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quinta-feira, 6 de maio de 2010

SANTA MONA LISA

Não poderia deixar de escrever, neste agradável exercício de conversar à distância, sobre um assunto que me intriga há anos e que, após a leitura de uma inusitada digressão no livro “Quando o nosso mundo se tornou cristão[1] do historiador Paul Veyne, uma luz foi acesa sobre minhas questões: quem são estas pessoas que andam rápido nas pinacotecas para bater foto das obras de arte? O que está acontecendo, de onde vens, ó turba, por quê tanto fotografas Mona Lisa?
O livro de Veyne trata com incrível erudição e deliciosa impertinência dos primeiros anos do cristianismo como religião oficial, no momento em que deixa de ser uma desconhecida e perseguida seita de vanguarda e passa a ter status de religião do próprio e convertido, ex-pagão, imperador romano Constantino, no ano 312. Na passagem do livro, que tanto me chamou a atenção e que foge um pouco ao tema central, quando o autor cita o filósofo Henri Bergson “existe, no fundo da maioria dos homens, algo que lhes faz um eco imperceptível”[2], ele se refere à uma “sensibilidade religiosa espontânea que não é dada a todos, mas que é pressentida pela maioria da população”. Sabemos que em quase todas as épocas e sociedades existiu este “pressentimento religioso” e que ainda em nossa época continua forte. Isto é, uma reverência ao invisível, ao inexplicável, um amor que nos é revelado e que potencializamos no imaginário. Mesmo a enorme parcela dos indiferentes, aqueles que chamamos gentilmente de “não praticantes” (mas que ainda se utilizam socialmente de algumas solenidades e ritos de passagem), tende a pender para a religião, que lhes inspira confiança, afeição, simpatia e bondade. Este “pressentimento religioso” é acessível à maioria, torna-se costume e costume significa respeito e senso de dever. Não muito diferente do patriotismo de um soldado.
O pulo do gato desta discussão é que o “pressentimento” desta maioria não é exclusividade da religião, nós não somos insensíveis aos valores (religiosos, artísticos, éticos...), valores às vezes só pressentidos à distância, elaborados de maneira vaga, porém comuns à maioria das pessoas. Não é possível que todos os frequentadores de um culto tenham o mesmo entendimento intelectual daquela religiosidade, então fala-se “Cada um entende à sua maneira”, a gente simples vai rezar com o que o seu vocabulário-repertório interior lhe permitir, e não poderia ser de outro jeito. Em um culto, a maioria segue o protocolo da cerimônia, senta-levanta-ajoelha-levanta-senta, por puro respeito: “Há algo de importante aqui”, “Precisa ser respeitado”, foi pressentido pela maioria desta sociedade, virou costume, eu sou desta sociedade, logo, é coisa séria... E, além disso, “estar numa igreja e saber que se passa algo grandioso e não utilitário é um momento da semana que não se parece com nenhum outro, mesmo que seja um pouco chato. Em sua maioria – senão na totalidade – eles vão docilmente e respeitosamente à missa; são os bons soldados da fé”[3], já diria Paulinho Veyne.
Voltando à Mona Lisa, não é possível exigir que todos os turistas do Louvre saibam o que estão vendo, e para isto não bastaria que eles somente lessem as notas explicativas em cada obra. Estes turistas, aos quais em algumas raras ocasiões eu me incluo, pressentem algo, sabem, confiam que há algo de valor, mesmo sem nunca terem lido nada a respeito, é aquele eco imperceptível. Se bem que, no caso do Museu do Louvre, como em outros famosos museus de exposição de arte, outros fatores entram em jogo: talvez o interesse em visitar já surja devido à própria fama do lugar, nem precisando do insight eco imperceptível. De um jeito ou de outro, durante esta peregrinação ao santo relicário, é engraçado ver a reação de alguns turistas após verem a Mona Lisa: “Mas que pequena!”. Não sei que tipo de gozo esperavam, e olha que o pessoal do Louvre capricha na exposição, tem uma parede só pra ela. Lembrei agora da minha própria decepção quando vi a escultura de cera do Arnold Schwarzeneger no Museu Madame Toussaud de Londres em 1996 e não reconheci o Exterminador do Futuro.
Ao levar o assunto para um lado mais pessoal, vejo que esse negócio de andar rápido pela exposição de arte não chega a me irritar, mas me deixa curioso pelo fenômeno (com exceção de um cidadão que me irritou quando percebi sua impaciência comigo; eu apreciava com tranquilidade as porosidades e maciez de uma escultura em mármore, enquanto ele queria exclusividade daquele metro quadrado para bater sua foto). Acho que a caricatura clássica dos turistas de museu ainda são aqueles grupos guiados de japoneses, seguindo a bandeirinha, virando as cabeças para todos os lados, meio barata tonta, uma cena até engraçada. Mas, este é apenas um exemplo, ainda existem vários outros e, como disse antes, não é possível exigir que todos saibam o que estão vendo ou que tenham todos o mesmo comportamento. Ante os seus ecos, cada um reage como quer ou consegue, mesmo que seja batendo mais e mais fotos.
Continuaremos sensíveis a reservar parte de nossa viagem à visita de museus e monumentos, confiaremos na bandeirinha e na turba de peregrinos... e também muitos ainda irão se emocionar com Bach na Notre-Dame, orgulhosos de serem cristãos.


Leandro Gaertner
Paris, Maio de 2010.

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[1] Sim, já existe uma tradução para o português.
[2] « il y a, au fond de la plupart des hommes, quelque chose qui leur fait imperceptiblement écho. »
[3] Esta tradução não é a oficial da versão em português, mas sim a oficial de um flautista chorão.