos soterrados por um terremoto ele entende, pelo menos racionalmente, as terríveis implicações dessas situações e não discute a infinita superioridade de problemas e dor causada por elas se comparadas aos corriqueiros atravancamentos desta sociedade. Dentro de uma escala de atrocidades, as incomodações de Jekill poderiam ser enquadradas como secundárias ou penúltimas. São as irresponsabilidades e atentados imediatamente anteriores ao caos generalizado.
Como fica evidente em sua frase, para Jekill o erro está em todos os lugares. O mais surpreendente é o grau de conservação e manutenção desta condição super excitada, como a de um dono de cachorro bravo que vai liberando a corrente aos poucos, exatamente o tanto para que o animal jamais consiga alcançar o osso, sem, no entanto provocá-lo ao ponto de um ataque feroz contra sua mão. É bem possível que esta sensação de impotência seja comum a um grande número de pessoas, mas ainda não é a melhor hora para falarmos dela. Talvez partindo de coisas menores e exclusivas fique mais fácil compreender os tormentos do nosso personagem, sem descartar, naturalmente, que mesmo estas observações individuais podem ser também compartilhadas.

II Perfumes

Uma das coisas mais simples e aparentemente bobas, para alguns até mesmo uma birra excêntrica ou pura infantilidade, é o desafeto de Jekill com o uso indiscriminado de perfumes. Nós, Homo Sapiens, somos em sã e reflexiva consciência essencialmente mal cheirosos, já bastante na superfície externa e insuportavelmente nas substâncias que transformamos e expelimos do nosso interior. Um corpo humano saudável fede através de infinitas variáveis históricas, culturais, alimentares, geográficas e, de forma mais interessante, através das variáveis particulares. Logo explicarei todas com exemplos práticos e sucintos para que não restem dúvidas quanto ao posicionamento de Jekill. Segundo nosso aparentemente neutro e inodoro confessor, um avesso aos borrifos exagerados, ao entrarmos num elevador ou mesmo num simples passeio na praia, corremos o risco de nos apropriarmos contra nossa vontade primária de detalhes íntimos alheios. Se um outro se perfuma sem escrúpulos, acabamos por saber suas preferências nos prazeres físicos interpessoais, suas finanças, acuidade nas sutilezas, seu grau de egocentrismo, além de sermos forçados a esquecer por preciosos instantes todos nuances do local onde estamos, nos concentrando finalmente no rastro deixado pelo perfume.
Todas as variáveis do cheiro confundem-se e são a princípio interligadas, mas aqui cabe uma tentativa de discriminação. A histórica refere-se sobretudo à nossa interpretação do passado, quase sempre sujo, mal cheiroso e sem um acesso fácil aos líquidos perfumados e aromas delicados. Nossos antepassados tomavam um banho por semana e nos filmes todos os medievos passam a trama, que pode durar semanas, com as unhas pretas e manchas de carvão pelo corpo. Este clichê certamente deturpado é apenas uma pequena introdução para dizer que esta variável é a que menos pesa nas conclusões de Jekill devido à sua ignorância quanto aos odores do passado e de suas muitas e desconhecidas variáveis contemporâneas, que como na música, jamais serão desvendadas por completo. A despeito da distância de nossos dias, certamente um estudioso dos aromas como um músico purista podem muito bem assumirem uma outra posição quanto a seus objetos de estudo e, afirmarem sem erro que, respiram o ar e percebem os ruídos dos séculos passados.
A variável cultural para os odores assemelha-se muito a alimentar e com facilidade se confunde à geográfica, mas ainda é possível citarmos um exemplo específico saído da boca do higiênico Jekill. Como todos sabem a França é uma das nações mais massacradas neste assunto e, apesar de pessoalmente considerar a palavra “cultural” demasiado arriscada e repleta de implicações, respeitarei a vontade de Jekill e continuarei com sua observação referente ao “hábito cultural” dos franceses e sua diferenciação lingüística para “se lavar” e “se banhar”, sem entrar por conta própria em conceitos especializados como habitus, cotidiano, cultura social e transformações histórico-culturais. Segundo ele, os franceses de hoje, e isto significa os franceses de verdade, ainda tomam um banho mais leve e diário, uma ducha rápida e econômica para limpar a poeira da jornada e, semanalmente, ocorre o que eles chamam de “se banhar”, aí sim entram na banheira e ficam de molho inclusive dando um bom trato nos cabelos. Não está muito claro o tipo de transformação histórica para a consolidação dessa enorme fama mercadológica dos perfumes franceses, fora as brincadeiras e a tentadora redução de que “os franceses não tomam banho e por isso usam tanto perfume”. Este é também somente mais um pequeno exemplo das inúmeras variáveis às quais os vapores humanos estão condicionados.
A pele áspera ou lisa, com os pêlos espalhados pela superfície, porém a maioria concentrados em regiões específicas, geralmente estas detentoras dos mais altos graus de odor, exala sem parar refletindo também tudo o que comemos. Ao comermos curry durante uma semana inteira, provavelmente o cheiro vindo das axilas se tornarão peculiares e nossos interlocutores, se não forem da cultura indiana, poderão nausear-se e reclamarem um perfume. Seguindo este raciocínio, podemos sugerir numa brincadeira maldosa que, em vez da França produzir tantos perfumes, poderia produzir menos lingüiças de intestino suíno. Aqui também está claro para Jekill que não importa o que passamos para amenizar nossos odores, eles estão lá! Ao ver um humano aproximando-se a sensação pode ser aterradora! Uma massa móvel com panos sobre uma camada disforme de pele, com pêlos, alguns até cerdas, cistos, verrugas, hematomas, sinais, cicatrizes, secreções e orifícios que, se examinados com minúcia seriam a causa dos piores acessos de repulsa. Jekill passa por um desses com o cuidado de tornar o encontro o mais breve possível, mas é inevitável a flechada que suas narinas, garganta, olhos e finalmente, o cérebro recebem sem misericórdia. Ele precisou ser lembrado que fedemos e, ainda mais, ser lembrado que “Ei Jekill, eu não te conheço, mas você terá que me cheirar de qualquer forma. Veja como é bom meu perfume! É francês!”.
Uma outra forma de compreender os odores do corpo é regida pela nossa localização geográfica. Essa talvez seja a mais óbvia e perceptível das variáveis, pois o calor sempre provoca as erupções mais violentas e o frio estanca os líquidos sob o couro. E como é de nossa natureza utilizarmos nossa racionalidade das maneiras mais inesperadas, inventamos regras que são limítrofes ao mal estar físico. Um habitante dos trópicos estará naturalmente sujeito às exalações diferenciadas daquelas dos habitantes de regiões temperadas ou polares, porém sem prestarmos muita atenção a isto, pelo menos não nas vias práticas, nos cobrimos de pano para uma festa no verão, aceitando a proibição dos desregrados; por cima o perfume, as sedas e os linhos, por baixo o suor, a murrinha e o azedume. Por isso nossas melhores, mais caras e aguardadas festas não levam a nada além do cansaço, bebedeira e aos pés roxos pulando descalços numa alegria forçada. Propulsor de um movimento mais vicioso que virtuoso este ramo do mercado, a moda da indumentária e da aparência, não colabora ou muito pouco faz pela verdadeira elegância, esta necessariamente ligada ao bem estar e à beleza concomitantes. Continuando neste breve desvio, certamente daqui a duzentos anos irão achar nossa sociedade grotesca por produzir bulímicas e anoréxicas morrendo de fome voluntariamente como nós hoje rimos dos penteados de um metro e meio de altura na moda aristocrática francesa do século XVII, que favorecia o acúmulo de insetos e abrigava ninhadas de rato. Ainda quanto às grandes festas, que são muito mais próprias ao encontro dos pequenos e ariscos grupos com relações já estabelecidas previamente, podem se tornar algo válidas somente ao convidado que possui um esquema arranjado para o flerte e chega no salão esperançoso para o que pode acontecer após a festa. Neste ponto nosso quase nu Jekill insiste na utilização acentuada do didatismo visto a grande simplicidade desta variável e pede desculpas por tão improvisada digressão aos que já haviam compreendido de antemão.
Tudo isto não quer dizer que Jekill não atribua beleza aos seus semelhantes da raça humana ou que seja desprovido de até agradáveis lembranças perfumadas, ou então que não existam ocasiões de prazer ao sentir um leve e doce perfume escondido numa curva feminina. Tudo isto significa que este tipo de prazer é raro como encontrar uma florzinha amarela solitária e heróica no meio de um resto de mangue de um rio urbano cada vez mais espesso de lixo e merda. As pessoas escondem sua catinga borrifando perfumes como bebem, como comem, como ouvem música, como lêem, como falam e pensam. Para Jekill o que importa é encontrar após as delícias dos olhos e ouvidos os segredos aromáticos em lugares ainda não visitados. Um perfume deveria ser um presente secreto!

III Alimentação

Jekill está gastando bastante dinheiro com comida e isto é apenas um dos reflexos de sua conturbada, mas sob controle, relação com os alimentos. O problema principal não se refere especificamente aos gêneros alimentícios e sim como eles são apresentados na hora da refeição, o que já é motivo suficiente de diversas dificuldades. Uma simples desavença com certos tipos de alimentos parece ser complicada, e realmente é quando se trata de uma aversão a qualquer fruta, por exemplo, porém numa circunstância menos abrangente basta selecionar e escolher, as opções ainda são muitas. As dificuldades que o caprichoso Jekill tem enfrentado não consiste em encontrar alimentos que aprecie, mas encontrar estes ingredientes combinados a contento, dispostos satisfatoriamente. Este pequeno zelo é na realidade uma batalha sem fim que pode trazer baixas onde menos se espera, pode causar desconforto e outras inconveniências afetando mais uma vez sua tênue e pouco ramificada teia de relações interpessoais. Não obstante todos os efeitos colaterais e malefícios à sua sociabilidade, a experiência de ingerir gororoba ainda é determinante para suas decisões. Após um não muito detalhado exame de consciência Jekill conclui que estes novos cuidados são naturais à sua maturidade e fazem parte da grande linha evolutiva de transformações de um ser humano saudável de classe média ou superior. Num acesso de sinceridade Jekill ainda confessa sua tendência quase patológica ao exclusivismo dizendo que poucas coisas interessantes são possíveis de se fazer com mais de um indivíduo e quase nenhuma com mais de dois. Nesta seletíssima lista de atividades em grupo estão o sexo a dois, a três e ad infinitum, mas também estão os jantares e os passeios de escuna em pequenos grupos de quatro a cinco pessoas. Nosso solitário na multidão explica esta tendência ao individualismo com a intenção de proporcionar um total esclarecimento quanto às suas decisões, procurando beneficiar a total compreensão dos leitores no que diz respeito à sua preocupação com a sociabilidade.
Um dos momentos de maior dificuldade enfrentados por Jekill é na fila do bufê e, ultimamente, até mesmo um ingênuo anúncio à distância ou uma pequena fila se formando já são motivos de calafrio, arrepios e, dependendo dos perfumes e sons a sua volta, a acessos de refluxo. Estes pratos quentes e frios dispostos lado a lado para que as pessoas andem em fila ordenada escolhendo sua refeição é uma das mais populares invenções da nossa sociedade. É inclusive uma das salvações de um grande número de assalariados, da rotina fora de casa, dos estudantes e dos donos de restaurante; é a aniquilação dos garçons. Jekill insiste na tecla que não é, e não pode ser de forma nenhuma, contra o estabelecimento destes populares tratadouros, mas frisa seu desprezo em pegar filas, arrastar a bandeja pelo balcão cheio de pedaços de comida, improvisar rápido qualquer coisa no seu prato porque alguém já está roçando suas costas.
Todos estes restaurantes de grande circulação acabam por pecar nos detalhes e, sem nos atermos aos pontos positivos por causa da sua praticidade econômica, caem no grotesco, pelo menos ao olhar de Jekill. Nosso crítico gastronômico também arruma confusão no universo das pizzas e quase todas as refeições regadas com esta especialidade são também momentos de complacência, um esforço bondoso e de auto-preservação para não parecer um estraga prazeres. A pizza como qualquer outro prato deve, ou bem deveria, poder ser degustado na inteireza de seu sabor. Um verdadeiro apreciador leva o tempo aproximado de um repasto para sentir o sabor por completo, ficar intimamente ligado aos ingredientes, identificar-se e acreditar que aquela pizza de marguerita é coisa sua, assumir e defender a personalidade da sua pizza em qualquer um dos rumos que a conversa da mesa tomar! O sabor único à sua frente é a sua identidade e naquele momento integra-se a um importante elemento de diferenciação com os demais, Jekill ainda acredita, num olhar mais extremo, poder seu humor e pensamentos serem conhecidos por intermédio de sua pizza e ao olhar em volta poder até mesmo reconhecer-se no seu próprio prato.
Melhor ainda se o sólido que mastigamos ou os ares que expelimos na produção da voz em uma discussão forem acompanhados pelo vinho, este sim o grande oráculo mole da civilização ocidental. Uma boa escolha deste ditoso líquido, que aproxima-se mais de uma companhia que de uma bebida, mais a fidelidade aos sabores do seu alimento premiam sem erro o zeloso comensal à satisfeita apreciação. A título de esclarecimento e para que não haja sombra de dúvidas em nenhum de seus ditames, Jekill explica que o buscador internético Google é Delfos, o oráculo duro de outrora. Esta breve explanação sobre o ideal procedimento com as pizzas serve aos leitores como incentivo à imaginação. Sem nem relacionarmos as variantes de massa, espessura, a adequação dos fornos ou o cortante veredicto dos italianos ao comerem nossas pizzas “esta massa não é ruim, mas isto aqui não é pizza”, já é possível prever os desgostos de Jekill ao ser levado pelo destino das massas a mais um dos fenômenos gastronômicos da nossa tão popular sociedade, o rodízio. Mesmo não sendo um dos maiores adeptos do repertório de trocadilhos como alguns de seus parentes, neste momento de desespero Jekill alerta os críticos para sua entrega de pontos. A balburdia, o cheiro de azeite, os grãos de milho voando das mesas, os gritos suplicantes pelo frango desfiado, os garçons atiçando os mais primitivos níveis da promiscuidade do paladar, para Jekill este cenário terrível é digno de uma das mais realistas passagens apocalípticas. Neste ponto ele novamente pára suas queixas e explica suas contradições, pois participaria com toda alegria do coração de um rodízio de carnes à moda de Trimálquio. Nosso condicional glutão escabela-se ao tentar justificar sua simpatia pelas carnes em oposição ao rodízio de pizzas, porém desiste logo no início dizendo que as coisas do coração não têm explicação e, lembra nesta hora, de ter engolido em seco para não destratar um escravo alheio quando este lhe oferecia um bufê de salada à porta de um dos mais caros e conceituados rodízios de carnes.

IV Eleições e Poder Público

Antes de prosseguir nas miúdas implicâncias Jekill é assaltado por um surto de amargura e retoma uma de suas dores mais dilacerantes, brevemente mencionada no início de suas confissões, a sua sensação de constante provação super tensa por causa do acúmulo de erros. Estes erros não foram bem explicados antes, mas tratam-se simplesmente das besteiras impensadas dos poderes públicos, dos pequenos e dos grandes. Os pequenos nem precisam entrar nesta verborrágica discussão, pois se um síndico compulsivo gasta parte do orçamento de seus condôminos com a compra mensal de dezenas de escovinhas de aço, os efeitos de sua irresponsável patologia fazem poucos estragos no andamento geral de uma vida. Agora, numa situação bem mais corriqueira e menos patológica, se um deputado federal aprova pela enésima vez o aumento do seu salário, dinheiro este que inevitavelmente faltará numa outra ponta, esta sim poderá ser uma atitude com seqüelas mais severas. Então, com isto esclarecido, Jekill segue enumerando alguns erros que lhe são visíveis a olho nu na infra-estrutura pública.
Numa hipotética ordem cronológica de eventos, o primeiro passo de alguém com interesse em cargos públicos pode ser o nascimento desta idéia em si. O que leva alguém a decidir esta carreira tão concorrida e alvejada por todos os lados? A primeira coisa que nos vem à mente é uma outra pergunta: o que ela fazia antes? É difícil responder estas questões pertinentes aos primeiros passos de um grande servidor público, mas podemos tentar fornecer algumas saídas lógicas e descompromissadas com dados ou casos particulares. Um grande grupo deve ser oriundo da cultura familiar nos altos cargos e carregam no próprio nome as entradas e atalhos. Em alguns raríssimos casos este feitiço pode virar contra o feiticeiro, o que não impede de modo algum a continuidade dos projetos e até alguns acertos por outras vias. Nestas conversas Jekill vacila constantemente e mais parece alguém tateando no escuro, fato escusado devido sua ignorância e pequenas ambições no campo político, o que pode ser considerado um distanciamento voluntário, um olhar de soslaio desconfiado de longe. Jekill tem uma natureza um pouco rude e assim desculpa-se se seus arroubados comentários possam parecer como alguém tateando no escuro com uma faca na mão.
Seguindo a lista de iniciações no mundo dos serviços públicos um dos campeões pode ser o acúmulo de status social, que traz a sensação inebriante da evolução e do poder, geralmente corroborada com os mega-salários. Em casos onde o pretendente possui uma carreira profissional incipiente, quando a possui, também não se descarta a possibilidade do desespero ao entrar na lamacenta corrida eleitoral. Um brutal vale tudo para ver garantido um ganho por alguns anos, que ainda pode ser multiplicado facilmente por articulações e meandros camuflados. Neste último caso, não interessando o custo, a vitória compensa com lastro a empresa investida e, mais uma vez sem complexos artifícios, o resultado de um lado perdedor não ativo vem à tona. Segundo esta lógica seca, o lado perdedor passivo não seria outro que não o dinheiro público arrecadado nos impostos, que legalmente patrocina todas as campanhas e em todos os vieses possíveis. Jekill não coloca a palavra “legalmente” aqui com um sentido pejorativo ou sarcástico, como tanto aprecia fazer, mas neste caso a palavra se encaixa perfeitamente, pois até nosso honesto cidadão acredita não existir outros caminhos de bancar as campanhas. Estas situações ainda podem combinar-se e, quem sabe o que pode ainda acontecer até a poeira sentar? Jekill em sua simplicidade de raciocínio entende que a máquina já anda assim há muito tempo, há mais de cem anos, e não pode nem de brincadeira palpitar um milagre como um desses milhares de técnicos de futebol do povo, mas de qualquer modo prefere continuar tateando no escuro segurando sua faca.
A entrada nos grandes cargos públicos nem sempre se dá por um concurso ou eleição, mas pode passar-se por algo que é carinhosamente chamado de indicação ou apadrinhamento, que resumidamente quer dizer uma pessoa colocada no posto não importa qual. Esta modalidade tem os mesmos teores de complicação e precisariam ser analisadas uma a uma, pois abarcam seriamente as sutilezas que distinguem emprego de trabalho, porém o que se vê até onde menos se espera é um festival de incongruências, um circo do absurdo e, até onde percebo por sua narrativa, o próprio Jekill poderia escolher qualquer secretaria após algumas instruções. Se pudéssemos apontar um dos maiores focos do erro, seguramente as indicações para os altos cargos de confiança e decisão despontariam com facilidade, afinal as pessoas certas deveriam estar nos lugares certos! Esta é somente a chegada das pessoas nos cargos. Ainda poderiam ser enumerados outros sumidouros de dinheiro dos impostos, alguns propositais através de apropriações indevidas como a mídia prefere chamar e outros, mais tristes e frustrantes, pela escrachada incompetência. Essas reclamações não teriam fim se Jekill não se mostrasse verdadeiramente pesaroso por tudo, sentindo uma grande dificuldade em descrever jocosamente suas observações. Mas mesmo não sendo o tema que mais lhe agrada, continua remoendo suas sinapses em busca de ligações que façam sentido ao menos a grosso modo.
Através de um enfoque igualmente amplo, Jekill continua suas lamúrias de contribuinte sofredor abordando uma expressão que anda bastante em voga nos dias de hoje: enxugar a máquina. Sem muito esforço metafórico conclui-se que esta expressão significa não gastar dinheiro público à toa, aproveitando os recursos disponíveis da maneira mais coerente e justa o possível. A impressão é que isto demorou uns bons governos para se estabilizar enquanto jargão e agora que faz parte corrente inclusive do jornal televisivo de maior audiência, apelidado com sadismo de “Ilha da Fantasia”, a máquina girou mais um dente de sua engrenagem e já se fala em “não tem mais onde enxugar”. Este preâmbulo abre aqui mais um clássico da relação governantes e governados, algo que o empolado Jekill escolheu chamar de demagogia institucionalizada. Neste ponto ele se levanta da cadeira e busca uma leitura bem pertinente aos pensamentos anteriores e tenta assim agradar um pouco seus leitores à luz satírica de Petrônio[3]:

“Meus bravos estrangeiros... Se sois negociantes, buscai a fortuna em outra parte ou tentai outro meio de ganhar a vida. Mas se sois pessoas de uma classe mais distinta, e não vos aflige a obrigação de mentir da manhã à noite, não vos amedronteis, pois estais aqui a caminho da riqueza. Porque nesta cidade não se faz nenhum caso da literatura; a eloqüência foi banida; e os bons costumes não encontram aqui nem estima nem recompensa. Todos os que encontrareis em Crotona se dividem em duas classes: testamenteiros e beneficiários de testamentos.”(Satiricon)

Este audaz escrito afaga de certa forma a alma do aprendiz de libertinagem que agora lhes escreve! Jekill também toma a liberdade em sentir prazer com esta novela milenar ao perceber que todos já tiveram seu quinhão de desagravo. O elegante romano perdendo a vida com os pulsos cortados e as afrontas de hoje sendo resolvidas no tapetão dos favores, projetos de lei e das bolsas de estudo. A demagogia institucionalizada é difícil de ser definida. Pode ser vista como um jeitinho brasileiro pós-moderno, mas dentro destas confissões pode ser mais bem visualizada na presente e novíssima fábula do cachorro faminto acorrentado e seu dono. Em vários aspectos básicos nossa sociedade está aquém de outras sociedades contemporâneas e esta situação é legitimada pela desorientação morosa da maioria de nossas instituições mantidas com impostos, como se simplesmente vivêssemos mentindo uns para os outros para então podermos prosseguir. Os atravancos criados pela irresponsabilidade cultural do poder público, e aqui cultura quer dizer que a irresponsabilidade está enraizada historicamente, por infelicidade realista, são compreendidos, explicados e por fim irremediavelmente acolhidos à normalidade.
Jekill esquiva-se de outras possíveis divagações em parte pela inevitável falta de profundidade de seus comentários, sobretudo numa época dos estudos especializados como a nossa, e também pela completa descrença da validade prática destas preocupações. Cientistas políticos, sociais e econômicos têm escrito obras de real propriedade quanto às causas, conseqüências e soluções para todos os entraves do nosso poder público através de prodigiosos métodos e relevantes estudos, porém na maioria das vezes restritos à reduzidas mesas redondas no claustro acadêmico, enquanto toda esta engrenagem é traduzida às multidões somente sob o entendimento de simplórios jornalistas, dentre estes os bem intencionados e os “paus-mandado”, carregados de clichês repetidos que reforçam a sensação de normalidade de uma circunstância deformada. Nosso verborrágico e prolixo Jekill não recorreria a este eufemismo se fosse mais fácil simplesmente sublinhar os significados de criminalidade, uma palavra prestes a sumir dentro de tantas variantes e instâncias desta sociedade das conveniências. De alguma forma este ciclo está fechado e em movimento, estamos nesta condição super excitada sem, no entanto darmos o derradeiro esticão e vermos o que poderia acontecer! Depois disso Jekill emborrachado larga a garrafa de vinho vazia no chão e decide tratar de assuntos menos enfadonhos.

V Músicos profissionais

Talvez uma das reclamações menos importantes, devido ao desconhecimento geral da população quanto ao assunto ou por causa de sua quase irrelevância no bom andamento das coisas, refere-se à dinâmica de formação e atuação dos músicos profissionais. Antes de explicar seus incômodos, Jekill mais uma vez quer criar um contexto como maneira de evitar as injustiças e condenar o que lhe parece bem, tentando delimitar com precisão seu objeto de desgosto. Ao esparramar-se no velho sofá amarelo de tecido áspero olhando de lado num demorado suspiro para a janela, Jekill deixa evidente que esta sua preocupação vai mais para o descontentamento do que para a agonia.
Certa vez um jovem trombonista lhe pedira orientação sobre estudos de música em outros lugares, algumas informações a respeito de escolas e professores, como se organizar para ingressar em instituições de ensino superior e outros assuntos da mesma natureza que demandaram pelo menos quarenta minutos de um sermão voluntário e ininterrupto. Este tipo de curiosidade é fundamental para o progresso em qualquer tipo de carreira e, quando chega o dia de sermos questionados sobre estes assuntos, o nosso compromisso é da maior seriedade, pois estamos colaborando com importantes avisos, talvez até ajudando nas decisões de uma carreira bem sucedida. É com esta convicção que Jekill falou por mais de meia-hora ao trombonista que acabara de conhecer, e inclusive terminou a conversa com aquela purificada e inevitavelmente ingênua sensação de missão cumprida. Parece que qualquer um que acabe perdendo esta xeretice, este desejo desbravador pelo conhecimento, se acomoda e inicia uma seqüência de anos de mesmice, marasmo crônico e insignificância. Uma das maiores assombrações de Jekill é justamente a de se tornar insensível à estagnação, pois acredita que também seja daqueles perigosamente propensos à comodidade. Todo este auto-exame é feito com curtos e repetitivos acenos positivos de cabeça enquanto observa o mato pela janela do sótão de sua casa, para ele é complicado desligar estas observações de suas reflexões mais internas.
Ele tem aversão aos músicos que mesmo advertidos não se preocupam em levantar a barra e melhorar de referencial ou, ainda pior, àqueles que incentivam a mediocridade quando oferecem inconsequentemente a combinação entre despreparo e recompensa. Neste segundo caso é muito difícil reverter a situação uma vez estabelecida. Para ilustrar de modo bem prático tal afirmativa basta olharmos com atenção para algumas junções musicais ao nosso redor e veremos logo exemplos indecentes. Existe, por exemplo, o estudante de música que deixa antecipadamente de ser estudante ao calcular os ganhos atuais em um grupo musical qualquer versus investimentos próprios na sua formação e opta por satisfatório descartar a possibilidade de completar seus estudos, desistindo mesmo das opções mais plausíveis e aproximadas. Há aquele que, além disso, renega em altos brados os benefícios de continuar estudando, certamente recrutando para seu lado os de espírito ainda amolecido.
Uma das ocorrências mais irritantes, que torna o semblante de Jekill lastimoso, tem uma característica um tanto específica no meio musical. Por ser a música uma expressão artística, nada mais justo que nela tenham livre acesso todas as almas e que de sua infinitude possam tirar proveito e alívio todos os corações. Certo. Aproveitando-se desta democrática premissa muitas vagas em grupos que se vendem profissionalmente estão ocupadas por engenheiros, médicos e caixas de banco, ou então estudantes bancando sua formação em advocacia ao lado de músicos tentando fazer música. Aos olhos do público ou de quem arca com as despesas deste grupo tão eclético, seja através de um projeto com recursos públicos, um fundo municipal para cultura ou uma universidade, estão todos lá no palco em pé de igualdade. Na maioria das vezes em pé de igualdade até mesmo no interior do grupo, com os mesmos salários e sem qualquer espécie de hierarquização. A conseqüência espontânea disto é triste, implodindo o interesse dos estudantes e desmoralizando os músicos estudiosos. Aqui voltamos para a questão do desconhecimento, do desentendimento e da ignorância geral da população. Por mais incrível que possa parecer e para a aflição de Jekill, algo como esta escandalosa falta de critérios é a regra e não a sua exceção. A imensa maioria não faz idéia do embuste! Até agora estas reclamações têm sido as mais equilibradas e nosso acabrunhado Jekill parece estar no máximo de sua sobriedade em seu traje favorito, com a calça de sarja preta, com os braços em movimentos precisos e comedidos no seu blazer marrom.
Os comentários sobre estes músicos têm sido amenos devido aos cuidados de Jekill em ser simétrico no julgamento. Ele pondera que, nas duas principais situações de seu tormento, existe um outro lado que deixa os músicos em aperto, às vezes frente a frente com um dilema. É por isso que a maldade e o sarcasmo de antes agora são substituídos por um resignado ar de desconsolo. Os músicos que conseguem algum tipo de estabilidade trabalhando com música não podem ser tão facilmente convencidos a largarem a segurança para continuarem seus estudos em outro lugar porque isto pode ser desastroso. O projeto para matricular-se numa escola distante necessita de muitos cuidados e de outras facilidades nem sempre disponíveis. Na outra situação, este exército de amadores que lotam tantos grupos musicais oficialmente artísticos e profissionais vem somente preencher um buraco que não teria outro jeito de ser preenchido. Uma banda, orquestra sinfônica ou até uma orquestra de câmara das nossas redondezas não poderia nem sair do papel se pudesse contar somente com músicos de verdade. Para ser mais dramático e acelerar a pulsação dos leitores menos relaxados, nem mesmo um quarteto de cordas, de canto ou de sopros decente poderia brotar neste deserto. São os fatos, talvez com alguma chance de reversão pela vinda de um navio lotado de músicos do leste europeu, mas quanto a esta possibilidade teríamos que agir com presteza, antes que todos aqueles super cultos e famintos sejam anexados pela riqueza da comunidade européia. Então, a solução imediata é chamar qualquer um e, por ser trabalhoso e doloroso enxergar-se de fora, sem demora todos se convencem da autenticidade e proeminência de suas realizações musicais. Se perguntado sobre as chances de se criar uma grande e competente formação musical neste estado Jekill prontamente diria: “Nenhuma”; e completaria com o auxílio de Nelson Rodrigues[4] dizendo que o problema não é dinheiro, pois “Dinheiro há!!!”. Nota-se que o ruborescente Jekill divaga e desvia-se com extrema facilidade de seus assuntos acentuando sua tendência à amargura e à belicosidade. Diz ele com punhos e dentes cerrados que o caso é falta de desconfiômetro e vergonha para os músicos tanto quanto conhecimento e inteligência para os dirigentes públicos.
Os músicos amadores ou os profissionais não estudiosos ainda podem atrapalhar os bem intencionados de um outro jeito ao empestarem todas as frentes de trabalhos secundários, historicamente conhecidos como “bicos”, uma alternativa bastante importante na manutenção logística dos artistas. São raros os contratantes que distinguem tecnicamente os músicos em seus jantares e recepções e, apesar de não incluírem-se no rol dos trabalhos mais interessantes, os bicos podem ser providenciais em épocas de dificuldades financeiras. Felizmente ainda existe algum tipo de seleção natural que por fim beneficia um pouco os músicos mais sérios, e que a título de informação aos leitores, além de algumas apresentações peneiradas, trata-se do trabalho como professor de música. Se bem que, mesmo nas escolas ainda corre-se o risco de termos aulas do primeiro volume de violino ou piano com um professor recém ingressado no segundo. Não se via tantos músicos amadores nos palcos e ensinando desde as primeiras décadas do século XIX. Estes exemplos multiplicam-se e por causa disto Jekill dera tanta atenção ao jovem trombonista com vontade de aperfeiçoar seus estudos. No decorrer dos meses após este encontro eles voltaram a se falar fortuitamente até que um dia o mesmo jovem veio lhe questionar novamente sobre as mesmas dúvidas... Desta vez Jekill atônito resumiu a conversa dirigindo o rapaz de memória volátil aos cuidados do oráculo na internet.
Através de uma análise pragmática pode-se dizer que alvejar os músicos profissionais que conhece tenha sido simplesmente uma escolha, pois ele poderia muito bem ter se servido dos mesmos argumentos para muitas outras profissões. Aquele músico indolente que vai todos os dias bater o ponto sentado na sua cadeira, despreocupado com a inventividade e descumprindo sua promessa de excelência não pode ser diferente do funcionário público que anda devagar na sua repartição mal podendo esperar o final da jornada ou do médico que termina a consulta raciocinando mais com a lista de remédios conveniados do que com a saúde do paciente. O aspirante à bem-aventurança Jekill num raro acesso de humildade regozija-se por também não poder enxergar apropriadamente a inteireza de suas ações e pensamentos e, apesar de todas estas acusações e reflexões parecerem pertinentes, no fundo não passam de uma chatice, uma porcaria ética descontrolada e moralista. Ele respira fundo vibrando por dentro, ansioso por também estar fazendo parte de uma sociedade tão medíocre.
Engole em seco ao ser censurado por escorraçar só o que não gosta e fica irritado com a tontice de tal reprimenda, pois afinal como poderia ser convincente atacando o que gosta? Geralmente louvamos com facilidade e de olhos lacrimejantes as coisas adoradas e não o contrário. Ou então estaria ele sendo repreendido simplesmente por causa de suas patadas inconvenientes e desreguladas? As coisas de que gosta verdadeiramente são muito poucas e ainda resta um mar de desprazeres que precisam ser tolerados em paz constantemente. Decidir em revirar algumas torpezas nestas confissões é uma coisa pequena, porém é necessário que seja feita com o rigor das ações instintivas. “Não se pode esperar que eu passe a mão em todo o lixo!”, resmunga Jekill socando com os punhos o seu sofá. Para isto já existem os demagogos bem pagos que no máximo de sua ousadia fazem alguns ataques de sarcasmo brando e cômico, todos se borrando de medo para que a casa não caia. Nosso desobediente mal humorado parece querer logo deixar os músicos de lado para continuar num assunto que muito lhe agrada e que realmente pode ser a causa de urticária generalizada.

VI Infra-Estrutura Urbana

São tantas as reclamações aqui e tão violentas imprecações perante tamanhos absurdos, que quase se faz necessária uma forma diferente de organizar e categorizar estas confidências. Mas isto não será posto em prática, pois poderia comprometer a espontaneidade e os caros leitores não teriam um contato honesto com as estranhezas e choques do nosso austero, sensível e bagaceiro. Portanto tudo continuará como antes, seguindo estritamente o encadeamento das idéias, desta maneira decidida com a melhor das intenções em respeito àqueles que começam a cultivar o interesse, quiçá a curiosidade pelas teias mais puras do raciocínio um tanto arranjado de Jekill. Após este providencial intróito cabe um segundo esclarecimento bem ao estilo da metodologia acadêmica para tentar delimitar o que afinal quer dizer infra-estrutura urbana. Sem mais delongas, trata-se das ruas, pontes, urbanização geral, esgotos, segurança pública, lixo, transportes, rede elétrica e telefônica, trânsito, calçadas, limpeza, serviços públicos e burocracia, rede bancária e filas, estes tópicos como sendo o ponto de partida das mais vis execrações.
Uma das mais desastrosas decisões já tomadas na desastrosa história do nosso poder público foi a desativação da estrada de ferro. Não poderia ter ícone mais apropriado à falta de planejamento, cegueira a longo prazo e interesses privados do que a trama de negócios ocorrida naqueles distantes anos 60, ao ser decidido acabar com a linha de trem já estabelecida para um possível benefício e impulso à indústria de carros. O que vemos todos os dias pelas ruas não é nada mais que o acúmulo de irresponsabilidades e descaso com o dinheiro público iniciada há uns trezentos anos e que continua da mesma maneira, em metamorfose, com algumas besteiras somente visíveis daqui há duas ou três décadas. Não deve existir memória suficiente num computador pessoal para registrar a lista de erros, enganos involuntários, chutes, tentativas fracassadas, projetos furados, cálculos errados, sem contar com as fraudes, tramóias e outras ardilezas, produto das mentes atrofiadas aos pensamentos decentes e incapazes de acerto dos nossos dirigentes do dinheiro público. Esta classe de imperadores clássicos que misturam as coisas ao ponto de esquecerem que são funcionários do Estado e que o dinheiro entrando pelo ladrão é a representação dos cidadãos que, por sua vez, confiam em suas decisões. Nossos governadores federais, estaduais e municipais são pagos todos além do seu real valor de trabalho para ainda se sentirem como benfeitores e donos de uma infinita capacidade de concessões ao aprovarem a construção de uma ponte ou o asfaltamento de uma rua. Para autenticar o que está sendo dito aqui, batizam suas realizações com seus nomes ou de seus pais, como se eles mesmo fossem os heróis quando sim estão sendo mais aplaudidos e bajulados do que nunca por gozarem com o pênis alheio. O que Jekill não pode entender é como pode alguém homenagear-se ou então homenagear quem bem entender com empreendimentos financiados pelo dinheiro público. O mais incrível é o fato de transformar-se num favor, qualquer obra realizada por qualquer gestão, e a comunidade contemplada com 2 quilômetros de asfalto deve ser eternamente grata e lembrada com extensos festejos e placa comemorativa do heróico funcionário público que lá fez retornar um pouco do dinheiro que lhe é confiado. Claro que esta macaquice não deve ser exclusiva da nossa sociedade cucarachupiniquim, pois sentir prazer como antes descrito é certamente uma das fraquezas humanas mais evidentes. Mas como aqui as curvas são mais tortuosas e o dinheiro se perde demais, este tipo de cena ganha mais um ar de infâmia do que natural fraqueza. Apesar de ser coerente observar que os concidadãos do nordeste deste país estejam em situação mais delicada com a explícita dinastia dos Magalhães, Sarney e Collor de Melo, as nossas cidades também não escapam a este deslumbramento epidêmico dos eleitos para o poder público. Esta foi somente uma choradeira inicial. Jekill certamente não está entre a multidão babando ou se divertindo ao apertar as mãos de candidatos no meio do seu churrasco na quermesse de São Pedro.
É agradável imaginar as facilidades que teríamos com os trens. Algumas profissões como a de caminhoneiro se redefiniriam, algumas não sei quais, poderiam sumir e outras várias nasceriam. Provavelmente teríamos menos caminhões tão pesados nas estradas principais e assim elas durariam mais tempo, até os carros seriam menos com o trem em atividade. Com menos tráfego e menos chance de acidentes ganharíamos qualidade de vida. Que sonho distante seria ir trabalhar no conforto e na segurança de um trem, marcar um encontro e tomar um café no vagão restaurante. Quando se fala em trens por aqui logo se associa a uma antiguidade colonial e os super-rápidos trens bala dos países mais sérios se confundem com a irrealidade e com a ficção-científica. Assim fica difícil, sem a cogitação de trens e com poucas estradas disponíveis, o transporte aéreo com suas habituais limitações, nestes últimos meses nem tão habituais assim, e o transporte fluvial pouco desenvolvido. Locomover-se em determinados trechos rodoviários implica além de paciência em muito cuidado, um trajeto de setenta quilômetros até uma praia pode se transformar numa odisséia de obstáculos. É muito comum, por exemplo, serem utilizados os dias de maior agitação nas estradas, como os finais de semana na época das férias, para operações de recuperação da cobertura de asfalto, quando os mais distraídos acabam caindo numa armadilha de 30 quilômetros e 4 horas de atraso. Indo um pouco mais longe nesta situação conclui-se que o cerne do problema nem são os trabalhos mal planejados e em períodos inconvenientes, o mais grave é não poder contar por roteiros alternativos. Como hoje se planeja, se projeta e se decide ao bel prazer, nas décadas passadas também não conseguiam parar e analisar qual seria o cenário vindouro e as estradas projetadas parecem ser apropriadas a um tempo onde os automóveis conviviam com as charretes e carros de boi. As nossas únicas opções de transporte infelizmente também são o resultado desta burrice tradicional, os empreiteiros incultos que agora decidem aleatoriamente com pouca noção de conseqüência coletiva não fazem mais que seguir esta cartilha hereditária do poder público. Jekill alerta aos leitores que suas críticas têm se direcionado principalmente aos erros e à falta de zelo dos dirigentes com o dinheiro que não é deles, para os casos de roubo, que também possuem um amplo capítulo nas cartilhas mais antigas do nosso governo, nosso reacionário contribuinte reserva algo mais enérgico.
A insalubridade do trânsito não pode ser somente atribuída a estas decisões desnorteadas do poder público, pode-se até dizer que a nossa sociedade tem o que merece. Os jornais anunciam as mortes como um problema das estradas, da má conservação, sinalização, falta de acostamentos, etc., segundo o seu costume de bater na mesma tecla, repetindo de novo e de novo as notícias. Ao pegar um jornal de província Jekill não deixa de recordar os ataques de Thoreau[5] às manchetes repetitivas, onde a notícia de uma vaca atropelada será sempre a mesma, ou seja, torna-se uma repetição a partir da segunda vez. A opinião pública e as vítimas acabam gastando muito mais atenção na estrada em vez de preocuparem-se com os motoristas ensimesmados. Em suas viagens nosso assustadiço condutor fica pasmo de raiva ao ver que a estrada está lá, e até com alguns trechos razoavelmente construídos para suportarem certo tráfego e velocidade, porém existe uma necessidade incontrolável de ultrapassar. Nossas parcas rodovias não oferecem qualquer condição para uma viagem fluida, necessariamente temos que notar o outro e entendermos o ritmo do trânsito, ora mais depressa ora mais lento. Não se sabe se ocorre uma espécie de transe competitivo gerado pela excessiva movimentação, vulgarmente conhecida como “muvuca”, que faz uma considerável parte dos motoristas dirigirem sempre no limite de segurança, ignorando que dividem o mesmo espaço com estranhos numa ordenada seqüência de poucos segundos. É a esta total desconsideração ao outro que Jekill atribui a maior parte dos acidentes, e os condutores que não medem esforços e conseqüências para ganharem um metro de vantagem é o que ele chama de ensimesmados. Não é válido associar somente as mortes e mutilações às condições da estrada, mas também às irreconciliáveis percepções de ritmo do trânsito. A humanidade sempre teve seu excesso de contingente controlado pelas doenças, massacres, guerras ou grandes desastres da natureza e agora, Jekill atreve-se a incluir as rotineiras mortes no trânsito nessas tragédias. Até que seria em parte interessante se uma mágica ocorresse e no lugar de nossas esburacadas e desniveladas estradas surgisse uma autobahn de quatro pistas. Com os motoristas que temos os acidentes seriam fantásticos.
Jekill tem mesmo algumas idéias macabras, só para descontrair. Devido tal constatação ele evita o máximo possível se meter numa estrada, tentando não dar chance para o azar. Outra doidice contemporânea é a ininterrupta fabricação de automóveis enquanto as estradas continuam as mesmas, cada vez mais abarrotadas. Como diria a mais nova celebridade do mundo virtual, carinhosamente conhecida como a mulher do tapa na pantera:”Onde vamos parar?”. Jekill procura usar pouco o carro, não só pela alta probabilidade de um encontrão, mas também por causa das injustas quantias de imposto embutidos no combustível. Desta forma planeja bem suas saídas para não ficar quicando de um lado pro outro no meio de tanta confusão. Já teve também, em alguns momentos, a impressão de estar simplesmente realizando a função de levar o carro para um lugar e não o contrário. Como quando estacionamos num lugar e após um período determinado pela lei precisamos trocar de vaga, ou algo de uma sutileza mais individual, quando vamos a dois compromissos e sentimos a necessidade de levar o carro junto a ambos, mesmo podendo realizar a distância entre eles a pé. É nesta hora que parecemos tratar o carro como se ele fosse uma bolsa ou um outro artigo qualquer, diferente de sua concepção para transporte. Jekill gosta de ter um automóvel como qualquer um, mas não pode deixar de pensar nas variantes de sua utilização. Não pode deixar de notar o homem com o grande e sonoro carro que tenta amenizar de alguma forma sua medíocre existência, lutando contra sua insuportável sensação de invisibilidade ou o garoto, tão caro aos pais, que vai ter seu fim voluntariamente por causa de um racha.
Jekill desce até a cozinha para fazer uma xícara de café. Ele vê estes pensamentos também como as erupções de um chato, como uma fixação exagerada pelo pessimismo, mas não ao ponto de o transformarem num excêntrico misantropo. O que o diferencia de um completo desgarramento é a sua opção pelo conforto, sua interação com todas as invenções contemporâneas comuns não o permitiria uma afronta sem limites. Por isso suas observações aqui descritas podem soar tão internalistas aos ouvidos mais treinados e bem balanceados. Ele fala do interior de seus assuntos, sempre irritadiço e cheio de queixas, porém incapaz de afastar-se dos benefícios desta sociedade. Ao sentar-se na varanda com vista para o mato admite sua condição inegável de cidadão da classe média. Se ao menos pudesse ter idéias menos prosaicas como as que teve até agora...Se pudesse refletir sobre a chuva que dá seus primeiros sinais nas copas das árvores, sobre o vento insinuante ou sobre os prazeres do café. Ou quem sabe dar uma filosofada sobre os divinos mistérios da fé, do amor e da vida. Mas neste momento de olhos fechados na busca das inspirações superiores, agradavelmente isolado com o cheiro de grama molhada de seu jardim, é novamente ludibriado, e acaba por voltar seus pensamentos para os mistérios medianos da rede pública de esgoto.

“As privadas nos banheiros modernos saem do chão como a flor branca do nenúfar. O arquiteto faz o impossível para que o corpo esqueça sua miséria e para que o homem ignore o que acontece com os dejetos de suas entranhas quando a água da caixa os leva gorgolejando cano abaixo. Os canos dos esgotos, ainda que seus tentáculos cheguem até nossos apartamentos, são cuidadosamente escondidos de nossos olhares e nada sabemos acerca dessas invisíveis Venezas de merda sobre as quais estão construídos nossos banheiros, nossos quartos de dormir, nossos salões de festa e nossos parlamentos”. (A insustentável leveza do ser)

O que escreveria Kundera[6] se fizesse hoje um passeio em algumas de nossas cidades litorâneas de veraneio? Onde as Venezas subterrâneas afloram na areia da praia e nos aquecem em baforadas pelos bueiros da calçada? A lama de milhares não está escondida dos olhos e muito menos dos narizes e o superfaturamento na compra de tubos, não se sabe quantos anos atrás, tem agora seus reflexos mais desagradáveis. Nestas galerias infernais que deveriam suportar a visita de um homem mal agüentam um cachorro. Quando estes números passam para os milhões, então estas cidades perdem a compostura. A sujeira largada nas ruas tranca ainda mais os já congestionados dutos de excremento e água e, se chove muito, os incrédulos habitantes precisam nadar num medonho mar represado de nojeiras. Os canos até podem disfarçar em nossas casas, mas nossas misturas mais podres jorram nas ruas de esgotos estreitos e abertos, nos rios que vão tornando-se pântanos e no oceano, o último destino das ilhotas de imundície.
A maioria das cidades não possui uma rede de esgotos pública condizente com o volume de banheiros. Se em nossas casas logo conseguimos esquecer o disforme troço que mergulha em redemoinho descarga abaixo, andando perto das margens dos rios e nas cidades costeiras somos novamente lembrados da ineficiência dos projetos públicos e da palermice de nossa sociedade, que não evita em amontoar lixo não importa onde. Não é de se estranhar nossa marcha lenta no turismo mesmo com a natureza a nosso favor, nem do esquecimento das práticas náuticas fluviais. Jekill conta que já escapou por um triz quando navegava de bateira por um riacho afluente. Justo após ter deixado a mira de um cano carcomido e enterrado no barro entre as folhagens, um barulho semelhante ao de um monstruoso estômago estala e num segundo uma pasta escura escorrega veloz na água, fazendo com que nosso audaz explorador se contorça para não ser atingido pelos respingos.
Na praia, além dos riachos que chegam moribundos entre os guarda-sóis, existem as fontes bastardas de fedor, uns fios aquosos que aparecem algumas vezes por dia e que ninguém desconfia sua verdadeira origem. Em uma dessas nascentes da discórdia um tampão foi providenciado, como uma rolha no ânus de uma fera subterrânea que irá certamente vomitar na outra extremidade. Caminhando pelas calçadas destas cidades praianas Jekill tem a nítida sensação de estar a poucos metros acima das vísceras estouradas da besta de mil tentáculos que se alimenta em nossos lares com seus pequenos flagelos de cerâmica, tão graciosamente apelidados por Kundera. O bafo quente saído do fundo dos bueiros é a respiração deste monstro desproporcional e estraçalhado, é o cheiro de suas entranhas putrescentes. Ainda nestas cidades de veraneio, nas épocas mais movimentadas os cidadãos não podem contar com um abastecimento de água compatível, várias vezes faltando até para uma eficiente eliminação das excreções com a descarga. No último ano, apesar das projeções para uma temporada de grandes demandas, a água da rede pública desaparecia quase metodicamente. Coincidência ou não, vários caminhões pipa haviam sido adquiridos para transportar emergencialmente a água extra e, de acordo com o andar da carruagem, por um preço tão alto que poderia ser rateado entre quatro ou cinco afortunados.
Este fedor escancarado em nossas ruas vem completar a feiúra que atinge os olhos. Além de termos as ruas tortuosas e cheias de obstáculos ainda temos que lidar com o mau gosto e apelação das propagandas em outdoors, que contribuem para que a paisagem urbana se torne uma verdadeira marafunda de pôsteres, cartazes, letreiros, faixas, uma bagunça para os olhos dos motoristas e um ataque pessoal aos que se deleitam com um belo acabamento paisagístico. Passear por nossas ruas é um massacre aos olhos, é tudo tão desajeitado que quase começa a ficar bom, e isto só não acontece porque a baderna não é otimizada, como parece ser a anarquia do trânsito romano. Nosso layout urbanístico é desastroso e nossas ruas, muros e casas dão impressão de estarem cada vez mais ensebados. Prédios históricos são demolidos e no lugar surgem impensados projetos arquitetônicos, pequenas áreas verdes, como árvores num pequeno jardim de prédio público, são cortadas e no lugar aparece um remelento calçadão cheio de pontas de cigarros e chicletes mascados. A infra-estrutura subterrânea é um aleive que mal comporta nossas águas para lavar a calçada, o que diria esconder a antiquada fiação elétrica que fica dependurada como a bijuteria de uma sirigaita a cinco metros de altura sobre nossas cabeças. Jekill em pé em sua sala dá uma estrondosa gargalhada quando lembra dos ciclistas europeus que chegaram meses atrás ao porto através de um navio turístico. Queriam desbravar de bicicleta as prometidas belezas de nossa região e foram convencidos que poderiam fazer como em seu continente. Pobres lesados, quando viram o caos de nossos centros e a sandice desgovernada de nossas estradas, foram obrigados a dar meia volta. Desgoverno pode ser uma síntese adequada à nossa infra-estrutura.
Uma impressão bem geral é a de uma sociedade de diletantes e pamonhas. Os mais respeitosos sociáveis são facilmente reconhecíveis como profissionais liberais instruídos, sem graça e bem remunerados, talvez bem semelhantes aos “famas“ de Julio Cortázar[7], alguns se realizando com aquelas ridículas colunas de jornal para festas sociais além de outras jequices e masturbações iluministas. Eles são fundamentais na manutenção desta geringonça mofa e improdutiva que é nossa sociedade. Autenticam este sistema a partir do conservadorismo acomodado e não sob um olhar revolucionário, aqui num sentido transformador coletivo benéfico, ordenado e criativo, como imagina ocorrer em outras tantas sociedades nosso utópico Jekill. Ele por pouco não sucumbe à descrença total. Mas apesar de tantos erros entende que para uma sobrevivência agradável é preciso encarar suas observações somente como uma licença, uma liberdade individual e sem importância. Suas divagações são soltas e atiradas a esmo, porém esta aparente espontaneidade está carregada da mais premente necessidade. Mesmo sem dar real gravidade aos seus pensamentos ele acaba lembrando mais uma vez de Milan Kundera, agora quando o escritor esclarece suas urgências citando uma passagem de um quarteto de Beethoven. Nesta composição a música possui dois pequenos motivos que se completam como pergunta e resposta. O som grave questiona lentamente “Muss es sein?” (Tem de ser assim?) e a resposta vem certa em uma passagem do Allegro: “Es muss sein!” (Tem de ser!). Jekill observa o pequeno bosque em seu jardim através das grandes janelas de sua sala e sente-se mais calmo. Semanas atrás não pôde controlar-se e quase acabou sendo preso se não saísse correndo.

VII Esportes

Quanto mais obscuras e desconhecidas as práticas esportivas maiores são as chances de sua pureza. Arremesso de peso ou dardo, saltos ornamentais ou nado sincronizado parecem, num primeiro olhar, salvos da cobiça que envolve os resultados do futebol, corridas de carro ou das corridas de longa distância. O ocioso Jekill aprecia os esportes e admite existir uma alegria saudável em volta de sua prática, porém não pode deixar de reparar na ingenuidade patológica que cerca as competições de maior prestígio. Ele se refere às hordas de espectadores que acompanham eufóricos os progressos de seu time de futebol numa tabela de campeonato ou ficam durante três horas hipnotizados, vendo carros turbinados andando quase em círculo.
As competições mais importantes são naturalmente o foco da atenção de um número expressivo de pessoas e por isso os patrocinadores se preocupam tanto em colocarem seus nomes dentro deste circuito, em placas, camisetas ou na pintura dos carros. Além de simplesmente aparecerem, também é preciso que sua marca seja associada a uma equipe vencedora, para finalmente impulsionarem-se no imaginário e na lembrança dos espectadores-consumidores. Esta lógica é bem simples e não poderia ser de outro jeito, senão as competições de vulto mundial nem poderiam existir. Jekill incomoda-se com a quantidade de tempo e recursos despendidos com algumas destas competições por nossa sociedade. Um exemplo singelo de quanto isto é verdade vem da nossa maior emissora de TV e comunicação em massa, que dispensa significativa importância a eventos secundários, como oferecer em rede nacional espaço para campeonatos de futebol juvenil estaduais. Somente quando o espectador já se encontra prostrado num estado de letargia profunda e quase baba por inanição cerebral é que ele consegue assistir à série de gols da última rodada de um torneio estadual juvenil. Se existe lugar para algo tão irrelevante na principal emissora deste país, é possível calcularmos a quantidade de banalidades que ainda vem somar-se a sua programação e deduzirmos o grau de seriedade de nossa população.
O que mais surpreende nosso torcedor ausente é a empolgação ingênua dos espectadores que diariamente correm ávidos em busca dos resultados, fazem tabelas e comparações, comentam os perfis sociais e psicológicos traçados aos trancos pelos comentaristas e se debruçam paralisados sobre estes jogos sem fim. Mesmo quando ocorre um furo nesta ordem e um juiz é flagrado na desonestidade ou fica evidente que ele manipula o placar em benefício de um ou de outro time, os espectadores não conseguem se desvencilhar de sua rotina e continuam torcendo como zumbis capturados, mantendo a expectativa como numa oração automática. E o que dizer das torcidas organizadas que se atacam com a ira vinda em linha direta das ancestrais turbas de bárbaros? (Ou turbas romanas, para ser imparcial historicamente). Num mundo alternativo ideal não seria mal deixarem estes jovens preguiçosos e sem ocupação entoarem seus cânticos e gritos de batalha isolados dentro de uma arena de verdade, onde poderiam dar um belo espetáculo se matando e aliviando seu ódio primitivo. Neste ponto certamente já não estamos falando de esporte.
Com tantos interesses sobre as grandes competições é difícil deixar Jekill naquela gostosa cegueira que tem um verdadeiro torcedor. Às vezes ele até consegue imaginar um outro jeito para as coisas e vibra com uma jogada surpreendente, mas não pode sustentar isto por muito tempo. Pode somente agüentar alguns jogos, nada comparado à maioria que fica conectada uma vida inteira às tabelas, pontos, séries, negociatas e noivados de jogadores. Quanto ao patriotismo que está atrelado aos jogos, à vitória de um time ou de um atleta que segura a bandeira de uma nação até pode ser bom e controlar nossa selvageria xenófoba. A população do país maior já se dá por satisfeita ganhando o maior número de medalhas e assim não precisa invadir o país menor para se sentir melhor.
Além do interesse dos patrocinadores, geralmente os mega conglomerados internacionais, os resultados ainda podem ser pesados pelos apostadores. Jekill, que costumava correr os cem metros rasos antes da quinta série, sentiu uma imensa repulsa pelo desfecho da maratona na última Olimpíada. Para o entusiasmo dos oprimidos, tudo levava a crer que um pobre corredor de uma das cidades mais pobres de um país do segundo time como o nosso iria vencer a maratona olímpica. O contexto ainda trazia toda a carga de belezas e significados pelos jogos estarem acontecendo justamente nas cidades originais da Grécia e pela imprevisibilidade de tal vitória. Foi escandalosa a interrupção deste anônimo atleta quando faltavam poucos metros para a chegada, atacado por um homem convenientemente fantasiado e com a calculada intenção de atrasar o seu ritmo. Proh pudor!![8] É o que grita Jekill de tristeza à tamanha e histórica injustiça! De anônimo herói este atleta se tornou um santo condescendente ao aceitar uma medalha de terceiro lugar junto com uma rara honraria da tradição olímpica, apenas conferida a um navegador que evitara um afogamento abandonando a regata. Uma das mais bem-vindas demonstrações de demagogia se o corredor não tivesse um espírito simples demais para isto. Nosso agastado espectador não sabe o que pode ser levado a sério e prefere separar a beleza do esporte com sua força disciplinadora das propagadas e grandes competições.

VIII Pequeno comentário sobre o jardim

Na paz de sua casa Jekill aproveita a estiagem e vai colocar mais alpiste na casinhola de pássaros perto das árvores. Seu jardim é uma mistura de relaxamento e contemplação. Não suportaria a milimétrica jardinagem dos canteiros públicos, dos condomínios de classe média ou dos edifícios de consultórios com a gramínea importada e aparada com tesoura, com aquelas imitações de bonsai e as flores enfileiradas entre cactos e pedras cor de rosa. Jardinzinhos ordinários que crescem à base de cocô de poodle e outros animais de apartamento mimados à bizarrice.
Jekill tem em seu jardim um espaço para a imaginação. Não deixa chegar ao matagal que sufoca suas cores e aumenta com exagero a presença dos bichos peçonhentos, mas dá a chance para que uma erva se agarre em liberdade na cerca e que proliferem livremente as flores silvestres mais comuns. Este jardim é impreciso e de contornos misturados, pontilhado de amarelo no alto com a chuva-de-ouro, as bocas brancas e escancaradas da magnólia, as cores suaves e foscas de delicadas extremosas, uns pinheiros de natal, pés de mamão, palmito e uma pitangueira mirrada crescendo pelos lados, o chão coberto de grama, capim e marias-sem-vergonha. Outras flores e cores riscadas também povoam este pequeno mundo de Redon[9] onde Jekill passa seus melhores momentos tomando café e chocolate.

IX Incidente no banco

Quando ainda estava na praia precisou ir ao banco pagar uma pequena conta que fizera numa livraria pela internet. Como poderia ser pago no caixa eletrônico dirigiu-se à sua agência principal para ver como estava a fila naquela tarde. Na primeira tentativa acabou desistindo para não ter que esperar desde a calçada ainda abarrotada de pedestres, bicicletas e o calor que atiçava com vento e areia os humores da besta subterrânea. No dia seguinte foi com mais convicção e entrou na fila, conseguindo um lugar pelo menos dentro do banco com ar condicionado. Um novo sistema de pagamentos começa a funcionar nos últimos anos e divide as intermináveis filas bancárias com outros estabelecimentos, sobretudo com as casas lotéricas. Na prática esta estratégia não surtiu grandes resultados. O número de bancários diminuiu atrasando as filas em caixas eletrônicos, pois as pessoas não param de chegar e ainda continuam se atrapalhando com os botões e os caixas continuam travando. O grosso das filas agora está nas ruas e iniciam espremidas nos cubículos inseguros das casas lotéricas. Jekill procura conviver com esta situação reconfigurada da maneira mais compreensível, tomando filas, selecionando os horários e usando ao máximo a internet.
Ao entrar na fila do banco aquela tarde, calculou esperar uns vinte e cinco minutos até chegar sua vez. A cidade até pode funcionar bem fora da temporada, mas nestes dias de calor a sua população parecia triplicar e rompia o bom andamento do sistema. Na fila algumas pessoas moviam-se impacientes, outras estáticas com roupas de banho pareciam querer esquecer onde estavam e Jekill ali junto arrastando vagarosamente seu chinelo ouvia as reclamações em silêncio. As duas funcionárias eram açoitadas sem parar e direcionavam os clientes mais desatentos aos caixas, dando instruções de um lado para o outro. Aquele ambiente é uma espécie de antecâmara e para se chegar à parte interna do banco ainda precisava cruzar uma porta rotatória com identificador de metais. A maioria dos clientes realiza suas transações neste lugar externo bem menos vigiado, sob o olhar das câmeras de vídeo e dos vigias que observam pelas paredes de vidro lá de dentro. As pessoas neste lugar não ficam nervosas com a precariedade da segurança, mas sim por causa das filas entrelaçadas, das reinvidicações exclamadas de repente por um estranho que parece um louco de dedo em riste, por terem que ficar tanto tempo esperando para resolver algo tão fácil. Não é preciso desgastar os leitores descrevendo com mais detalhes o movimento dentro do banco e por isso passamos às impressões de Jekill.
Ele aguardava com rigidez em uma das três ou quatro filas desta grande antecâmara, cuidando para não cheirar nem encostar-se aos outros, o que tornava sua espera um tanto trabalhosa. Um pouco a sua frente tinha uma senhora ironizando com um risinho diabólico os que demoravam em perceber um caixa eletrônico livre. É espantoso como em algumas ocasiões as pessoas perdem o pudor e tratam estranhos como velhos conhecidos, fazendo piadinhas sarcásticas de mau gosto ou até mesmo, como nas brigas de trânsito, esbravejando descaradamente um repertório grosseiro de palavrões. Nestes momentos se esquece todo o protocolo e de uma hora para a outra se vê completos desconhecidos xingando suas respectivas mães, ou em casos mais extremos ainda, um cidadão que até o momento dirigia normalmente para o trabalho sai do seu carro empunhando um facão enferrujado e vai resolver a discussão decepando os dedos do motoqueiro arrependido. Jekill fica na fila de cara fechada, o que desencoraja a folga dos mais desinibidos e lhe dá condições de filtrar com atenção outras características típicas destas situações, reparando nas várias formas de enganar os outros e passar na frente. Vez ou outra surgia pela porta da rua alguém julgando ter mais pressa que os demais e já ia logo ir conversar com a funcionária, se encostando com manha no início da fila. Ou quando alguém chega e encontra um amigo esperando já nos lugares mais adiantados, assim é irresistível. Quantas vezes também ele já fora surpreendido com a falta de polidez de um estranho que, sem dó nem piedade, aproveitara um deslize na atenção e roubara sua vez.
Desta forma, estacado na fila, ia avançando pé ante pé esperando com paciência. A sua comanda poderia ser paga com o desconto direto de sua conta corrente através da leitura do código de barras, na hora seria muito rápido e descomplicado. Quando em fim chegou ao primeiro lugar da fila viu que já havia passado mais de meia hora, então a funcionária sinalizou e ele deu duas passadas até o caixa vago. Quase no mesmo instante já notou que o monitor indicava estar fora de operação e, ao se posicionar novamente na fila, sua vizinha de trás antecipou-se e serpenteou com agilidade para o próximo caixa liberado. A vista de Jekill na mesma hora escureceu e os sons sumiram. Tudo não durou mais que dez segundos. Quando se deu conta estava sendo segurado pelos braços e a mulher encolhida de pavor contra a parede. Suas mãos doíam e ainda na cabeça tinha a sensação de incríveis solavancos. Ao ver-se paralisado pelos outros clientes do banco Jekill abriu bem os olhos e num gesto violento escapou empurrando quem estava na frente, fugindo enlouquecido pela porta da frente. Sentia-se completamente arrepiado e avermelhado, devia estar com um aspecto assustador quando parou de correr no meio da praia lotada a um quilômetro do banco. Estava bufando, encharcado de suor e com sua camisa rasgada. Não podia fazer idéia como tinha saído de lá. Havia atravessado a multidão como se não tivesse ninguém, se livrado dos homens com um salto estabanado, sentia todo o corpo dolorido e a garganta arranhada. Será que tinha urrado como um animal selvagem? Seu maxilar também parecia ter sido afetado e uns dentes estavam doloridos. Jogou fora seus trapos e foi para o apartamento arrumar a mala. Sem explicar nada a ninguém deixou a cidade no mesmo dia.
Uma semana depois ligou para um de seus primos que ainda veraneava e perguntou com discrição sobre qualquer coisa que, eventualmente, ele tivera ouvido falar sobre um incidente no banco. Completou explicando que estava apenas curioso sobre estes boatos, ao que parece tirados do jornal do fim de semana. Por sorte o primo tinha ido lá há poucos dias atrás e disse que não se falava em outra coisa. Um cara completamente fora de si, com os olhos esbugalhados e produzindo sons estranhos com a garganta atacou com os dentes a bolsa de uma das clientes. Antes que ele pudesse arrancar a alça ou morder como um cachorro raivoso a mão da mulher, o agressor foi imobilizado por outras pessoas. O louco capturado se debatia até conseguir escapar pela porta dando safanões e coices em desvario. A pobre vítima logo tinha ido ao chão e em choque não conseguiu explicar o motivo de um surto tão descomedido. Depois disto Jekill ficou assombrado.
Ainda bem que seu instinto de fuga tinha funcionado e agora podia ouvir esta história bem longe. Teria que esperar no mínimo um ano para voltar lá, contando que a mulher nunca mais retornasse. Ficou sinceramente aliviado por ter realizado um ataque tão patético, talvez a explicação pela reação moderada dos outros clientes do banco. Agora, com a normalidade restabelecida está sozinho no jardim de sua casa alimentando com alpiste as rolinhas, os pardais e os canários, atrapalhando a polinização.
(Itapema e Gaspar, Janeiro de 2007)

X Virtuosismo (Homenagem)

Mesmo por vezes instável e imprevisível Jekill ainda pode ser visto como alguém desprovido de atrativos valorosos. Não possue um diferencial marcante positivo, além de seus resmungos e mesmice nada pode ser distinguido, é um ordinário por excelência. Isto o coloca no exato oposto ao virtuosismo, junto com a avassaladora maioria das pessoas, incluindo eu e, talvez, você que agora lê estas linhas. Porém, esta refletividade não o impede de identificar o virtuosismo alheio.
Antes de tudo, para que tudo se esclareça com retidão, é preciso compreender os sinuosos rodeios do virtuosismo na introspectiva alma de Jekill. Ao analisar suas confissões é impossível não lembrar do deturpado Salieri representado em Amadeus, como um medíocre consciente que não suporta o virtuosismo de Mozart. Jekill não lembra de ter tido ele mesmo uma sensação desta natureza, mas entende o sentimento e poderia citar alguns casos reais fora da ficção do cinema. Por ser o termo virtuose, mormente aplicado aos músicos, em particular ao seu domínio técnico do instrumento ou voz, é nesta profissão que uma série incontável de exemplos surge. É uma tristeza ver alunas cantoras, aspirantes a diva, disputando em desespero suas competências através da retórica ou pianistas arrebentando os tendões aos 19 anos, incrédulos com o novo preferido de seu professor, um virtuose de 13 anos. No métier musical Jekill sempre admirou o desapego dos sopros a estas questões, são os mulherengos e felizes beberrões. Mas o virtuosismo também pode ser aplicado às outras atividades humanas e, neste momento para entendermos Jekill em sua inteireza, o seu contrário é o lugar comum, o sem graça, o mediano e não o vício ou a maldade. O virtuosismo deve ser entendido agora como uma extrema facilidade de atingir um objetivo qualquer. A coerência imaculada e absolutamente eficiente de ações de um indivíduo ou grupo até atingir uma meta bem definida. Estas improvisadas definições sugerem um virtuosismo genérico e torna possível que sejam incluídas as ações do bem e do mau, compreendidas assim através do consenso mais tradicional. Desta forma, o virtuosismo se coloca para além destas questões, ou seja, uma ação virtuosística pode ser boa (consenso tradicional) ou ruim (também consenso tradicional). Para que nosso cadete da filosofia não se perca nos abismos do conhecimento e denuncie seu quase vazio reservatório epistemológico, um exemplo concreto e direto se faz forçoso: quase todos concordam que um crime é uma coisa ruim (consenso tradicional), porém um crime com sucesso total, por exemplo, um roubo de banco onde os ladrões conseguem escapar ilesos com 1 milhão de reais, é um golpe virtuosístico. Tão virtuosístico quanto o sucesso de uma bondosa expedição a uma montanha ou um concerto dificílimo executado com brilhantismo por um violinista.
Sem se preocupar muito com o virtuosismo das coisas ruins, por causa da inexorável rede de acontecimentos indesejáveis a incógnitos terceiros, Jekill se extasia com o virtuosismo do bem, segundo o consenso tradicional. Apesar de apresentar alguns traços claramente patológicos, sobretudo latentes em sua desmesurada prolixidade, Jekill não poderia deixar de admirar, como tantos outros, a inspiração gerada pelo virtuosismo verdadeiro. E este virtuosismo que as pessoas querem copiar, querem estar próximas, querem falar que viram ou que conhecem alguém que viu, este é o virtuosismo de Heráclito: um só é mil se é o melhor.

A memória jamais falhará após a compreensão daquele sistema fechado, real e impenetrável! Um trovão que se aproxima por terra e de repente surge pelo caminho cercado de mato. Está materializado em uma arma metálica pontuda, polida ao extremo, apertada e dura. É um avião brilhante que balança ritmado enquanto avança pela pista no final do aeroporto, só querendo chegar e descansar. O som é paralisante e tem o efeito de mil homens! Em um minuto aparece o seu piloto atarefado e com um amor incalculável por saber que está atolado até as últimas tripas no virtuosismo da aviação! Queremos estar com estes virtuosos, eles estão no melhor que podemos desejar. Depois deles é só imaginação.
O virtuosismo é inspirador. Ele pode estar em atos isolados, como em alguns momentos brilhantes de qualquer pessoa, interpretados como uma maré de sorte, como também pode ser uma constante vitalícia. Jekill não se ilude e sabe que o virtuosismo está, antes de tudo, na simplicidade. A complexidade será uma conseqüência quando necessária. Este fato disfarça muitos virtuosos que quase não são percebidos e podem estar muito próximos. Um homem que seja coerente em seus atos e que se mantenha atento ao longo da vida é um virtuoso e pode inspirar seus filhos. Esta alegria é contagiante e tudo fica mais fácil. A leveza do ser é uma delícia!
Jekill entra tranquilo em casa pela porta dos fundos e olha para as fotos arrumadas sobre a cômoda da sala. Dá um sorrisinho e se larga no sofá aliviado por saber disso. A alegria é contagiante. Podemos simplesmente copiar esta alegria. Qual o sentido de complicar o que pode ser simples e agradável? Este virtuosismo hereditário pode ser percebido em decisões como respeitar o ritmo das coisas, o famoso “andar da carruagem”, respeitar sem deixar de progredir. Este esforço constante contra o comodismo, mas sem se entregar ao flagelo, é uma atitude copiosamente virtuosa!
Ainda neste campo está o progresso das idéias, a ousadia de novos pensamentos, que a primeira vista parecem incongruentes, mas que aos poucos vão abrindo uma porta de riquezas maravilhosas. A altivez para encarar o conhecimento e a verdade não suporta senão o virtuosismo. A busca e a aquisição do conhecimento implica em uma outra habilidade, parente da diplomacia, a sensibilidade de administrar os indivíduos entre eles. Esta aptidão é sutil, quase não se percebe, mas quando olhamos atentos por cima do nosso ombro certamente encontramos alguém entretida generosamente nesta tarefa.

Aos poucos, nosso caseiro observador percebe-se um tanto virtuoso. Afinal, perceber o virtuosismo demanda uma dose de virtudes, pelo menos uma atenção especial ao que os outros têm de melhor. Sentado no sofá, ouvindo um jazz lento emoldurado pela surdina de Gillespie, cheirando um Shiraz, Jekill finalmente fica contente em ter pensamentos mais delicados. Como eles são valiosos!
(Recife, Abril de 2009)

Leandro Gaertner
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[1] “Obsessão” de Odilon Redon.

[2] O personagem Jekill faz referência ao livro O Médico e o Monstro (título original em inglês:The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde) de Robert Louis Stevenson publicado em 1886. (Fonte: Wikipedia)

[3] Não existem provas seguras acerca da identidade de Petrônio, mas é hoje quase certo que se trata de Gaius Petronius Arbiter ou Titus Petronius (c.27-66 d.C.), distinto frequentador da corte do imperador Nero e autor de Satiricon. (Fonte: Wikipedia)

[4] Nelson Falcão Rodrigues (Recife, 23 de agosto de 1912Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1980) foi dramaturgo, jornalista e escritor brasileiro. (Fonte: Wikipedia)

[5] Henry David Thoreau (12 de julho de 1817, Concord, Massachusetts - Concord, 6 de maio de 1862). Foi ensaísta, poeta, naturalista e filósofo americano. (Fonte: Wikipedia)

[6] Milan Kundera (1 de abril de 1929, em Brno, Tchecoslováquia). O escritor tcheco vive na França desde 1975, sendo cicadão francês desde 1980. (Fonte: Wikipedia)

[7] Julio Florencio Cortázar (Bruxelas, 26 de agosto de 1914 - Paris, 12 de fevereiro de 1984), foi um escritor argentino. (Fonte: Wikipedia) É uma referência ao livro Histórias de Cronópios e de Famas.

[8] Expressão latina: Ó vergonha!

[9] Bertrand-Jean Redon (Bordeaux, 20 de abril de 1840 - Paris, 6 de julho de 1916), conhecido como Odilon Redon. Foi pintor e artista gráfico francês, considerado o mais importante dos pintores do Simbolismo. (Fonte: Wikipedia)

Flauta - Um pequeno artigo jornalístico

Certa vez um jovem indiano me afirmou com todas as letras que a flauta é originária de seu país, a Índia. Algum tempo depois conheci uma chinesa que veio morar e estudar música no Brasil e, na nossa primeira conversa, ela também atribuiu ao seu país a invenção da flauta. Esta experiência nos leva a uma questão: afinal, o que é uma flauta? Se imaginarmos um tubo oco, perfurado com vários buracos ao longo de sua extensão e com um orifício na extremidade onde podemos soprar e produzir um som, estamos imaginando uma flauta. Esta é a descrição básica de muitos instrumentos musicais, que são encontrados em várias culturas do mundo e que acompanham o homem desde os primórdios da humanidade. Uma descrição tão pragmática quanto esta serve para entendermos que a flauta não possue um inventor específico, nem um país ou data específica de surgimento, é um instrumento musical da família dos sopros que pode ser encontrado nas mais variadas formas e vem se transformando há milhares de anos. Já foram encontradas flautas de osso feitas há cerca de 9 mil anos atrás!
O que se conhece hoje como flauta, mais especificamente na cultura ocidental européia, pode ser organizado em dois grupos: a flauta doce e a flauta transversal. A flauta doce ou flauta de bico é segurada verticalmente e soprada através de uma espécie de apito (bisel) encaixado na extremidade. É um instrumento que foi muito usado na música européia renascentista (por volta dos séculos XV-XVI) e barroca (séculos XVII-XVIII) e hoje surge principalmente na prática da música destes séculos e também como instrumento pedagógico na iniciação musical. Muitos cursos universitários adotaram a flauta doce como instrumento obrigatório na formação de professores de música, por causa do seu peso, que facilita o seu manuseio por crianças, e o baixo preço. Uma boa flauta doce feita de plástico pode ser encontrada por menos de R$ 25,00.
A flauta transversal é totalmente oca e segurada horizontalmente. O flautista produz o som soprando por um orifício feito no corpo do instrumento, próximo da extremidade, de um jeito parecido como quando sopramos pelo gargalo de uma garrafa. Como na flauta doce, uma melodia é feita pela ação dos dedos que tampam os pequenos orifícios no corpo do instrumento em dezenas de combinações e pela variação de velocidade do ar dentro do tubo. Até a primeira metade do século XIX a flauta transversal européia era feita de madeira, principalmente de ébano. Com o aumento gradativo do número de músicos na orquestra, a partir do Romantismo na música (por volta do século XIX), notou-se que a velha flauta de madeira não tinha volume suficiente para competir com a grande massa sonora. Para resolver isto, o construtor de instrumentos Theobald Boehm (1794-1881) desenvolveu uma flauta de metal (com uma liga de ferro, níquel e prata) e com chaves, ampliando assim a extensão do instrumento (quantidade de notas), a agilidade e o volume sonoro. A flauta transversal usada hoje em dia nas orquestras e bandas sinfônicas, em grupos de Choro e de Jazz segue ainda este modelo de Boehm, com algumas melhorias que foram feitas ao longo do século XX.

Para saber mais entre em contato com um professor de flauta, também na internet pesquisando na Wikipedia ou em livros.
Leandro Gaertner
Itapema, Fevereiro de 2008.

DIÁRIO - GALOS NA CABEÇA

A primeira coisa que pensei ao acordar naquele dia foi no estranho zumbido em meu ouvido esquerdo. Lembrava que tinha ido dormir ainda com uma sensação de gripe, com o corpo dolorido e a cabeça comprimida, esperando me levantar melhor. De fato me sentia bem, mas com um agudo e ininterrupto apito no ouvido esquerdo, bem audível nas primeiras horas da manhã no pequeno hotel em frente à rodoviária. Ao ligar o chuveiro vi que os sons estavam realmente estranhos, o barulho da água estava de alguma forma misturado, como os sons de conversa que ecoavam pelo corredor do hotel e ricocheteavam em minha cabeça como ecos.
Quando saí para a rua pude perceber a qual ponto estava minha percepção, não conseguia identificar com precisão qual a exata direção dos sons que me chegavam. Notei que os agudos estavam mais alterados quando passei por um grupo de pessoas e as vozes das mulheres se deformaram enquanto as dos homens ficaram mais estáveis, apesar de também apresentarem certo grau de estranheza. Continuei andando pela calçada do mercado público ao lado do hotel, muito atento à infinidade de sons que uma movimentada cidade possui e nesta hora já não estava mais ouvindo o apito agudo, só um grande emaranhado de sons que, apesar de parecerem bem contornados, tinham um momento impreciso que lembrava um empilhamento de ecos. Fiquei impressionado com o fenômeno e o atribui ao mal estar e ao princípio de febre que tivera dois dias antes, talvez por causa de uma incomodação, imaginando neste instante o lado esquerdo da minha cabeça todo entupido. Ao assobiar uma notinha aguda fiquei ainda mais surpreso, pois mesmo estando certo de emitir apenas um som de cada vez no meu assobio, eu estava ouvindo dois sons de alturas distintas ao mesmo tempo. Fiquei impressionado ao produzir um dueto que só poderia ser ouvido na minha cabeça! O ouvido direito tocava o som real que eu assobiava enquanto o esquerdo um outro som mais grave e ainda, quanto mais agudo o assobio mais nítida ficava esta nota grave ouvida no lado esquerdo entupido. Caminhei alguns metros percebendo esta audição dupla como um estéreo de aparelhos diferentes e estranhando muito os sons agudos vindos de longe.
A coisa ficou séria quando um galo no mercado público começou a cantar e tive dúvidas da sua exata localização, mesmo vendo ele todo empertigado cinco metros a minha frente; na verdade também tive dúvidas se era aquele galo que cantava ou ainda, se vários galos cantavam ao meu redor. Até cheguei a pensar que um galo poderia emitir um canto onipresente que me encobria por inteiro, com o som ribombando na minha cabeça já em diversas alturas, intensidades e velocidades, vindas de todos os lados e de cima, e era isso que me pareceu naquele momento a coisa mais aceitável! Passei pelo galo olhando de lado e sugando restinho do chocolate em caixinha que gosto de beber como desjejum, o assobio continuava lá com duas alturas diferentes, uma em cada lado da cabeça.
Ao passar a pé por trechos mais silenciosos da cidade comecei a estudar o que estava acontecendo, assobiando e prestando atenção nos sons que se formavam. Após algumas tentativas me pareceu que ouvia no lado esquerdo algo como uma “sétima menor” abaixo do som do lado direito, formando um intervalo harmônico. Para quem não souber do que se trata um intervalo harmônico sonoro de sétima menor basta ir até um piano e pressionar a tecla Si bemol simultaneamente com a primeira tecla Dó à esquerda; mais ou menos este feito se produzia em mim quando assobiava. Será por que afinal a gripe foi gerar esta dissonância e não um outro intervalo qualquer? Já estava rindo e imaginando uma modinha caipira em terças paralelas sendo desenhada só na minha mente.
Mais adiante um carro usado como propaganda de um candidato passou tocando um daqueles típicos jingles e me assustou de vez. A música que ouvia não fazia o menor sentido, parecia ter sido gravada por instrumentos completamente desafinados, ou falando mais tecnicamente, parecia que cada instrumento e cantor do jingle estavam numa tonalidade diferente, para algum músico aquilo talvez fizesse algum sentido se pensasse em politonalidade. Ouvir música pela primeira vez nessas condições me desesperou! Como ficaria o meu futuro como músico, ainda como tocador de um instrumento tão agudo como a flauta? Na mesma hora já pensei em estudar trompa. Ainda bem que estava no mestrado e gostando de algumas elucubrações teóricas... Mas não poder mais tocar ou ouvir música decentemente?! Eu bem poderia compor algo totalmente estranho aos ouvidos normais, como um novo sistema musical baseado em sétimas menores, mas que soasse tradicional e confortável para mim. A certeza de que esse novo sistema fosse coerente dependeria exclusivamente do seu resultado “normal” para a minha percepção. Se para mim soasse tradicional e reconhecível, o novo sistema teria alguma validade; mesmo soando desconexo para os antigos ouvintes ele ainda teria uma construção fundamentada e esta seria a sua importância.
Resolvi ir ao cinema do shopping (como se existissem muitas opções) e um pouco antes de entrar aconteceu novamente o mesmo efeito do galo, só que agora com uma criança aos gritos, o que quase me obrigou a proteger os ouvidos com as mãos e a sair correndo. Fui ver um excelente filme de ação americano e mais uma vez minha audição me surpreendeu, desta vez com o teminha romântico do casal principal, em andamento lento e lânguido tocado ao piano. O divertido foi ver um filme de investigação tipicamente de Hollywood (Slevin), com muita violência, cenas rápidas e final feliz com um tema musical central igual ao daqueles filmes alternativos do cinema europeu, onde a trilha parece estar rodando num disco de baixa rotação ou está danificada pelo tempo, criando uma variação instável das alturas, uma ambiência de filme antigo. Engraçado uma superprodução com Bruce Willis com trilha de filme B. Depois da sessão foi até um alívio voltar para a rua a caminho do campus do meu curso.
Um pouco antes de entrar numa sala de aula com piano já tinha notado que o intervalo entre os ouvidos não era mais o mesmo, ou pelo menos foi essa minha impressão, parecia ser agora uma oitava justa. Ao teclar o piano vi que tudo ainda soava embaralhado e que antes de iniciar a aula teria duas horas para tomar café, terminar a análise do “Der Dandy” do Pierrot Lunaire e ter minha orientação para a dissertação. Durante a conversa de mais de uma hora com minha professora nem mesmo tive tempo ou oportunidade de lhe contar sobre minha alteração auditiva, nem mesmo percebi quando ou como exatamente os dois ouvidos parecem ter se equalizado. A conversa foi tão intensa e decisiva que esqueci dos galos, da sétima menor ou oitava justa e, finalmente, vislumbrei meu objeto de pesquisa boiando no referencial teórico.
O dia seguinte ainda restava um pequeno e agudíssimo apito no lado esquerdo e em tudo ainda restava uma tonta confusão, apesar de não ter mais o intervalo entre os ouvidos. Como comemoração à quase volta da normalidade e com muita vontade de tocar, sentei num banco da praça que mais gosto e toquei.

Leandro Gaertner - Gaspar, Setembro de 2006.