Pesquisar este blog

domingo, 5 de outubro de 2008

)O velhO nO espelhO(


“O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.”
(Julio Cortázar)


Aqueles pensamentos já não eram novidades para o velho há muito tempo, talvez já o acompanhassem desde o início da vida adulta e agora, enquanto pensa parado em frente ao espelho, fica perturbado com este descontrole de idéias. Sempre lhe foi incômodo ter um pensamento qualquer, sobre qualquer coisa e logo descontextualizá-lo, transferindo-o para anos antes ou então anos depois. Isto para ele era um descontrole de idéias. Como seria ter pensado assim antes? Como seria ter pensado nisso somente muito mais tarde ou tarde demais? Existe um tarde demais para um pensamento? Ele preocupava-se com as idéias que viriam tarde demais e perguntava-se se poderia ter um pensamento, uma idéia, um acesso de entendimento justo alguns segundos antes do último suspiro.
Alguns desses pensamentos voltavam de tempos em tempos como se estivessem em órbita em torno de sua consciência e outros eram novos e o surpreendiam inteiramente: “Como não pensei nisso antes?”; esses talvez só tivessem uma órbita maior e dando o tempo necessário reapareceriam. Alguns outros pareciam ser capturados pela gravidade da consciência, porque depois que surgiam uma primeira vez, voltavam com certa regularidade. Um deles foi a impressão que não havia mais nada a ser feito de relevante em toda sua vida! Esta impressão o fez pensar, em várias épocas da vida, sobretudo após realizar coisas marcantes, que a sua parte já tinha sido concluída e o resto dos seus dias seria um longo e inútil marasmo. Agora pensa nisso com um ar resignado que, se existe mesmo algo a ser terminado, este término é bem mais uma imposição constatada do que um simples pensamento ou sensação. Como poderia ter lhe passado alguma vez pela cabeça que sua parte já estava terminada? Pondera agora quase com tristeza que tudo isso era um luxo desnecessário e um grande desperdício de energia. Ele apoiou os braços na pia e deu um sorriso sem abrir a boca olhando-se no espelho; estava pensando nisso de novo, mas não podia ficar triste porque ainda tinha a dúvida de estar tendo mais um pensamento luxuoso. O que pensaria nos seus últimos segundos?
Lembrou-se de uma estudante que conhecera quando começava a deixar os anos de juventude e os aniversários já passavam a ser momentos de reflexão. Ela costumava dizer que só não gostavam da própria idade e dos aniversários aqueles que não haviam tido experiências suficientemente satisfatórias, boas ou ruins. A estudante, mais jovem e cheia de observações mordazes, comentou simplesmente que as pessoas mais velhas demonstram uma maior capacidade de sobrevivência, então o velho abriu um largo sorriso imaginando o que a jovem estudante diria se o visse agora. Ele já havia superado seus dois avôs e já estava empatado com seu pai e bisavô materno em longevidade, já se considerando um homem com grande capacidade de sobrevivência. Tudo bem que as inconveniências dos corpos velhos existiam, porém ele as manejava com discrição, evitando situações que pudessem evidenciar sua fraqueza na coluna ou então ingerindo somente alimentos que colaborassem com suas vísceras. Ele sabia que ser discreto neste sentido significava desligar-se de uma parte do convívio social, mas se esforçava para manter esta situação sob controle. O velho desejava gozar sua capacidade de sobrevivência vivendo o mais normalmente possível até o fim.
Em uma de suas viagens Gulliver vai parar num país onde existem pessoas imortais. A sua primeira reação foi ficar maravilhado e eufórico com as infinitas possibilidades deste dom. Viver eternamente, conhecendo todas as culturas e aprendendo sobre tudo, uma chance sem comparações de viver com toda intensidade, aproveitando tudo o que existe. Esta euforia dura até encontrar um cidadão imortal e ver suas enormes limitações. Neste país os imortais não morrem, porém envelhecem. Envelhecem tanto ao ponto de não entenderem mais a língua corrente, não entendem as novas regras sociais, as gírias e todas outras mudanças e novidades que são normais ao transcorrer do tempo. Eles também possuem grandes problemas de memória, esquecendo de quase tudo que já lhes aconteceu, de pessoas que conheceram, o que aprenderam. Os jovens não confiam mais nos imortais velhos e até mesmo seus bens precisavam ser administrados por outros, geralmente contra sua vontade e aos poucos os imortais iam sendo esquecidos numa vida extremamente solitária. Por não conseguirem mais conversar nem fazer quase nada, ficavam vagando pelas ruas sozinhos e, se olhássemos em seus olhos, talvez notaríamos que para eles a sua própria existência estava morta.
O velho ouve o barulho do vento que faz as portas e janelas do casarão de madeira estremecerem. Desde pequeno ouvia chamarem essa ventania vinda do mar de vento sul, indo se dar conta do motivo só mais tarde. Fica ali imóvel e respirando o mais silenciosamente possível, coisa que na sua idade requer uma boa dose de controle, está tentando escutar o vento como escutava bem antes, quando era criança. O vento sul que prolongava as brincadeiras no salão da casa e intensificava o cheiro de gás na cozinha mal iluminada e de sombras bruxuleantes. Aquele vento que depois de algumas horas deixava os vidros das janelas melados de maresia, a praia deserta e as ondas espumantes, transformava a casa num aconchegante abrigo cheio do cheiro do café da tarde e de cantinhos escuros. Hoje ele ouve o vento forte que vem em rajadas do sul e observa como as árvores se comportam, pensa em como estão adaptadas.
A casa de praia já pertencera a seu avô que tinha passado seus últimos anos como um imortal numa varanda. Olha-se no espelho e vê um homem velho; acha bom ainda poder ter estes pensamentos com lucidez e subir as escadas sem a ajuda de ninguém. Enche as mãos com água e esfrega o rosto e os olhos fazendo uma careta que tornam as rugas ainda mais salientes. Mesmo ficando pasmo com seu reflexo considera seu olhar cheio de existência, é incrível como tinha mudado pouco ou quase nada desde a infância. Lembra-se com detalhes das sensações e fantasias que tivera naquela casa e em outros lugares e sabe que ainda brincaria do mesmo jeito se fosse hoje. Após tantos anos, viagens e pessoas, ele percebe que seu olhar é a marca de sua essência, a ligação entre os seus ascendentes e descendentes. Seu bisneto e seu bisavô viram corpos diferentes, mas o mesmo olhar. Ele pensava que se um indivíduo consegue atravessar a sua vida inteira sem um acontecimento inaceitável em proporções de horror ou beleza, o olhar acaba mantendo aquele ar essencial que temos desde o começo. O velho achava que seus olhos tinham uma matriz de compaixão que tornava o resultado final um olhar bondoso e tímido, alguém também já havia lhe falado isso e muitas vezes ele tentara ser mais altivo, apesar de ser cada vez mais difícil. A velhice parece trazer, com o acúmulo de experiências e enfraquecimento do corpo, uma humildade inerente ao indivíduo. Pode ser esta humildade uma condição única para se ter nesta fase da vida a plenitude. Agora ele sente a serenidade e pensa nestas coisas aleatoriamente, não se importando muito em encontrar certezas.
Espia o tempo pelas cortinas do banheiro e vê os sombreiros do jardim sacudindo. Do lado da estrada e do lado da praia formam-se redemoinhos de areia, o céu esta inteiramente cinza e mais ao longe, mar adentro, é um cinza escuro onde provavelmente deve estar chovendo. É um daqueles dias que logo depois do meio-dia o sol desiste de iluminar e no meio da tarde a noite já parece estar chegando, quando os trabalhadores da terra e do mar têm seus relógios adiantados e retornam para suas casas. O velho sempre admirou muito aquela riqueza de eventos: “Este tempo vai noite adentro.” Acreditava que fazia parte de algo grandioso e tentava perceber cada acontecimento que estivesse ao alcance de seus sentidos. Muitas vezes andava lentamente através de um jardim que se mostrava exuberante, observando ou imaginando com atenção tudo o que poderia estar acontecendo à sua volta. Imaginando, pois a maioria das coisas que podem acontecer em um jardim acontecem de forma invisível. Quanta atividade há na tortuosa e peluda copa de uma velha figueira? Também se interessava pela movimentação de pessoas na areia da praia, entre as pedras, as ondas, os carros, as árvores e as antenas; aquilo lhe significava um infinito de possibilidades. Quando podia ficar em silêncio absoluto, numa noite de escuridão quase absoluta, à entrada do mato, apurava os ouvidos ao máximo e escutava um galho se quebrando e despencando num lugar qualquer. Aquilo sim era um grande acontecimento para a floresta e para seus ouvidos. Algo assim até desencadeava uma seqüência de outros eventos como o vôo assustado de uma coruja ou a quase destruição de um formigueiro com semanas de existência. Ao olhar pela janelinha do banheiro e ver os sombreiros e suas largas folhas sacudindo com o vento, se pergunta qual é sua parcela de participação naquele evento como espectador.
Outra coisa que intrigava o velho era o tamanho do raio de ação de um indivíduo durante a sua vida, qual a amplitude geográfica que alguém atingia até morrer. Quando ia a cemitérios ou lia textos mencionando grandes personalidades prestava atenção na cidade de nascimento e morte. Percebera que as pequenas cidades são as favoritas para o nascimento e Paris para os momentos finais. É bastante curioso pesquisar o trajeto de um biografado até seu destino final e ele pensa em si mesmo nessa hora. Está muito velho, com a capacidade de sobrevivência mais que comprovada e a apenas cinqüenta quilômetros do hospital que nascera. Se morresse neste instante sua hipotética biografia não despertaria muita curiosidade nos ignorantes. Além disso, ele está na mesma casa que já freqüentava quando criança. O que deveria pensar disso?
Em relação ao raio de ação de um indivíduo durante a sua vida, a contemporaneidade gerou um grande fenômeno. Há vinte anos ou menos, a amplitude geográfica alcançada por uma pessoa era um dos principais diferenciais entre o seu sucesso em larga escala ou não. A divulgação de grandes idéias e a busca de conhecimento implicavam em viagens a grandes centros e dificilmente alguém isolado geograficamente poderia se sobressair como líder intelectual. O velho pensa nisso e lembra-se do pensador alemão Kant que saíra pouquíssimas vezes de sua cidade e que, enquanto a música redefinia-se nas mãos de Debussy, Schoenberg e Stravinsky na primeira década do século XX, o músico americano Charles Ives fazia experimentos de mesma envergadura bem longe dos centros europeus. Estes exemplos ele encarava como exceções à regra. O fenômeno contemporâneo da comunicação global aniquila grande parte das limitações geográficas. Será que as culturas estariam sendo definitivamente equalizadas?
A porta do banheiro está entreaberta e o velho pode ver os seus dois bisnetos passarem correndo de lá para cá. Estão correndo pela casa toda, indo e vindo aos gritinhos e de pés descalços da garagem no térreo até subirem as escadas ofegantes e se jogarem no sofá da sala de TV. Ele pode ver os dois quando aceleram os passinhos antes de pularem. Lá de baixo vem o som da louça e da conversa de um jantar sendo preparado. Estão juntos para a temporada de verão na velha casa de praia quatro gerações de sua família, seu filho e sua nora, sua neta com seu marido e seus dois bisnetos, a neta também tinha convidado duas de suas amigas balzaquianas da universidade para ficarem alguns dias. O avô tinha orgulho de ver sua neta seguindo o mesmo caminho acadêmico que o seu; e ela ainda tinha conseguido concluir sua formação e começado a trabalhar como professora mais cedo que ele. Orgulhava-se do tempo que passara com a neta na infância e juventude, era crente que suas orientações e conselhos foram decisivos. Ele a via fazendo com seus bisnetos os mesmos testes de coragem em volta da casa ao anoitecer que ele havia feito. Ainda hoje eles conseguiam ficar horas conversando e davam longos passeios na praia, a neta era sua maior ligação com a esposa.
Ele havia conhecido pouquíssimos bisavôs em todo o seu tempo de vida e por isso sentia-se um privilegiado. Via que as chances de seu filho alcançar este status eram menores que a sua, pois em sua família, como em tantas outras, engravidava-se cada vez mais tarde. Essa dinâmica da procriação era agora cada vez mais adotada, como fora também adotada por seus próprios avôs e pais a dinâmica de ter menos filhos. O velho pensava na quantidade de tempo que estava sendo contemporâneo de seus descendentes. Os bisnetos seriam os últimos. Que lembranças seus bisnetos terão dele quando ficarem velhos?
De todos os seus consangüíneos, ele é o mais velho. O segundo lugar é de uma prima com oito anos a menos. Quando eram bem jovens esta distância de idades era enorme, ele com vinte anos e ela com doze significava a condição de uma criança contra a de um jovem que trabalhava e tinha responsabilidades. Hoje os dois estão velhinhos e seu último encontro foi há alguns aniversários atrás. Os dois primos falaram muito pouco, olhando tudo em volta aos suspiros; um encontro entre dois velhos silenciosos pode ser de uma nostalgia quase insuportável. Refletindo sobre esta inevitável transformação, não consegue evitar uma sutil e secreta incredulidade: “Como passou rápido.” Ele não saberia dizer se é deste jeito para todos ou se tinha deixado de fazer alguma coisa. Será que tinha deixado de experimentar algo satisfatoriamente? Que idéias deixara de ter? Que pensamentos nunca ocorridos lhe fizeram falta? O homem velho de pé em frente ao espelho e cheio de perguntas decide descer as escadas e jantar, depois convidaria sua neta para uma partida de xadrez.


Itapema, Janeiro de 2006 – Leandro Gaertner
Obs: a citação do início foi colocada em Janeiro de 2007 e trata-se de um trecho do texto Instruções para dar corda no relógio do escritor Julio Cortázar.

Imagem: Desespero (Edvard Munch)