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domingo, 15 de agosto de 2010

Duas histórias de guerra no Brasil: coisa de cinema.

O cinema brasileiro deu um reverberante grito de independência nos últimos 15 ou 20 anos, isto é fato e nem precisa ser um expert para perceber. Para aqueles que assistiam filmes brazuca na TV em meados dos anos 90, basta lembrar das pornochanchadas com os Antonios Fagundes de camisa aberta e companhia. Aqueles filmes, produtos finais dos anos 70 e início dos 80, com fuscas, roquezinho de garagem, laquê e trezoitão... Agora raciocino que eles não puderam ser exibidos na época da ditadura e assim chegaram na TV bem na época da minha adolescência. Sorte dos hormônios nerds de hoje que tem a internet!
Porém, a despeito do grito de alforria das novas safras de cineastas sobre estes filmes meio drama, meio palavrão, meio putaria e que, diga-se de passagem, ainda sobrevivem e evoluem no talento de Alexandres Frotas, arrisco a dizer que, na minha posição de espectador-consumidor, parece que o cinema feito no Brasil atual rodopia a grosso modo numa nova tradição pelos extremos: ou produz filmes muito ruins e inúteis, que não agradam a absolutamente ninguém, como as produções de Xuxa (acho que estou enganado, muitas crianças nutridas a base de Cheetos e o pessoal do Quiquito gostam dos filmes da Xuxa) ou então, em um outro extremo, filmes muito bons, mas “cabeça” demais, que agradam somente a pequenos círculos de gente cabeça em momentos cabeça, como “Amarelo Manga”... É claro que também tem uma série de filmes regionalistas aí no meio, nem ruins nem bons, que já enjoei; aquele folclore, aqueles sotaques forçados, aquela choradeira, aqueles atores de novela, aquela caricatura que já deu o que tinha que dar, como Central do Brasil, O homem que desafiou o diabo... Confesso que gostei muito do filme “Cidade de Deus”, roteiro, trilha, atores, e ainda foi bom de mercado. O “Tropa de Elite” foi numa proposta parecida, bom de mercado, bem cuidado na técnica e no elenco, mas caiu numa moralzinha barata que além de botar na conta do Papa também pôs na conta da classe média. Enfim, estou tentando chegar numa panorâmica simplista e lugar comum, de um consumidor típico mediano, frequentador de cinemas de shopping, não muito informado, sem grandes erudições nem reflexões sobre a arte de fazer filmes, e o mais importante, sem fazer filmes. E toda essa introdução para contar duas histórias de guerra que posso imaginar um dia transformadas em filmes, se fosse eu um contista de talento e renome, ou então se aqui tivéssemos, é claro, uma indústria cinematográfica[1].
As duas histórias de guerra que quero contar de forma breve e com uma dose de fantasia, são desdobramentos da Segunda Guerra Mundial que foram parar no Brasil e que tive o privilégio de escutá-las de seus reais coadjuvantes ao longo deste último ano. As duas são assustadoras e terríveis, como uma boa e velha história de guerra.

[1] Confesso estar consciente de minha ingenuidade, de não ser senhor de minhas vontades e de tentar inventar meu mundo ideal onde não haveria o condicional “Se”. Um condicional “Se” também só pode ser inventado, é um falso problema e no contexto desta introdução sei que não é importante.

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O adestrador

Em um navio recém ancorado, dois homens conversam muito próximos, lado a lado, na parte mais alta da popa. A maneira como estão virados para a parte de trás do barco, olhando para o norte, de ombros quase colados, ressalta ainda mais a simetria de suas roupas e aparência. Cabelos muito curtos e alinhados, calça e camisa de manga curta social. Esta mesma cena se repetira algumas vezes durante a longa viagem de quase um mês, quando os dois quase nunca saíram de suas cabines. Outros passageiros comentavam que eram irmãos, alguém mais curioso também poderia notar sua calculada discrição, sempre sozinhos conversando e bebendo na última mesa no elegante bar do restaurante. A rotina não tem sido simples para eles desde o fim da guerra. Há cerca de um ano, um pouco antes do golpe final, já vinham sofrendo com constantes mudanças, viagens sem fim e sempre com muito cuidado na escolha dos lugares e nas pessoas com quem falavam. Eram conhecidos, estavam marcados. Havia um clima de raiva e desapontamento em todas as cidades. Tudo tinha mudado e ninguém mais entendia o que antes era a promessa mais clara. Todo um sonho de 15 anos desmoronava e agora a única possibilidade de sobreviver era se afastar de vez de tudo aquilo.
Antes que o navio continuasse a viagem pelo Atlântico rumo à última capital da América do Sul, um dos homens com duas enormes malas quadradas já se misturava pelo burburinho dos arredores do cais do Rio de Janeiro. Durante a longa fuga rumo ao sul desconhecido, quando já se sentiam seguros e a razão voltava dentro dos velhos afetos, os dois decidiram se separar, decisão que ia para além da precaução e alcançava a vontade que Jürgen Kreuzemacher tinha de aventura. O outro viajante ainda continuaria no plano original até o porto final.
O alemão que passava um pouco dos quarenta anos, agora andava lentamente entre a multidão acalorada da capital brasileira e parecia não se interessar pelo novo cenário. Olhava tudo com distância, mas sem tornar-se repulsivo. Também preferiu, com muita calma, contornar à distância um grupo de militares. Quando estava quase chegando à rua principal e saía daquela algazarra de feira, um rapaz bastante falante se aproximou oferecendo ajuda para levar as malas. Kreuzemacher falava espanhol com perfeição, condizente com seu passaporte argentino e havia aprendido algumas frases básicas no novo idioma. No início relutou um pouco em lhe dar atenção, por razões que jamais poderiam ser capturadas pela atenção fugaz ou conhecimento do rapaz. Mas ele precisava de orientação para chegar na “estação de ônibus” e foi com seu novo ajudante até encontrar um taxista. Achou conveniente acelerar o processo de escapada daquele ambiente de porto e nos metros restantes até o carro mostrou um falso interesse na conversa do moço que não parava de falar, era melhor parecer integrado, interagindo sorridente com pessoas locais do que ficar parado ou andando em círculos e chamar a atenção. Ansiava há muito tempo estar num lugar onde ninguém lhe faria perguntas.
Na rodoviária percebeu um grande fluxo de pessoas, na maioria homens jovens, se amontoando num canto do pátio. Era uma empresa de ônibus que fazia a linha para a região central do país e mandava dois ônibus lotados todos os dias, longe do mar, longe das grandes cidades, uma terra cheia de promessas, de espaço sobrando e trabalho. Jürgen Kreuzemacher não achou nada mais apropriado para sua situação do que se misturar com migrantes; muitos vindos de navio do nordeste ou sul do Brasil, gente que não se conhecia, só preocupados com a própria sobrevivência como ele. Pagou o dobro e conseguiu um lugar já no próximo ônibus para Goiás que sairia na mesma tarde. Um dia e meio de estrada até chegar e o alemão já sentia aquela tranquilidade que sentimos quando temos a impressão de começar algo do início, uma sensação até mesmo fácil de imaginar. Facilitado por sua altura mediana, foi se soltando confortavelmente no assento e pouco antes de adormecer com a cabeça apoiada no vidro, quando o motorista manobrava para sair do pátio da rodoviária, observa impassível dois cães brigando por um pedaço de carne na calçada em frente aos outros passageiros. Ele fecha os olhos devagar.
Em poucas semanas se adapta aos novos hábitos e consegue um bom emprego de caseiro numa fazenda distante alguns quilômetros de uma pequena cidade. Sua educação e polidez o ajudaram muito durante este processo. Kreuzemacher realçou em várias ocasiões sua experiência e facilidade em lidar com animais, o que incentivou o interesse do novo patrão, um filho de migrante, nascido em Goiás e patriarca de uma grande família, todos trabalhadores e moradores da imensa propriedade. O alemão era um homem culto de aparência saudável e robusta aliada a uns leves traços de homem maduro, tudo perfeito para suas novas funções, algumas até então desempenhadas pelo próprio patrão que começava a dar sinais de cansaço. Para ele o novo trabalho era ideal: iria morar numa fazenda isolada, com pouca comunicação com a cidade, longe das perguntas, longe da desconfiança e daí poderia seguir em frente.
A rotina da fazenda não parecia exigente ao recém chegado. Cumpria suas funções e ainda organizava novos trabalhos de um jeito metódico, inclusive logo arranjou tempo e meios de construir um grande canil. O patrão não se incomodava com o silêncio do gringo, que trabalhava quando era preciso, nunca reclamava, parecia honesto, era limpo e era criativo, cuidava dos cães e sabia lidar com os animais doentes. Como os outros empregados também tinha sua pequena casa naquela pequena comunidade. Por ser sozinho ficou com a casinha nova de três cômodos atrás da casa principal, que até sua chegada era usada para os hóspedes. Os outros moradores da propriedade no início se interessaram pela história do gringo, mas aos poucos foram deixando de lado a curiosidade naquele homem quietão de olhos cinzas, muito quieto, que jamais aparecia nos encontros, raramente bebia, e de longe observava enquanto acariciava um de seus cães.
Em meses de trabalho na fazenda, o gringo tinha ido poucas vezes até a cidade, quase sempre para comprar o jornal da capital e ir ao bordel. O patrão e os filhos comentavam sobre ele de um jeito despreocupado, ele quase não existia. Jürgen Kreuzemacher chegara numa posição de respeito, pois era competente, não errava, era obediente, porém não ultrapassava a linha que o mantinha ainda assim invisível. Ninguém podia reclamar dele, ele parecia correto, nada poderia ser dito dele. O patrão pensava no início que o estrangeiro educado não demoraria em tomar iniciativas e ajudá-lo na administração da fazenda, depois esqueceu disso e o gringo se tornou só mais um empregado com suas funções na manutenção do esquema. Aos olhos dos outros, Jürgen se tornava cada vez mais familiar na paisagem. Aquele quietão que entendia de bichos, que tinha pintado todas as casas, construído o canil, parecia estar à disposição para qualquer trabalho, era só um solitário homem sério.
Um dos empregados, o mais antigo, que não fazia parte da família, era o único a observar mais tempo e mais atento os dias do alemão.Era o Jeremias, ou Nego Jeri, um homem nos seus sessenta anos, um matuto que não conseguia ficar perto do gringo. Não sabia porque, mas aquele gringo não era coisa boa. Já imaginava que aquele negócio de falar com os cães com uma língua estranha era coisa arranjada pelo próprio Coisa Ruim. Mais ninguém se metia com a cachorrada que latia enfurecida com a chegada de qualquer estranho. Jeri nunca conseguiu ver os olhos do gringo, eles nunca se encontraram, mas isso só os dois sabiam. E o matuto que não parava de cuspir no chão poeirento andava cada vez mais incomodado. Kreuzemacher não pensava em Jeremias, apesar de saber há tempo que o negro lhe observava, que era um bisbilhoteiro. Na verdade, Kreuzemacher não se importava com ninguém e só seguia a risca sua rotina de trabalho. Talvez fosse essa indiferença tão fria do gringo que incomodava. Não parecia nem contente nem descontente, era neutro, um jeito indiferente, parecia estar ali mas também não. Tinha a mesma indiferença da natureza, do todo, ante os seres e as coisas. Era um ser-coisa ou uma coisa-ser. E era esta sobrenaturalidade que assustava Nego Jeri, que não conseguia achar um nome para o vazio que sentia. Só ficava fazendo o sinal da cruz todo arrepiado.
No meio de uma tarde de sol, como quase todas as outras naquelas paragens, um visitante chamou a atenção do alemão. Um homem de barba mal feita e um pouco manco apareceu e já conversava com o patrão na calçada da casa principal. “Ei gringo! Acalme um pouco essa cachorrada!” Kreuzemacher de longe olhava o estranho enquanto jogava uns nacos de gordura aos cães. O estranho de andar atrofiado, botas surradas e pontudas também olhava tudo com atenção enquanto falava com o dono da fazenda. Deram algumas voltas entre a garagem e o pátio, sempre conversando, falando de preços, de dinheiro e então ele foi embora. – “Quem era patrão?” – “Pelo sotaque não é daqui. Ele queria me vender ração. Eu disse que produzia aqui mesmo e que não precisava, mas tive que mostrar e explicar tudo. Um coitado.
Quando caiu a noite Kreuzemacher sabia que precisava ir até a cidade. Tinha que encontrar esse homem. Como de costume, se arrumou e com o cabelo cuidadosamente penteado para o lado, pegou a bicicleta e foi ao bordel. Já era cliente conhecido, cumprimentou as amigas com uma palavra e sentou-se perto do balcão. – “Chegou cedo hoje alemão... Já te chamo ela...” – “Não. Hoje não. Só quero beber um pouco.” E sem falar mais nada só ficou lá no meio do bordel sentado e esperando. Depois de cerca de meia hora dois homens com as botas imundas entram e pedem cachaça. Como ele imaginara. O estranho vendedor de ração agora bebia e conversava com o outro quando lhe notou na mesa ao lado. “Que foi alemão? Nunca viu um homem?... Espera aí... Eu já te vi... Tu trabalhas lá na fazenda.” Sem dizer nada Kreuzemacher concorda com a cabeça. – “Que foi? O gato comeu tua língua seu Caga Nata? Vem aqui! Quero te perguntar umas coisas!” O alemão juntou-se aos dois homens e logo viu que o manco não era mesmo vendedor de nada. Então começou a inverter a conversa. Disse que não gostava de trabalhar na fazenda, que era explorado, nunca era pago... O manco põe a mão nos ombros do estrangeiro e diz: - “Eu sei como é isso. É tudo sacanagem! Gringo, a minha história é outra...” Kreuzemacher espera alguns segundos até falar a meia voz: – “Já entendi tudo. Se quiser posso ajudar.” Os dois homens se olharam largando os copos no balcão e se viraram juntos para o gringo que não mexia um músculo. – “Entendeu o quê alemão?” Sem alterar a expressão, como um autômato auto-confiante em completo desdém pelo seu interlocutor ele responde: - “Entendi que vocês vieram até aqui para assaltar a fazenda. E eu posso ajudar.” Os dois se olharam de novo com os olhos arregalados e com a pele do rosto já roxa deram um soco no balcão soltando uma grotesca gargalhada. Kreuzemacher mexeu os lábios esboçando um sorriso enquanto pegava no copo. – “Então acho que agora temos assuntos a tratar gringo doido!” E continuaram rindo. Naquela mesma noite, antes de voltar à fazenda, Kreuzemacher falou pela última vez com os dois ladrões: - “Vai ser, tem que ser neste fim de semana! Todos estarão lá! Em três nós podemos pegar tudo! Vai ter muito ouro! Não vai restar nem o nome pra contar a história!
Na noite de sábado, como Kreuzemacher sabia, estava prevista há semanas uma grande festa de aniversário onde todos os membros da família se encontrariam. Assim que o sol se escondeu atrás do cerrado, os parentes foram chegando alegres, junto alguns poucos amigos de cidades vizinhas. Nada naquela noite morna e cheirosa que se formava na fazenda poderia imaginar o horror que logo começaria. As bandeirinhas no varandão, a casa branca com frisos azuis, os abraços de boas vindas, o som dos sapos e da água da pequena lagoa, as gargalhadas na subida dos degraus, os risinhos das crianças... Este mundo não poderia imaginar o terror de outros mundos distantes... Um pouco antes do jantar ser servido, as mulheres estão entre a sala de visitas e a cozinha, preparam a mesa e conversam alto, alguns homens fumam com o patrão na sala de trás, uns jovens bebem animados na garagem junto à churrasqueira, as crianças passam correndo e exploram todos os cantos, dois empregados com suas famílias estão em suas casas e Jeremias ainda acaba de limpar as ferramentas, sozinho lá pelos lados do estábulo.
Com passos firmes, em sua melhor roupa e com os cabelos escrupulosamente alinhados, o gringo entra sem se anunciar pela porta do casebre de um dos empregados e, antes que a surpresa mulher possa reagir, de olhar fixo e lábios apertados enterra uma faca aguda na altura do seu coração, lhe tampando a boca. Vai até o cômodo do lado e faz o mesmo com o marido que se vestia. Lava as mãos rápido, sai da casa e tranca a porta. Do mesmo modo, um minuto mais tarde vai até o outro casebre. Entra muito rápido e encontra o casal na cozinha. Com a mão direita dá um soco no rosto da mulher que cai desacordada, ao mesmo tempo que revela a faca, enterrando com toda a força na fronte do homem. Depois se ajoelha mecanicamente ao lado da mulher no chão e mira no coração. Dali vai até a garagem e vê cinco jovens embriagados. Finge pedir ajuda e atrai um a um para a parte de trás do galpão, onde vai matando todos na escuridão e no silêncio. Ao voltar à garagem encontra Jeremias que num susto tenta se desviar. O gringo dá um passo pro lado, olha frio para o negro aterrorizado e girando o corpo veloz agarra o pescoço do homem, enfiando a faca fundo na espinha. Nego Jeri amolece as pernas e cai no chão inconsciente. Bufando como um louco, o alemão mete a mão na boca de sua vítima e lhe arranca a língua. O assassino agora vai rápido até o portão da frente e com uma lanterna dá o sinal combinado com os ladrões que esperavam no meio do mato do outro lado da estrada. Os dois aparecem armados e se encontram todos na porta da frente da casa. Numa histeria absurda entram gritando e mandando todos para a pequena sala dos fundos. O patrão não entende o que o gringo fazia ali, todo sujo de sangue, será que estava ferido?! Entre os gritos ouve-se o primeiro tiro e cai um homem. Em desespero todos se empurram para dentro da sala, tudo em poucos segundos, todos convidados amontoados, apavorados, algumas crianças, todas mulheres, todos os homens. Kreuzemacher reaparece na porta: - “A gente vai libertar um a um... Vem aqui! Você primeiro!” E puxa uma mulher pelo braço até a sala de visitas. As vítimas são levadas uma a uma, homens, mães, filhos, filhas, ameaçadas pelas armas e assassinadas a facadas pelos diversos quartos da casa. Os últimos homens presos no quarto dos fundos não entendem o horror e são executados entre gritos de desespero com as armas de fogo. De repente, após o último estouro, só restaram alguns gritinhos pelo pátio. Kreuzemacher foi ao escritório do patrão, pegou uma pistola e então os ladrões, um ao lado do outro no corredor da casa, não acreditavam no que viam. O gringo assassinava as crianças que chegavam correndo e antes que os dois pudessem reagir já estavam sob a mira da arma, e foram executados.
Nego Jeri ainda estava desacordado no terreiro quando o assassino reaparece na varanda da casa. Nada mais resta da família, todos os amigos mais próximos estão mortos, todas as crianças, todas as mulheres, os empregados, os filhos, o patrão, a mulher, os ladrões. A noite continuava morna, mas o silêncio era estranho. Jürgen Kreuzemacher anda direto até Jeremias, joga um balde de água e apunhala seu abdômen. “Acorda preto. Pra tua raça tenho algo especial que não faço há muito tempo!” Quase sem força para abrir os olhos o homem caído repara que tem os braços amarrados para trás e está dentro de um carrinho de mão. Sem sentir nada, vê suas próprias pernas moles que vão se arrastando no chão. Grita de horror, não sabe que não tem mais ninguém. Não consegue se debater, não entende mais sua voz. As imagens se confundem, não entende por que está no carrinho. Por quê o gringo está abrindo o canil. Kreuzemacher ajeita o carrinho na porta e deixa o homem com os olhos arregalados escorregar. Sente um puxão no corpo e em choque acha que vê os cães destroçando suas pernas e então sai de sua garganta um grito que nunca ouvira. Cai no chão em espasmos pavorosos. Tudo está dormente e a dor vem em ondas. O adestrador fica até o fim dos gritos e observa os três cães famintos disputando o corpo arrebentado.
No bolso da calça estraçalhada estava um documento de identidade militar coberto de terra e sangue, onde quase não se via mais seus símbolos antigos muito conhecidos naquela época. Dois SS cruzados dentro de uma coroa de folhas de carvalho, sobre a coroa uma águia de asas abertas, com a cabeça voltada para a direira.

Este conto baseia-se no seguinte relato: com o fim da Segunda Guerra Mundial, dois ex-oficiais nazistas fogem para a América do Sul. Um deles, um adestrador de cães do exército de Hitler, se isola numa propriedade rural de Goiás como empregado. Depois de alguns meses na fazenda, o alemão assassina todos os membros da família proprietária e passa a utilizar o sobrenome e os bens de suas vítimas...


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Baependi

Ao tatear as paredes dentro de um prédio escuro, um homem ainda jovem acha conhecer aquele lugar, mas não tem certeza, com base em suas lembranças o próprio tempo se cruza naquele cenário que parece ter um pouco de vários lugares. Apesar de não estar ansioso, esfrega os olhos e pisca várias vezes tentando ajeitar sua visão embaçada, caminha devagar por uma claridade difusa e nem pensa se pode ser dia ou noite, sente seu corpo com mil toneladas. Pensa que pode estar sem os óculos... Não é isso, está de óculos e agora encontra um grupo de pessoas e entre elas um amigo do passado. Está muito feliz e lhe dá um abraço demorado, chora com toda sinceridade por encontrá-lo e enquanto aperta as mãos do amigo sorrindo repara que não reconhece mais ninguém ao redor deles. Já estavam num outro lugar agora, num tipo de saguão. Mas como foram se encontrar? Onde estavam afinal? O homem pensa que aquilo não faz o menor sentido, onde estão? O que é isso? Mas é claro!!! - “Rápido! Estou sonhando! Preciso segurar alguma coisa!” Na infância ele voava, ou melhor, nadava no ar, corria para pegar embalo e planava a baixa altura, então se atirava de penhascos e caía devagar, como era maravilhoso aquele friozinho na barriga, mal ficava sabendo que sonhava e já queria sair voando! Bem depois, tinha aprendido que ao segurar algum objeto durante um “sonho consciente” dá para permanecer mais tempo no controle do sonho, fica mais fácil, ou menos difícil de não acordar e assim poder explorar as possibilidades que só num sonho pode-se ter. Já havia conseguido o controle algumas poucas vezes e sempre que lhe ocorria este lampejo de consciência dentro do sonho e procurava algo para segurar e fazer a “ligação física” com o sonho, olhava para o chão e lá encontrava um montinho de gravetos. Um montinho de gravetos bem finos prontos para o fogão à lenha! E isso já acontecia pela quarta ou quinta vez. Sempre aquele montinho arrumado de gravetos lá esperando no chão. O homem estava perdido nestes pensamentos, ávido e se agarrando ao sonho com os pauzinhos apertados em sua mão, quando tudo se transforma. De novo, anda dentro de um corredor escuro, é muito difícil ficar em pé, outras pessoas estão ao seu redor, caem e batem em suas pernas; onde está?; esbarram em seu ombro, ele mesmo cai e continua se apoiando nas paredes. Em um grito vindo de longe o soldado finalmente se reconhece e entende onde está. Sente uma dor insuportável nos ouvidos. Estava mesmo acontecendo. Não consegue mais avançar nem mesmo se levantar, sua cabeça encosta no teto e outros homens começam a cair sem parar sobre ele, o chão treme e se abre abaixo, então o soldado apoiado nos cotovelos abre bem os olhos e grita acordado no meio do fogo.

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O sol acabava de sumir, as luzes da Baía da Guanabara acendiam aos poucos e lá andavam dezenas de soldados em farda verde para longe do navio, ganhando a cidade. Só naquela semana já era a terceira vez que esta cena se repetia, o terceiro alarme, a terceira convocação de emergência. Tudo estava pronto, todos os equipamentos para a guerra estavam a bordo, as longas manhãs de espera em forma, as despedidas que se prolongavam agora por mais de um mês e mais uma vez os soldados saíam dispensados para a noite. A última ordem de sempre: 5h em ponto no pátio do cais para a revista e inspeção. Já tinham ouvido esta ordem mais de dez vezes no último mês, mas o Baependi ainda continuava respirando firme, bem ancorado nas águas frescas do agosto carioca.
Nos últimos dias tem se comentado que alguns navios foram atacados no nordeste, com certeza por submarinos alemães. Porém, alguns soldados, que ouviram de outros soldados, que ouviram de alguém, que sabia de casos vindos lá das terras de Natal, contavam uma outra história a meia voz: “Os americanos nos querem na guerra.” Os dois jovens militares repetiam esta frase desde a noite anterior e ainda não sabiam do que se tratava. Sabiam da guerra contra os alemães e que um barco os aguardava para levá-los até ela. Não entendiam bem isso que diziam dos americanos, só sabiam que tinha uma base americana na ponta do nordeste que servia para poder decolar de avião e atacar na África. Quando já perambulavam pelos contornos ondulados do calçadão de Copacabana, também sabiam que teriam mais uma longa noite até se apresentarem à unidade na manhã seguinte.
Cabo Hernandes fora incorporado ao exército para serviços burocráticos por causa da guerra e Sargento Cordeiro já havia iniciado a carreira militar há algum tempo por tradição familiar. Os dois amigos na casa dos 25 anos eram um pouco mais velhos que a maioria dos convocados e chegavam como os irmãos mais experientes, nascidos e conhecedores da capital, sabiam o que fazer e aonde ir para passar as vésperas do combate. Nestes tempos de guerra e espera, mesmo distantes das explosões e das mortes que assolavam a Europa, África e Ásia, os soldados recém convocados sentiam crescer dia a dia o peso da expectativa. Quanto a Hernandes e Cordeiro, eles estavam naquele lugar muito complicado dentro de uma instituição. Ainda pareciam jovens adolescentes cheios de curiosidade e disposição para passar noites e noites esbanjando vida, mas também não eram mais subordinados tão inexperientes e estranhavam o que era estranho. É claro que não desperdiçariam aquela noite de vigília, como também não desperdiçaram as outras, e como um convocado ao combate, em mais uma véspera de ir à batalha, festejam a despedida. “Mas que merda é essa de navio torpedeado?!” “Garçon! Traz mais uma que amanhã vamos pra guerra!!!”
Os dois soldados estavam animados em um requintado salão da capital e a noite avançava fácil. Depois de horas avançadas, iam restando pelas mesas e pendurados no balcão alguns soldados, alguns músicos recém chegados de outras festas, atores, outros charlatões, também uns figurões de bengala e bem acompanhados e é claro, uma mesa inteira colorida com a fina flor da beleza polaca. Ah... Aquelas mulheres exuberantes e educadas, naquela noite a volúpia e a cortesia estava disfarçava de leque e chapéu. Cabo Hernandes e Sargento Cordeiro eram senhores e já contavam com a vitória no momento em que se aproximaram sorridentes. E foi o que aconteceu, quando num piscar de olhos estavam perdidos, a salvo, entre esmaltes, batons e as mais perfumadas lantejoulas. Não se sabe por quanto tempo ali ficaram e depois por quanto tempo andaram brincando com a areia. Só os primeiros raios na curva do mar para despertar os dois soldados e fazer as branquíssimas estrangeiras derreterem como cera, até sumirem na esquina do hotel... “Vamos ao Baependi!”
Correram como loucos por todos os atalhos possíveis, cortaram túneis e descobriram as mais desviadas escadarias vigiadas pelo próprio Cristo de braços abertos e crucificados. A manhã chegava devagar junto com um forte cheiro de fumaça vinda do cais e os dois homens corriam e riam: “Viva o Brasil! Viva a Polônia!” –“Vamos para a guerra!” Ao dobrarem a última ruela, um som grave de despedida finalmente saia das entranhas de madeira e ferro do velho vapor. Antes que pudessem chegar, o Baependi já se afastava com centenas de lencinhos. Hernandes e Cordeiro viram emocionados de longe a unidade de meninos soldados, na parte mais alta do navio, sacudindo suas boinas verdes, entre dezenas de outras famílias, crianças e tripulantes atarefados correndo pelo convés. O som foi se tornando mais raro e mais grave e no fim da festa no cais, o paciente Baependi ganhava força fumando como um índio velho e então ia rumo nordeste com sua preciosa carga.
E assim restaram aqueles dois queridos soldados sozinhos no porto, para poderem ter uma vida inteira e contar a história.


Fato Histórico: O Brasil ainda não tinha entrado oficialmente na guerra quando o Navio Baependi foi torpedeado duas vezes na noite de 15 de agosto de 1942 [2] ao navegar rumo ao Recife, em águas revoltas a cerca de 30 quilômetros do litoral de Sergipe. Após o ataque, atribuído a um submarino alemão, o navio levou menos de 5 minutos para afundar. Dos 306 passageiros a bordo, a maioria civis, famílias e crianças, além de uma unidade do exército, somente 36 sobreviveram. Todas as crianças morreram. Na mesma noite também foram atacados os navios Araraquara e Aníbal Benévolo, somando 551 mortes em menos de 10 horas.[3]

Dois soldados não chegaram a tempo para o embarque.



[2] A data desta publicação no blog é alusiva aos 68 anos da tragédia.
[3] Para saber mais leia o livro O Brasil na mira de Hitler, do jornalista Roberto Sander (Editora Objetiva).

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Leandro Gaertner
Itapema, julho e agosto de 2010.