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segunda-feira, 8 de março de 2010

Con [TRA] d [I] ções

"Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!"
Álvaro de Campos


Nada como alguém de fora para pôr nossos pensamentos fracos, incertos e desconexos em palavras, no meu e neste caso em particular, alguém como Albert Einstein (1879-1955) através de seu livro “Como vejo o mundo” (Mein Weltbild), publicado cerca de dois anos antes de sua morte.
Nunca tinha entendido muito bem porque aos 18 anos fugi do serviço militar como o diabo fugiria da cruz, da estrela de Davi e da lua crescente, naquela época sonhando em fazer minha primeira viagem à Europa o mais rápido possível, num processo adolescente de auto-afirmação e conhecimento... e que continua até hoje... O fato é que, após ter vivido a seleção de recrutas do exército brasileiro, a famosa experiência do “Cueca no joelho!” e a desagradável filinha do “opa, desculpa...”, acabei sendo agraciado com a dispensa daquele ano obrigatório, intermediada por um pistolão. Isso sempre me pareceu contraditório, pois sempre fui atraído, como grande parte das crianças e jovens, por brincadeiras militarescas, aventuras, missões, acampamentos, conhecimentos selvagens, correr na lama e tiro ao alvo, apesar de sempre ter sido um tanto avesso às alvoradas festivas antes das 9 horas da manhã. Sabia que podia ser um ano deveras divertido, consolidar novas e inusitadas amizades no quartel e enfim, poder encerrar em grande estilo minha infância de missões secretas, combates e pequenas guerras no nosso jardim e barranco do rio. Mas, mesmo com isto em mente, quase como um reflexo vital sabia que era hora de dar um verdadeiro passo adiante e para isto não poderia servir o exército de jeito nenhum.
Até hoje ainda tenho uma grande queda estética pelas marchas, melhor dizendo, pelos “dobrados” militares. Eu continuo apreciando o conjunto de marchar cantando, a ordem, a vibração, a cerimônia em si, a música sempre afirmativa e positiva; se bem que, após estas últimas semanas de reflexão esse prazer antigo e infantil também corre o risco de desaparecer por completo. Mas isto ainda é uma conjectura, pois minha experiência inicial com música foi muito bem preenchida por bombardeios na Bahia, velhos camaradas e semper fidelis na Banda São Pedro, difícil de apagar aquela alegria cheia de movimento e lindas linhas do bombardino... por outro lado também hoje fico muito contente quando lembro que ao lado das marchas também tinha o Xandoca e o Beto brincando no sax tenor, o Nego Vida do Trombone, os irmãos Koser e o Zeca fazendo um samba bonito naquele bafo de onça e no barracão de zinco, que hoje é minha mansão! Todo esse repertório de marchas e sambas antigos está lá de um jeito ou de outro quando fico arrepiado.
Essa mesma vibração com a música de ritmo preciso e firme, da marcha e da ordem também me trouxeram um prazer imenso nas formaturas da Academia da Força Aérea. Lembro muito bem de minhas sensações daqueles dias em Pirassununga, vendo aquele mar de rapazes dispostos, uma grande parte deles, imagino, idealistas... Tudo me causou uma forte impressão. Hoje entendo que foi uma impressão de orgulho e garbo ainda infantil. Mesmo ainda gostando das empolgantes marchas, mesmo que uma criancinha ainda grite aqui dentro que deve ser divertido marchar e cantar ao mesmo tempo ao lado de 100 homens também devo admitir com crua sinceridade minhas contradições e que as palavras de Einstein fazem barulho na minha cabeça:

A pior das instituições gregárias se intitula exército. Eu o odeio. Se um homem puder sentir qualquer prazer em desfilar aos sons de música, eu desprezo este homem... Não merece um cérebro humano, já que a medula espinhal o satisfaz. Deveríamos fazer desaparecer o mais depressa possível este câncer da civilização. Detesto com todas as forças o heroísmo obrigatório, a violência gratuita e o nacionalismo débil. A guerra é a coisa mais desprezível que existe. Preferiria deixar-me assassinar a participar desta ignomínia.
(Albert Einstein)

Por vezes eu esqueço que todas aquelas marchas, pompa, uniformes e ordem são em função desta antiga instituição humana, a força militar, este velho instrumento de força e de poder por coação. Mas, acho prudente desconfiar do que afirma Einstein quanto à “pior das instituições”, pois todo este ódio está vinculado às suas experiências pessoais e às angústias de sua época[1]. Concordo que para avançarmos de verdade como espécie, a instituição militar, num cenário obviamente ingênuo e utópico concebido por humanistas e pacifistas aos quais sem dúvida me identifico, deveria ser reestruturada em sua inteireza. É claro que após a segunda grande guerra do século 20 foram realizados esforços neste sentido, como tentativa de atenuar o nacionalismo-etnismo exacerbado, mais cooperação entre a nações e, sobretudo, na valorização do aspecto comunitário global, como a ONU, UNESCO, UNICEF, um aumento significativo de ONGs internacionais, etc. Porém, nossa humanidade, em sua maioria ainda muito embrutecida e com uma evidente queda pelo “tribal-guerreiro”, não nos permite tomar decisões sem o uso sistemático da espada.
Minha contradição é esta; estou certo que não teríamos mais as Forças Armadas e nem a Igreja se não fôssemos um número tão grande de “pequenos hugo chaves” espalhados pelo planeta, mas concordo que quando a coisa aperta são estas duas instituições as primeiras a chegar... Mesmo que na maioria das vezes, com exceção de terremotos, quedas de avião e afins, são estas mesmas instituições que garantem a desgraça. Repito uma utopia: deveríamos pensar numa Força Desarmada de apoio global e no lugar da fé religiosa deveríamos buscar uma profunda noção de humanismo contextualizado com a vida na Terra. É estranho que as pessoas só se desesperem pela paz em tempos de guerra.
Minha contradição é querer o fim das armas, mas jogar Call of Duty e Counter Stryke; é estar consciente da ignobilidade do garbo militar e mesmo assim ter composto um hino militar para ser marchado e cantado por soldados, com o bumbo imitando o som de canhões... E fiz este hino por admirar muito o caráter e o profissionalismo do piloto de caça. Fiz com o maior esforço e coração aberto, com a intenção de fazer o melhor possível, com respeito verdadeiro à história de um esquadrão de aviação militar. É uma senhora contradição! O meu amor fraterno permite essas coisas. Também devo dizer que li o livro de Einstein depois de já ter terminado a composição e com isso quero dizer que, se começasse a compô-la hoje, o bom resultado estaria comprometido.
Acho que não poderei mais compor marchas militares, mas não garanto que não sentirei gozo estético ouvindo a banda, o batalhão e os aviões a jato.

*

N
este mesmo livro de Einstein também fiquei bastante surpreso, e até bem decepcionado por sua aberta adesão ao judaísmo. Talvez seja útil deixar claro o fato de que eu não ficaria menos ou mais decepcionado se Einstein alardeasse sua adesão ao cristianismo, budismo, islamismo, espiritismo ou a qualquer outra destas manifestações culturais arcaicas e segregadoras, verdadeiras travas enferrujadas ao livre pensamento e ao desenvolvimento humano contemporâneo. O terrível mal que sofreu a comunidade judaica na primeira metade do século 20 é a única explicação possível para o discurso tão apaixonado e abertamente segregador de Einstein.
No subcapítulo onde fala sobre “Comunidade e Personalidade” ele ainda se aproxima da ideia de comunidade humana, mas num sentido que mais tende a explicar a condição do homem como um ser social do que a elaborar um pensamento amplo da espécie humana, como uma comunidade única e sem fronteiras.

Eu, enquanto homem, não existo somente como criatura individual, mas me descubro membro de uma grande comunidade humana. Ela me dirige, corpo e alma, desde o nascimento até a morte.
(Albert Einstein)


Um pouco mais adiante, no subcapítulo “Anti-semitismo e juventude acadêmica”, Einstein enfatiza a necessidade da afirmação de uma tradição cultural judaica. Este tipo de discurso acontece em praticamente todo o capítulo 4 (“Problemas judaicos”):

Como para todas as doenças psíquicas, a cura exige uma clara explicação da natureza e das causas do mal. Temos de elucidar perfeitamente nossa condição de estrangeiro e daí deduzir as consequências. É estúpido querer convencer outrem, mediante todo tipo de raciocínio, de nossa identidade intelectual e espiritual com ele. Porque a própria base de seu comportamento não é obtida pela mesma camada cerebral. Temos de emancipar-nos socialmente, encontrar por nós mesmos a solução para nossas necessidades sociais. Temos de formar nossas sociedades de estudantes, comportar-nos frente a não-judeus com toda a cortesia, mas com lógica. Queremos também viver a nosso modo, não imitar os costumes dos espadachins e dos beberrões. Nada disto nos diz respeito. Pode-se conhecer a cultura da Europa e viver como bom cidadão de um Estado, sem deixar de ser ao mesmo tempo um judeu fiel. Não nos esqueçamos disto e façamos assim! O problema do anti-semitismo, em sua manifestação social, será resolvido então.
(Albert Einstein)

Por quê este pensamento tribal de Einstein? Não pretendo aqui realizar uma análise aprofundada do que Einstein escreveu ou não, se a tradução e a edição do livro que chegou até minhas mãos é 100% fiel às ideias do escritor ou não, ou então aprofundar de verdade a discussão sobre a cultura, individualidade, comunidade, concepção de vida de Albert Einstein. A minha principal crítica é quanto ao afastamento de Einstein à noção de “Universais[2] da humanidade, isto é, ele se afasta da noção de comunidade maior, do potencial comum inerente à nossa existência, evolução e desaparecimento. Este afastamento é evidente quanto ele insiste no orgulho da comunidade judaica e a diferencia dos indivíduos não judeus. Fiquei surpreso, pois não poderia imaginar que esta cisão cultural histórica e desastrada ainda estaria na boca de um dos grandes gênios do século 20.
Considero válido ressaltar os aspectos particulares positivos desta ou daquela cultura em prol da humanidade, como quando ele faz no subcapítulo “Cristianismo e Judaísmo”:

Se se separa o judaísmo dos profetas, e o cristianismo tal como foi ensinado por Jesus Cristo de todos os acréscimos posteriores, em particular aqueles dos padres, subsiste uma doutrina capaz de curar a humanidade de todas as moléstias sociais. O homem de boa vontade deve tentar corajosamente em seu meio, e na medida do possível, tornar viva esta doutrina de uma humanidade perfeita. Se realizar lealmente esta experiência, sem se deixar eliminar ou silenciar pelos contemporâneos, terá o direito de se julgar feliz, ele e sua comunidade.
(Albert Einstein)

Ou quando Einstein elogia o aspecto da tradição judaica de valorização à vida:

Como é viva no povo judeu a consciência da sacralização da vida! É muito bem ilustrada até na historiazinha que Walter Rathenau me contou um dia: “Quando um judeu diz que caça por seu prazer, ele mente”. A vida é sagrada. A tradição judaica manifesta esta evidência.
(Albert Einstein)

É evidente que tradições humanas como o cristianismo e o judaísmo tem pontos a seu favor, do contrário não teriam sobrevivido por tanto tempo. Suponho que este aspecto de valorização à vida por parte dos judeus e o aspecto da partilha e da compaixão por parte dos cristãos, por exemplo, deva ser de alguma maneira real. Porém, sei que falo isto do meu ponto de vista, de 2010 e bem relaxado, um tanto despreocupado com o passado remoto, como os primeiros anos da sociedade cristã, conflitos com as sociedades "pagãs", processo civilizador ou não, etc... Difícil conceber a realidade (se não impossível) de outro zeitgeist[3] (quanto mais distanciado no tempo mais difícil fica), a despeito de tentativas bastante interessantes como a do filme Walhalla Rising (2009) de Nicolas Winding Refn. Acredito que uma observação distanciada e apartidária das virtudes e dos vícios das antigas tradições humanas, sejam elas políticas ou religiosas, ou então somente compreendidas como “tradições culturais”, possa ser útil ao conhecimento e ajudar a resolver algumas questões humanas.
O judaísmo para Einstein é sobretudo uma tradição, uma cultura humana e que pode estar desligada da religião ou da fé em deus. Ele chega a afirmar que “Deus não existe para o judaísmo, onde o respeito excessivo pela letra esconde a doutrina pura” no subcapítulo “Há uma concepção judaica do mundo?” O que significa dizer que: se você compreender a “doutrina pura” do judaísmo, verá que deus não existe. Neste ponto, eu penso que Einstein tinha a concepção de deus bem resolvida na sua mente genial de físico teórico, tanto que não me preocupei em citá-lo para corroborar minhas (nossas, dawkinianas) ideias ateístas no texto “Uma breve história de Deus”, mas ele tinha que forçar a barra nesse status de jateu, o judeu-ateu, para camuflar a contradição. Ora, provavelmente a concepção de deus ou deuses em nossa mente deve ser um dos Universais humanos.
E finalmente, como exercício de refletir o que para mim soou como um disparate, pois não poderia ter outra impressão ao ler Einstein falando em “nosso povo judeu” ou “eu sou judeu”, afinal ele critica o nacionalismo e logo em seguida se etiqueta. Então, suponho que suas reflexões sobre o judaísmo não passem do mais puro produto zeitgeist, uma tomada de consciência e de postura urgente por parte dos intelectuais da primeira metade do século 20:

Os judeus formam uma comunidade de sangue e de tradição, sendo que a tradição religiosa não representa o único ponto comum. Revela-se antes pelo comportamento dos outros homens diante dos judeus. Quando cheguei à Alemanha, há quinze anos, descobri pela primeira vez que era judeu e esta descoberta me foi revelada mais pelos não-judeus do que pelos judeus.
(Albert Einstein)

Abraçar com força a causa talvez tenha sido a única maneira encontrada por ele de guardar as jóias desta cultura humana. Mas este felizmente não é mais o nosso caso, nem daqueles que se dizem cristãos, islâmicos ou judeus. Todos nós podemos jogar estas etiquetas pela janela, agora elas já poderiam ser problema exclusivo de historiadores e antropólogos, porque estou certo que o polegar opositor e a escrita já são provas suficientes para gritar a plenos pulmões:

NÃO HÁ MAIS TEMPO PARA NÃO NOS SATISFAZERMOS COM NOSSOS UNIVERSAIS!

Leandro Gaertner
Paris, Março de 2010.

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[1] É bom lembrar que Einstein viveu o auge da ascensão do movimento nacionalista e ainda, para piorar, atravessou as duas grandes guerras do século 20 como um cientista de formação judaica, alvo principal da eugenia nazista. A sua ojeriza pelo militarismo é bem justificável.
[2] O termo “Universais” remonta à filosofia clássica de Aristóteles e Platão e refere-se a uma maneira de compreender o que parece ser comum a coisas diferentes, enquanto opõe as particularidades. Por exemplo, existe os Universais da espécie humana, porém cada humano apresenta sua singularidade.
[3] “Espírito do tempo”, isto é, características, problemas, crenças, certezas, incertezas, conhecimento e contexto inerentes e particulares a uma determinada época.