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terça-feira, 29 de setembro de 2009

Carta de Benjamin Costalat (1922)

OS OITO BATUTAS
Fujo um pouco ao normal deste blog ao incluir uma carta de 1922 do cronista carioca Benjamin Costalat ao jornal Gazeta de Noticias. Na época muito se discutiu sobre a ida dos Batutas à Paris, seu valor, sua qualidade musical, questões racistas (pois a maioria do grupo era de músicos negros), se seriam eles representantes legítimos ou não, adequados ou não, da cultura brasileira, que vivia momentos de afirmação nacionalista em pleno ano do centenário da independência... Esta história vai muito mais longe e foi maravilhosamente contada na tese de doutorado (que li muitos trechos emocionado e com os olhos marejados) de Luiza Mara Braga Martins, defendida ainda este ano no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
Este velho texto que segue não só merece, como precisa ser lido por todos os chorões e amantes da boa música! E o coloco aqui com muito orgulho por também ser um chorão, flautista, acadêmico boêmio, doctorant-bon-vivant, empenhado em continuar esta história, tocando Pixinguinha nas salas da Sorbonne!



"Foi um verdadeiro escândalo quando, há uns quatro anos, os Oito Batutas apareceram. Eram músicos brasileiros que vinham cantar coisas brasileiras! Isso em plena Avenida, em pleno almofadismo, no meio de todos esses meninos anêmicos, frequentadores de cabarés, que só falam francês e só dançam tangos argentinos! No meio do internacionalismo das costureiras francesas, das livrarias italianas, das sorveterias espanholas, dos automóveis americanos, das mulheres polacas, do esnobismo cosmopolita e imbecil!
Não faltaram censuras aos modestos Oito Batutas. Aos heroicos Oito Batutas, que pretendiam, num cinema da Avenida, cantar a verdadeira terra brasileira, através de sua música popular, sinceramente sem artifícios nem cabotinismo, ao som espontâneo dos seus violões e dos seus cavaquinhos. A guerra que lhes fizeram foi atroz. Como músicos eram bons, batutas de verdade, violeiros e cantadores magníficos. Como a flauta de Pixinguinha fosse melhor do que qualquer outra flauta por aí saída com dez diplomas de dez institutos, começaram os despeitados a alegar a cor dos Oito Batutas, na maioria pretos. Segundo os descontentes, era uma desmoralização para o Brasil ter na principal artéria de sua capital uma orquestra de negros. O que iria pensar de nós o estrangeiro?
Tive a honra de defender (e essa defesa foi das que fiz com mais entusiasmo em minha vida de jornal) os Oito Batutas naquela ocasião. Hoje, porém, tenho que voltar ao assunto: os Oito Batutas embarcam esta semana para Paris.
- Para Paris?
- Mas isso é uma desmoralização!
- Como é que o ministro do Exterior não toma providencia?
- Agora é que o Brasil vai ficar inteiramente desmoralizado!
Calem-se os imbecis. Calem-se os patriotas baratos. Calem-se os músicos pernósticos que fazem música das Casas Mozart e Artur Napoleão. Os Oito Batutas não desmoralizarão o Brasil. Levarão a verdadeira música brasileira, essa que ainda não foi contaminada por influências alheias e que vibra e que sofre e que geme por si, cantando luares dos sertões e os olhos da cabocla... Levarão o perfume das nossas matas, o orgulho das nossas florestas, a grandeza da nossa terra, a melancolia da nossa gente, a bondade e o amor dos nossos corações, ditos e cantados pelo verso simples e a música sublime da alma popular... Levarão o verdadeiro Brasil, desconhecido dos próprios brasileiros, mas formidável assim mesmo no enigma de suas forças e de suas aspirações...
- Mas são negros !
- Que importa ! São brasileiros !
Devemos procurar ser conhecidos na Europa tal qual somos. Com os nossos negros e com tudo o mais... Nada perderemos com isso. Temos uma personalidade internacional tão digna quanto as outras, e cumpre afirmá-la a cada instante:
- Somos assim. E se nos quiserem...
Detesto esses bons patriotas que, na Europa, querendo fazer propaganda desta terra, negam que no Brasil haja calor e negros, duas coisas que eles consideram bastante deselegantes.
- Mas, por que?
Porque consideram o calor e o negro duas coisas vergonhosas, se elas, primeiro, não o são e, segundo, são bem nossas, bem brasileiras? Eu quisera que no Brasil houvesse gente verde, gente de todas as cores, calor de enlouquecer, calor de matar, para poder afirmar com orgulho a existência de todas essas pretendidas calamidades aos europeus! E se eles se espantassem com o calor do meu país, eu me espantaria com o frio deles, se eles gritassem contra o sol, eu gritaria contra o gelo, se eles falassem contra o preto, eu falaria contra o branco, e assim não acabaríamos nunca! Não acabaríamos mesmo nunca! Cá por mim, não acabaria! Tenho muita coisa a dizer da Europa em reação às coisas que se disserem no Brasil!
Não é, pois, vergonha sermos conhecidos tal qual somos. Ao contrário, isso nos deve honrar.
Vergonha é sermos inteiramente desconhecidos. E é o que somos.
Noutro dia ainda, apareceu o Almanach Hachette, de 1922, que é comprado aos milhares e há anos, no Brasil, dando uma descrição fantástica da bandeira brasileira. Mas, uma descrição fantástica! O francesinho que a escreveu falara em linhas paralelas e nãosei mais quantas asneiras!
Isto é que é vergonha. E sem vergonha são estes livreiros daqui que vendem semelhante porcaria e não devolvem imediatamente ao Sr. Hachette o seu latrinário almanaque com um pouco de creolina.
Amanhã, também não teremos obrigação de conhecer a bandeira francesa. Podemos descrevê-la como entendermos. Com qualquer cor, com qualquer símbolo. E, naturalmente, o Sr. Hachette será o primeiro a protestar... vendendo mais caro os seus livros.
O sucesso dos “Oito Batutas”, em Paris, será grande. Será a revelação de uma música inteiramente nova na beleza de seus ritmos e de sua melodia.
Paris que eu vi, ainda há meses, festejar uma grande orquestra americana de pretos. “The Syncopated Band”, que tocava Beethoven e todos os clássicos com acompanhamento de buzina de automóvel, apito de trem, campainhas, latas velhas e os barulhos mais infernais e mais prosaicos que a imaginação mórbida do jazz-band conseguia inventar, uma orquestra que enlouquecia, uma música que dava cólicas; Paris, que foi em peso, de casaca, com luxuosíssimas toilettes, ouvir religiosamente todo aquele ruído ridículo no Theatre des Champs Elysées, naturalmente saberá fazer distinção entre nossos músicos e os palhaços americanos, os homens das latas, das buzinas e dos apitos...
Os americanos levaram barulho. Os nossos levam sentimento. O que saiu das latas, vai sair agora dos corações. A diferença é grande... Não é mais Beethoven com chocalhos que os franceses vão ouvir. É a música de uma terra e a alma de uma gente distante. Terra do luar, da cabocla, do violão... Terra admirável de sentimento onde até os coqueiros morrem de saudade!...
Tu não te lembras da casinha pequenina
Onde o nosso amor nasceu
Tinha um coqueiro ao lado
Que, coitado, de saudades já morreu!
E ouvindo as nossas modinhas, e ouvindo cantar as nossas noites de luar e o nosso sertão e os olhos das nossas morenas, e o nosso amor e as nossas saudades, muitos franceses hão de se comover. E no cabaret, estonteante de alegria e de luzes artificiais, muita cocotte, olhos fundos de crayon, lábios úmidos de champagne, há de chorar ouvindo a ‘asa branca da serra’ ou uma ‘casinha na praia’. Há de chorar, e com razão, a casa branca que ela nunca teve, nem na praia, nem na serra...
Chorarás, mulher!, mesmo sem compreender as palavras, porque a modinha brasileira fala pela voz de seu violão. E todos o entendem na sua linguagem cantante...
Chorarás a pequena casa branca da felicidade onde a garrafa de champagne é um riacho que geme mansamente todo o dia e toda a noite, e vem, puro, lá dos altos das montanhas infinitas... E compreenderás, enfim, graças à modinha, plangente mas feliz, que é ainda cá nestes maravilhosos sertões brasileiros que há um pouco de beleza e de felicidade espalhadas entre os homens..."
BEMJAMIM COSTALAT
Janeiro de 1922


Fonte: Museu da Imagem e do Som, Arquivo Almirante: Carta de COSTALAT, Benjamin, na Gazeta de Noticias, domingo, 22 de janeiro de 1922, p. 2, 7ª Coluna.
Foto: Jornal A Noite, 14 de agosto de 1922

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

-TAPIRA SKY-

Assim como aconteceu com Recife, minhas impressões sobre a Fazenda Mangueira Preta e Tapira se contornam à medida que estes lugares se afastam no tempo. Porém, estas são impressões urgentes e não poderia esperar (leia-se “me controlar”) muito para escrever, mesmo sem o medo de perdê-las. Destas impressões a mais impressionante é o meu novo olhar para a nossa localização no Sistema Solar, e assim na Via Láctea e assim, construir uma imaginação um pouco mais audaciosa sobre nossa própria posição no Universo, e agora não importa mais se estou falando de mim mesmo, da casa da fazenda ou de nossa espécie. Também não irei perder a surpreendente constatação de: “como demorei tanto para me interessar por isso?” E eu que sempre gostei de mapear, saber dos climas, bandeiras, o tamanho dos países, sempre soube que os Estados Unidos são maior que o Brasil por causa do Alasca, mas perdem para o Canadá, sempre quis me localizar pelos pontos cardeais em uma nova cidade (apesar de perder no shopping de Recife), me ver de “fora”, do “todo”, de “cima” e que aos 5 anos de idade ficava chocado com o tamanho da então União Soviética, um imenso país cor de rosa no antigo mapa... Quando pude ficar mais tempo sob o céu de Tapira tudo isto foi ampliado. Estava precisando mesmo de um banho a céu aberto para encaixar ainda melhor esta história de me localizar espacialmente no mundo, e ver o tamanho da naba.

“Toda cultura tem o seu mito da criação - uma
tentativa de compreender de onde veio o universo e tudo o que ele
contém. Quase sempre esses mitos são pouco mais que histórias inventadas
por contadores de história. Em nossa época, temos também um mito da
criação. Mas está baseado em evidências científicas sólidas. Diz mais ou
menos o seguinte... Vivemos num universo em expansão, cuja vastidão e
antiguidade estão além do entendimento humano. As galáxias que ele
contém estão se afastando velozmente umas das outras restos de uma
imensa explosão, o Big Bang. Alguns cientistas acham que o universo pode
ser um dentre um imenso número - talvez um número
infinito - de outros universos fechados. Uns podem crescer e sofrer um
colapso, viver e morrer num instante. Outros podem se expandir para
sempre. Outros ainda podem ser delicadamente equilibrados e passar por
um grande número - talvez um número infinito - de expansões e
contrações. O nosso próprio universo tem cerca de 15 bilhões de anos
desde a sua origem ou, pelo menos, desde a sua presente encamação, o Big
Bang. Talvez haja leis diferentes da natureza e formas diferentes de
matéria nesses outros universos. Em muitos deles a vida talvez seja
impossível, pois não há sóis nem planetas, nem mesmo elementos químicos
mais complicados do que o hidrogênio e o hélio. Outros talvez tenham uma
complexidade, diversidade e riqueza que eclipsam as nossas. Se esses
outros universos existem, nunca seremos capazes de sondar seus segredos,
muito menos visitá-los. Mas há muito a explorar no nosso. O nosso
universo é composto de algumas centenas de bilhões de galáxias, uma das
quais é a Via Láctea. “A nossa galáxia”, como gostamos de chamá-la,
embora ela certamente não nos pertença. É composta de gás, poeira e
aproximadamente 400 bilhões de sóis. Um deles, num braço obscuro da
espiral, é o Sol, a estrela local - e, pelo que sabemos, insípida,
trivial, comum. Acompanhando o Sol em sua viagem de 250 milhões de anos
ao redor do centro da Via Láctea, existe um séquito de pequenos mundos.
Alguns são planetas, outros são luas, uns asteróides, outros cometas.
Nós, humanos, somos uma das 50 bilhões de espécies que cresceram e
evoluíram num pequeno planeta, o terceiro a partir do Sol, que chamamos
Terra. Temos enviado naves espaciais para examinar setenta dos outros
mundos em nosso sistema, e para entrar nas atmosferas ou pousar na
superfície de quatro deles - a Lua, Vênus, Marte e Júpiter.
Estamos empenhados em realizar uma tarefa mítica.”


(Trecho do livro Bilhões e Bilhões de Carl Sagan)

Por enquanto é melhor deixar quieta a naba do Universo ou Universos e agora o “X” da questão é olhar para o céu noturno e ver a Via Láctea. Ué! Mas... Como assim! Como ver a Via Láctea se nós estamos na Via Láctea? Esta questão elementar nunca tinha latejado em minha contemplativa mente até a terceira cuia de chimarrão da segunda semana na arejada calçada da Mangueira Preta. Mas então fui investigar e saber que o “caminho leitoso” que vemos graciosamente estendido como um véu no céu, a nossa Via Láctea visível a olho nu, é na verdade um dos braços da galáxia onde está o Sistema Solar e, por sua vez, também se encontra o planeta Terra. É uma parte da galáxia, ou melhor dizendo, é um braço da nossa própria galáxia, visível de acordo com a nossa perspectiva, é o que conseguimos, o que podemos ver com os pés plantados em nosso planeta. Aqui da Terra só conseguimos ver esta enorme faixa esbranquiçada, este braço da Via Láctea, como se estivéssemos olhando para as bordas de uma moeda deitada, sem ter a noção de seu formato real. Conseguimos ver de certa maneira sua espessura, porém não vemos que a moeda é redonda. E pelo que entendi, estamos deveras longe do centro da moeda.
Praticamente tudo o que se sabe sobre a Via Láctea, desde o formato em espiral (uma série mais ou menos circular de braços), extensão e idade, só é possível graças à observação de outras galáxias vizinhas, pois as nuvens de poeira e gás de nossa própria galáxia impedem a nossa visão, pois absorvem a luz visível. É... A coisa vai se complicando. Também já seria demais, entre uma cuia e outra, de meias furadas e pernas cruzadas, querer não só entender toda uma galáxia, mas ainda por cima, querer vê-la? Com certeza o próximo passo seria criticá-la e ainda ficar se gabando por morarmos na área nobre da periferia, já poetizando saudosos sobre o nosso espaçoso braço de Órion.
Olha o tamanho da criança! A galáxia onde estamos é tão grande, mas tão grande que, proporcionalmente, se ela fosse do tamanho da Terra, o Sistema Solar seria do tamanho de um CD. E assim, na melhor das hipóteses, a Terra não passaria de um cocozinho de mosca neste CD. Continuando um pouco mais neste absurdo abismo pragmático, sem dó nem piedade, o que poderíamos então pensar de uma pessoa ajeitando o cabelo no reflexo de um CD? Esse negócio de proporção pode nos trazer sempre uma surpresa: um dia achei engraçado que a economia da Argentina inteira equivale à economia do estado de São Paulo; na página seguinte o sorriso maroto se desfez ao ler que a economia do Brasil inteiro equivale à economia da Califórnia. Este tipo de pensamento pode nos deixar de cama, o jeito é seguir andando.
O bom disso tudo é encontrar um garçom turco no alto da rue Ménilmontant e, sob o anoitecer de Belleville, falarmos de nossas terras, e que apesar dele ser curdo e eu da Coloninha, termos uma certeza em comum: pouco importa que língua falamos, estamos vivos e no mesmo planeta, sem poder sair dele.
O céu de Tapira agora me acompanha.


Leandro Gaertner
Paris, Setembro de 2009

Imagens: Representações da Via Láctea.

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quinta-feira, 10 de setembro de 2009

T R A N S F I G U R A Ç Ã O

A absorção de um homem por uma árvore

A última lembrança em movimento é de uma caminhada lenta e curta através de um jardim úmido, ainda consigo lembrar vagamente da grama verde e pegajosa roçando talvez os meus pés. Esta é a última lembrança que tenho de minha respiração. Agora puxando com força pela memória lembro do impulso que tinha em me derreter pelo caminho, mas somente posso supor que seja um derretimento, não está muito claro como tudo acontecera. Não consigo dizer se era dia ou noite, nem mesmo arriscar uma hora aproximada, o tempo era muito parecido com o tempo de um sonho, impreciso. Talvez esta seja a única certeza, a certeza de que não era um sonho. Nem mesmo poderia entender como ainda é possível refletir e ter estas lembranças, mesmo que vagas e confusas. Ainda estou vivo? E por quê não estaria? O que resta é uma forma de pensamento incompleto e está mais para um delírio, uma alucinação, como um espasmo retrógrado de memória do que para um pensamento do passado. Nem mesmo tenho certeza se estas lembranças são mesmo só lembranças ou são todo o meu conhecimento, se é tudo o que tenho. Pensar em uma última lembrança implica obrigatoriamente na existência de pensamentos anteriores, ou então, em uma vida anterior. Mas, sobre esta vida não sei mais nada. Só consigo pensar na sensação da grama úmida e cada vez mais entranhada nas minhas sensações. Nem tenho certeza da existência de algo para além disso. Como poderia? Se o que vem aos meus sentidos é uma caminhada lenta e curta através de um jardim úmido e fora do tempo cognoscível? É menos difícil explicar tudo pela simples inexistência, minha própria inexistência antes de minha lembrança mais remota. Para mim a vida real é diferente desta débil recordação e nem precisaria mais pensar nisso. Estas memórias só persistem por capricho. Para longe destes flashes insondáveis, minha realidade se impõe inexorável. Até este pensamento não surge mais do que um clarão passageiro, fugaz e está por completo à mercê dos sentidos primários. Estes sim. Estes sentidos me fazem explodir! Distante da reflexão, que não consegue passar de um esforço efêmero e até inútil, a realidade, a minha própria existência, algo como um tempo presente, está escancarada em todos os níveis. Nesta condição primária e original tudo faz sentido e tudo está conectado. Isso eu posso explicar e não ter dúvidas. Não poderia ter nenhuma dúvida de uma realidade tão intensa e vibrante. Apesar destes ecos, sussurros de uma memória estranha, a plenitude da realidade é latente. Não existe nem dor nem conforto, só existe o mais simples e direto, a existência transparente e irrestrita, como estar em uma fortaleza invisível. Tudo está latejando, desde os pontos mais indiferentes, onde quase nada pode ser sentido e só existe um fraco sinal de sensibilidade, até os menores e mais sólidos poros vitais. A intensidade de minha existência é tão fantástica que dá a impressão de imortalidade, mas sei que isto é irreal, nada tão vivo e tão caloroso pode ser tão forte e perene. Através de meu ser totalmente esticado tudo flui sem nunca parar. Sou esticado, alongado, puxado pelas extremidades, como um puxão que me retorce aos poucos, mas não deixo de sentir a pressão sólida e seca que é o principal, a solidez rude parece ser o mais primitivo, original e o próprio fim. Todas as pulsações, até as mais sutis, são compactas, quase que esmagadas, e assim as percebo por causa de sua brevidade. Só que a aspereza dominante não sobrepõe por completo e nem pode esmagar as pequenas palpitações, estes mínimos respiros, semelhantes a minúsculas gotas de vida surgindo e morrendo por todos os contornos do corpo. As frestas e poros deste corpo são perpetuamente atravessados por um som grave e monótono, raramente alterado ou entrecortado, e o corpo de limites certamente intangíveis torna-se também uma esponja, a despeito de sua dureza, e filtra e transforma a soma de todas as frequências. Da mesma forma, a dureza não impede as rápidas adaptações de todas as partes para se manter em equilíbrio quando chegam inexplicáveis as rajadas de círculos invisíveis. Porém, quase tudo isto é simplesmente refletido para longe antes mesmo de ser capturado e acaba não passando de uma carícia, uma existência inteira entregue aos afagos da dança e à probabilidade de se tornar música. Quando penso no céu e no vazio consigo perceber, ou talvez só consiga imaginar, as curvinhas mais frágeis e quase sem sinais do meu ser. É através delas que mais percebo o que acontece, é assim que consigo pelo menos ter a sutil impressão dos meus limites. Nestas extremidades de incontáveis ramificações a vida está agarrada de maneira reveladora, mas displicente, chega a ser até jocosa. E a revelação consiste, sobretudo, na combinação de sentidos, no calor e nos primeiros sinais enviados a todo meu corpo que chegou a hora de ficar mais forte. A displicência irônica consiste na fragilidade e efemeridade desta parte, projetadas em direção ao nada, em constante improviso, se esticando cada vez mais, se contorcendo às cegas tentando lamber cada baforada de aquecimento. As sensações podem ser descritas como um pulso estável, em constante renovação, como um ciclo bastante perceptível e conduzido pelo tempo. Na última ponta da ramificação mais sensível dos limites de minha extensão, é ali que posso sentir com um pouco mais de singularidade. É ali que também posso perceber a passagem do tempo. Às vezes um sinal, já bastante leve e difícil de ser notado, vai enfraquecendo ainda mais, pouco a pouco e em progressão quase perfeita, até parar por completo e por algum tempo, daquele lugar, nada existir. Agora já aprendi que isto significa um desaparecimento, aquela sensação se perdeu para sempre e dela nunca mais terei notícias. Mas, deste mesmo lugar, naquela pontinha em forma de olho, de boca e de ouvido, não demora muito para que incríveis e minúsculos estalos iniciem novíssimos e inéditos sinais, totalmente singulares e reconhecidos pela minha velha pulsação. Aos poucos procuro sentir o todo e daquele ponto exato posso distinguir mais uma faísca vibrante, acenando e aquecendo. Em certos pontos, também nestes lugares mais extremados e ramificados, acontecem coisas ainda mais raras e maravilhosas! É quando uma incontrolável urgência se impõe sobre todos os outros eventos do ciclo habitual. Todos os sentidos se desligam por alguns instantes, em total descontrole, em abandono e irresponsáveis. Dali algo novo vai surgir, algo que parece não me importar mais, mas que consigo perceber como infinitamente original e único, algo que só poderia existir desta maneira, espontâneo e indomável. E assim desabrocha escancarada a minha síntese! Todas estas impressões são mínimas e precisam ser descobertas uma a uma entre minha rigorosa solidez. O prevalecente é o que chamo de sentidos primários, pois não precisam ser descobertos, são as sensações primeiras, urgentes, a identidade pura antes do pensamento reflexivo, um estado arraigado em profundidade, sem dor e sem prazer. Estou firme, vivo, em franca existência sorvendo as entranhas da terra. Esta sim é minha condição dominante, distante das nuances, uma existência fácil de resumir, em silêncio, absorvido em indeterminada espera.



Leandro Gaertner
Gaspar e Itapema, Setembro de 2009
Imagens: Árvore e flor Magnólia-branca (Magnolia grandiflora)
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terça-feira, 1 de setembro de 2009

*Oma Irma*



O sol já subia há mais de uma hora quando uns passinhos abafados foram ouvidos na casa. A mulher põe seus chinelinhos de pano e vai um pouco encurvada pelo corredor em direção à cozinha, às vezes até parece querer se apoiar na parede, como se tivesse uma leve tontura. Passa bem devagar pelo degrau que dá acesso à copa, piscando os olhos encovados atrás dos óculos, vai até a caixa de lenha, escolhe uns tocos e os mete no fogão junto com umas folhas de jornal. A chapa começa a esquentar e um cheiro de fumaça se mistura na cozinha, ela amarra o avental espiando lá fora o pátio vazio e então coloca uma chaleira cheia de água no fogão a gás enquanto sua filha no andar de cima logo escuta as louças para o café. Quem a visse naquela manhã veria uma mulher pequena, cada vez menor, com uns 80 anos se movimentando com gestos lentos e automáticos. Para o velho corpo todo aquele ritual agora é feito com calma. A mais leve reação de um sentido é agarrada com atenção, como se fosse de importância vital, as mãos, os olhos e os ouvidos nunca estiveram tão unidos e a rotina é uma de suas melhores aliadas. Desse jeito a velhinha simplesmente continua indo em frente.
Hoje ela vive com seu marido doente que quase nunca fala e com sua filha mais velha. Para as tarefas mais pesadas ainda conta com a ajuda de uma empregada, antiga conhecida da família. O café da manhã, o almoço e o jantar são as obrigações da oma e todos os dias ela se entrega a isto com tamanha devoção que é difícil de acreditar não fazer tudo com verdadeira alegria. Nesta manhã ela tinha começado com o sol já alto, mas nem sempre acontecera assim. Muitos anos antes, também trabalhava no açougue da família ao lado da casa, quando o trabalho iniciava ainda de madrugada. Sua principal função diária era preparar a primeira refeição para os trabalhadores que chegavam de outros bairros e por muito tempo também ajudou nos embutidos produzidos no açougue. A oma, com seu marido e filhos, antigamente com seus sogros, viviam do abate de bois e porcos para a venda da carne nos mercados da região. A casa e o açougue não se separavam e o trabalho era constante, entre as duas construções passavam as cargas de lenha para o fumeiro e de animais que iriam esperar a morte na mangueira. Existia um grande movimento de pessoas entrando e saindo, comerciantes, empregados, clientes e curiosos para ver o sangue da matança. Mas isto já faz tempo e agora ela não precisa mais pular da cama tão cedo, mesmo assim, as manhãs não duram muito sem de repente ouvirmos seus passinhos em direção ao fogão à lenha.
Durante quase todo o dia a casa permanece em silêncio, as refeições até criam alguma animação passageira na cozinha e os carros mais barulhentos lembram que a estrada passa rente à fachada. Mas na maior parte das horas a casa se volta para o grande jardim, que ocupa um lote inteiro no lado oposto ao açougue, onde até poderia ser construída uma nova casa. Netos e bisnetos agradeciam por isto nunca ter precisado acontecer, o grande jardim que vai da estrada até o barranco do rio sempre fora um lugar de curiosas explorações e brincadeiras. Para as longas tardes que os velhos passam na varandinha nos fundos da casa, o jardim de grama cortada, com uma frondosa jabuticabeira, flamboyants, uma nervosa e espinhenta paineira, sombreiros e um pé de ipê, é o refúgio de olhares gastos, de pensamentos fugidios.
No início da manhã, ao meio-dia e ao anoitecer a oma prepara e esquenta a comida abnegada na sua função, enchendo a mesa com seus potinhos e pães ela parece estar totalmente absorvida em servir. Não é raro também vê-la indo rápido ao armário das louças quando chega uma visita inesperada; por nunca sair de casa, é uma anfitriã em prontidão. Um de seus netos que mora ao lado, na casa depois do jardim, a acompanhava diversas vezes nas refeições. Ele se perguntava, olhando a velhinha nas suas voltas entre o fogão e a mesa, qual seria a ligação dela com aquele trabalho todo. “Deixa oma, não precisa mais trazer nada.” Para ele, nestas horas se misturavam na atitude da velhinha a gentileza e o condicionamento. Geralmente as gentilezas estão ligadas a uma situação de extremo domínio, onde podem ser calculadas e desta forma os gentis estão no auge do controle de suas articulações. Uma gentileza pode estar cheia de preocupações metafísico-religiosas, de uma necessidade de traquejo social não inteiramente livre da demagogia, como os automatismos de polidez adquiridos nos primeiros hábitos, de uma simples bajulação ou então, a mais incrível das explicações, a gentileza como gozo narcíseo. Como o narciso altruísta que afaga seu bondoso coração ao dar espaço para outro carro entrar na fila. Mas as gentilezas da oma são de outra natureza, são atos amorosos que após tantas voltas tornaram-se reflexos amorosos. Quando ela se levanta da mesa pela terceira vez em busca de mais potinhos de comida, ela está reagindo como a dona de casa que quer servir sua família. A oma dá uns risinhos encolhendo os ombros e com passos curtos continua a encher a mesa: “Tá! Tá!”
O passar dos anos cristalizou na mulher uma essência inalterável e esta constância essencial lhe é especialmente marcante. É normal ouvir de seus filhos: “Minha mãe sempre foi desse jeitinho.” Certamente alguns de seus conhecidos mais próximos até se esquecem da sua condição de mulher, sua atitude e pequenos detalhes são tão perenes que ela talvez já seja uma daquelas pessoas transformadas em instituição. Após se casar nunca mais trabalhou fora de casa, exceto no açougue da família. Sua educação se reflete muito nos moldes do século XIX, experimentando como esposa e três filhos as singularidades de uma família patriarcal e, durante toda sua longa vida de casamento, o que significa a maior parte de sua própria existência, ela voltou suas atenções para os entes familiares. Como os outros, que não podem mais enxergá-la como uma unidade autônoma, ela também parece não ter conhecimento de nenhuma vontade exclusivamente sua, com exceção de algumas pequenas vaidades como uns brinquinhos ou um pouco de maquiagem. Assim, tão mergulhada nesta micro-comunidade, um de seus únicos desejos demonstrados é o de ficar em casa.
Para seus muitos descendentes a convivência com a oma é de uma candura dificilmente perturbável, a simplicidade dos modos e das coisas que diz a torna muito querida. O seu jeito reto de interpretar já causou situações divertidas na família. Uma noite quando estavam assistindo o jornal da TV, o jornalista anunciou o lindo gol de bicicleta que seria mostrado no próximo bloco depois dos comerciais. Ninguém se mexeu nessa hora e no final do jornal a oma ainda continuava de olhos atentos na televisão. “Eu não vi nenhuma bicicleta entrando neste jogo!” Ela denunciava a falha do repórter com seu sotaque dos antigos colonos.
Todos os natais a oma prepara diversos envelopes com dinheiro para presentear seus netos e bisnetos. Uma vez, na correria para arrumar tudo em um natal especialmente agitado, quando até o Papai-Noel apareceu, ela acabou escondendo o montinho de envelopes num lugar muito seguro. Seguro até mesmo da sua memória! Quando a perda foi anunciada em desespero, uma verdadeira e desenfreada caça ao tesouro começou por toda a casa. No meio da correria uma das noras avistou o montinho cuidadosamente encaixado debaixo do forno de micro-ondas.
Nas conversas durante as refeições as coisas precisam ser ditas com clareza para poderem ser processadas pelo jeitinho simples da oma, ela não raramente troca as histórias que são contadas com atropelo. Uma vaga concentração acentua sua ingenuidade e o resultado é um entendimento muitas vezes simplório das novidades. Mas isto não é maior que seu entendimento geral sobre as coisas, que de tanta constância está sólido numa coerência de valores invioláveis. Não importando os entremeios, ela quer todos os seus unidos e felizes até o final.
Nesta tarde depois de seu descanso do meio-dia, a oma recolhe algumas camisas e panos pendurados no pequeno varal atrás da casa. Leva a pequena pilha de roupas até o quartinho da frente e começa a passar com rapidez, dando batidinhas com o ferro aquecido, na mesma hora em que a filha sai de carro e o marido dorme no quarto ao lado. Por ele estar doente precisaram mudar sua cama para este cômodo no piso de baixo, o velho homem mal pode subir as escadas e passa a maior parte do dia dormindo ou sentado na varanda.
É um meio de tarde aprazível de outono. A casa possui vários cantos escuros, tapetes, móveis escuros e antigos que a tornam sóbria, quase sombria. Pela porta preta da sala de visita, um pouco pelas janelas da cozinha e por outras frestas indefinidas entram os raios de sol avermelhados e oblíquos. No quarto onde está a oma, bem de frente para a movimentada estrada de asfalto, a luz entra com toda a força, esquentando e abafando o ambiente. Este barulhento quartinho aos poucos fica morno e com um cheiro forte de roupa passada e ali a oma repete os movimentos de dezenas de anos, alinhando as roupas com cuidado, dentro de seus pensamentos.
Quando volta pelo corredor escuro em direção aos fundos da casa, sente nas pernas o arzinho frio vindo da cozinha. Vai recolher o resto da roupa seca e escuta a sinuosa e aguda melodia de um instrumento musical passando pelo jardim. Também se misturam no ar os sons da serra elétrica funcionando no rancho e as rolinhas ululando sobre sua cabeça nos longos galhos do sombreiro. O homem que realiza trabalhos para a casa está serrando a lenha no rancho, ele é um solitário que desaparece de tempos em tempos e volta em busca de pequenos serviços, quase mudo por uma gagueira que arrasa a língua e lhe é intransponível, permanece em estado de embriagada serenidade, convivendo com a possibilidade da indigência. A oma entra na casa carregando nos braços a roupa que vai passar, mas antes ajuda o marido a levantar-se da cama e o acompanha até uma cadeira na varanda. Ela lhe oferece água, falando seu nome com uma voz estralada, acentuando levemente a primeira sílaba. O marido concorda silencioso com a cabeça e vira o copo cheio de uma só vez, depois de saciado estica o braço com o copo vazio e solta o corpo lentamente. Então ela resolve deixar as roupas para passar outra hora e senta ao lado do opa na varandinha atrás da casa, com vista para os fundos, para o pátio, o rancho e o jardim. Enquanto ele já vai cochilando ela se curva na leitura da bíblia sobre os joelhos fininhos e desta maneira eles ficam ali, aguardando o retorno da filha.
A tarde passa com a copa das árvores mais altas alaranjadas pelo sol descendente e bem nesta hora a grama começa a ficar gelada se andamos descalços. Quando o carro finalmente reaparece pelo calçamento atrás da casa, a oma se levanta ligeira e vai esquentar a água. A filha chega falante com alguns papéis e caixas de remédio; ela tem trabalhado bastante pelo velho pai e também quase nunca sai de casa, é o contato com os médicos e com o mundo exterior.
Uma pequena toalha é arrumada até a metade da mesa e a oma coloca os potes de doce e geleias, ajeitando com cuidado a louça para três pessoas tomarem o café. O opa é levado pela mão passo a passo até seu lugar e espera para ser servido, agora os três estão sozinhos na penumbra da copa-cozinha. Algumas perguntas em voz mais alta são feitas ao homem sentado: “Pai! Já tomou o remédio?” “Onde está o remédio?” As duas demoram a se juntarem à mesa. “Pai! Sabe quem morreu ontem? O Willy Becker.” A oma encobre a boca aberta com as duas mãos e olha com atenção para a filha, o velho levanta o olhar profundo e triste por um instante e, num longo suspiro, volta a encarar o tampo da mesa com sua xícara enorme. Eles ficam ali sentados por pouco tempo e conversam apenas algumas frases. A filha elogia o doce da Helga, a velha oma diz que amanhã precisa acabar de passar a roupa.
Depois de lavar a louça vai até o velho rancho de madeira pegar uma enxada. A oma quase sempre usa vestidinhos até os joelhos e chinelos que aparecem os dedos do pé, ela caminha pelo pátio ainda mais arcada e encolhida que de costume, como se fora da casa se sentisse menor do que já era. Entre devaneios sem fim, pensa no velho de sua geração que morrera ontem e calcula aliviada que ele era mais velho do que ela. Passa entre o rancho e o viveiro abandonado segurando a enxada para baixo. O viveiro está cheio de plantas crescendo em liberdade em vasos de plástico e de barro, trepando pelas grades deterioradas ou plantadas no chão, a maior planta é um fícus que fugiu do controle; que copa mais cheia, que esconde poucos ou nenhum ninho e onde se vê de noite os gambás passeando pelos galhos. Mais atrás no jardim, antes de chegar ao barranco do rio, a oma entra pelo portãozinho que se abre para o antigo galinheiro, agora um grande quadrado cheio de mato bem alimentado crescendo sem piedade. Dentro do antigo galinheiro ela consegue ver de um lado a caixa d’água de cinco metros de altura torta como a Torre de Pisa, “se ela cair, o rancho vai junto.” Do outro lado, o alto muro que separa seu terreno da casa do seu filho mais novo, onde agora moram dois de seus nove netos. A velha se entorta um pouco para frente e começa a arrancar o capim com a ferramenta, a terra escura tem algumas pedrinhas que fazem um som forte a cada golpe. Ela trabalha devagar e com movimentos regulares, franzindo um pouco o rosto e após capinar alguns metros aparenta estar alheia ao que acontece fora de sua atividade.
Todo o cenário, que vai do pátio do antigo açougue e sua mangueira abandonada, o rancho velho que serve como garagem e depósito de ferramentas e velharias, a grande casa cheia de vasos bem cuidados, o comprido jardim e o barranco do rio, é onde a oma passa seus dias. Nestes lugares ela preenche seu tempo com pequenas e constantes lidas. Para um observador desatento pode ser difícil notá-la andando pelo quintal, mesmo se ela estiver bem à sua frente, no meio do jardim na coleta de acerolas. A oma já se confunde com seu próprio espaço, seus canteiros, sua casa e suas árvores. Mas, para um observador atento, a velha mulher de dedinhos nodosos é transcendente. Percebê-la andando entre os arbustos e flores é como ver algo importante no último instante, um pouco antes de desaparecer. É um privilégio! Escutar as pancadinhas de sua enxada no outro lado do muro é uma alegre surpresa, é como um pensamento inesgotável, porém suave e sem enfeites, “a oma agora está capinando...”
Antes de escurecer completamente a oma já tem os trabalhos para a janta bem adiantados. O dia termina com a última novela, às vezes até mais cedo e as conversas com a filha são breves e funcionais, as portas são fechadas e os pássaros do jardim e do telhado se aquietam. Se passar alguém andando muito devagar pela estrada o cachorro vai latir e arrastar a corrente pelo calçamento do pátio. Em algumas noites se podem ouvir miados lamentosos por toda vizinhança e outros cachorros ou ainda algum silvo arrepiante vindo de longe pelos lados do barranco do rio. Quem espera na sala ou fica parado no corredor escuta seu próprio coração batendo e a casa não reage mais. As lâmpadas são fracas e os cantos se enchem de esconderijos fazendo esquecer as formas que poucas horas antes eram iluminadas, o tique-taque seco do relógio de parede deixa o silêncio ainda mais evidente. Também existe um outro grande relógio de estimação pendurado que não funciona há incontáveis anos e olhar para aquela caixa de madeira escura com os ponteiros parados causa um estranho desconforto. O fogão à lenha está esfriando, mas na cozinha ainda dura um pouco do cheiro de fumaça; quando crianças, netos e bisnetos tinham medo da casa nesta hora, parecia que o ar nos pés ficava cada vez mais gelado obrigando todos a irem para seus quartos, quase dava para ver os fantasmas - a casa estava transformada.
A oma se prepara para deitar, satisfazendo as últimas exigências de sua rotina, anda para o quarto iluminado no fim do corredor e ainda escuta a filha fechando as janelas lá em cima. Logo vem pronta do banheiro com os cabelos soltos e de camisola. O marido já dorme profundamente quando ela se ajeita no travesseiro e estica o braço para apagar a luz.

Com amor para Irma Wiese Gaertner





Leandro Gaertner
Blumenau e Gaspar, Fevereiro de 2006 e Janeiro de 2007.


Imagem: Manhã com névoa (Alfred Sisley 1874)

PS. No dia em que resolvi ler este texto para Oma, anos depois de ter escrito, ela disse que quase tinha perdido meu pai na hora do parto, disse que ele tinha nascido muito roxo. Ela suspirou e disse “Ainda bem que não perdi...” Se ela já tem essa sensação de alívio, imagina eu.