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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Sobre o mistério, igrejas, órgão de tubos e aviões

A primeira vez que ouvi falar da relação entre órgão de tubos e aviões foi em mais uma aterradora história da Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, organistas alemães eram convocados a pilotar os aviões da Luftwaffe, eram os civis de convocação prioritária devido à destreza e coordenação motora fina em comum, inerente a quem toca órgão de tubos e de quem pilota avião. Que situação! Quantos artistas devem ter se vistos forçados a entrar neste empreendimento a meio caminho do suicídio, à mercê da histeria coletiva!
Esta associação entre duas atividades tão distintas ressurgiu ontem quando estava na “The American Chuch in Paris” (A Igreja Americana em Paris), voluntário para uma tarefa nada comum na minha rotina: assistente de uma organista durante uma gravação. A minha tarefa era simples, somente virar as páginas e acionar cinco botões na hora certa, num momento que a organista não poderia fazê-lo, pois tinha literalmente todos os membros ocupados. Logo após a instrução e nosso pequeno ensaio a jovem organista americana me olhou com aquele olhar “Ça va?”, e eu só pude dizer que estava tão impressionado que não ia dizer nada. Fiquei tão impressionado que quase passei mal, fui ficando tenso e quase me deu febre. A moça era quase um polvo manejando três teclados e dezenas de botões, numa música muito complexa ritmicamente, e é claro, escrita em três pentagramas, as costumeiras pautas duplas de teclado para as mãos mais uma linha de baixo para os pés, do organista e compositor Gaston Litaize (1909-1991). A obra Prélude et Danse Fuguée, que me soou burlesca e giocosa (mas minha opinião quanto a isto realmente não é importante), saía daquele gigante instrumento de cinco metros de altura enchendo a igreja a ponto de deixar a organista ruborizada e ofegante. Fiquei impressionado pela destreza dela, pela rapidez de acionar tantos mecanismos enquanto fazia música e sua relação com a técnica. Com certeza ela seria capaz de pilotar um avião em poucos meses. Fiquei ainda mais impressionado porque, apesar de ser um apreciador deste instrumento e da música pensada para ele, me sentia muito distante de tudo.
Percebi como caminhei para outros lados, com minha flauta e minhas ideias. Vi como seria disparatado dizer “eu levo a vida no órgão de tubos”... Além disso, de início, já senti um certo estranhamento entrando na igreja. Confesso que começo a sentir um desconforto que ainda não sei bem de onde vem, mas desconfio que seja pela esquizofrenia do lugar. E este desconforto não é de hoje. De novo lembro o olhar externo da turba de visitantes na Sacre Coeur e Notre Dame, observando, fotografando e andando em torno da nave central da igreja onde estão os indivíduos imersos no culto. Não quero dizer que se trata de observadores conscientes e de observados inconscientes, porém se trata de observados imersos pelo prazer do mistério.
A maioria das igrejas de Paris, talvez da Europa, possuem uma extensa agenda de concertos e assim atuam nesta demanda dos músicos por uma sala de concerto centralizada de fácil acesso ao público e do público por concertos baratos. Na própria igreja americana que estive ontem têm vários cartazes de concerto, bem mais que eventos paroquiais propriamente religiosos. Isto é, os lugares de culto cristão já mesclam o seu público. Segundo uma reportagem do jornal “Libération” de 5 de maio de 2008, a Alemanha apresenta dados interessantes e uma calorosa discussão sobre o destino de igrejas vendidas: por exemplo, a igreja neo-apostólica de Neukölln (um culto cristão protestante dissidente fundado em 1863) foi vendida para a comunidade muçulmana sunita por 550 mil Euros. Em Berlim duas igrejas foram simultaneamente transformadas em mesquita. Em Milow (Brandenburg), uma igreja do século 18 foi vendida a um banco regional. A poucos kilômetros, em Gatow, a igreja de São Rafael foi deixada para uma rede de distribuição que a demoliu para construir um super mercado. Em Bielefeld, a igreja de São Martinho foi transformada num restaurante... (http://www.liberation.fr/monde/010180057-l-allemagne-deconcertee-par-la-seconde-vie-de-ses-eglises) Dá para imaginar as brigas, conjecturas e profecias que tudo isto tem provocado. Pessoalmente, aprecio uma saída para todas as construções do passado que tenham um profundo valor simbólico coletivo, como uma igreja: que se transformem em museus e salas de concerto, mesmo destino dos palácios e castelos! Quanto à transformação de igrejas em mesquitas é muito simples: saem os cavalos entram os camelos. As mesmas espadas, a mesma busca pelo mistério.
Quando entrei ontem à noite na igreja americana em Paris, apesar da beleza da construção e sobriedade da decoração, senti um desconforto, talvez não por mim, mas por tantos outros. Entre aquelas poucas luzes, silêncio, cantos escuros, mármore, madeira e altura vertiginosa das colunas lembrei do quadro “Noite de Luar” do pintor Isaac Levitan (ver imagem), que havia visto há poucas horas no meu computador. No momento em que olhei para as sombras das árvores, para o caminho noturno, as casinhas recuadas, quantos pensamentos ali perdidos e a imaginação se enchendo de mistério. Depois invadido pelo virtuosismo da organista americana que me apresentou paciente a complexidade da música de Litaize, um compositor cego... A realidade simples, crua e infinita. Há mistério o suficiente nas coisas reais.


Leandro GaertnerParis, 7 de fevereiro de 2011.

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Imagem: Noite de Luar de Isaac Levitan (1897)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O som das florestas ancestrais


Quase sempre fui muito tolerante com o som. Com a música também. Pelo menos na vida adulta, depois daquela fase adolescente, quando aí sim era intolerante e praticamente só ouvia música europeia do século 18, sobretudo Bach e Mozart.
Mas, nesta vida adulta, na qual me considero hoje, sempre fui muito tolerante, na verdade condescendente com o meio sonoro e musical ao meu redor. Por exemplo, depois de dar aula de flauta o dia inteiro em Blumenau, era condescendente em esperar o ônibus pra Gaspar ouvindo uma rádio “qualquer coisa” saindo pelos alto-falantes do ponto na frente do shopping, ou condescendente (mas irritado) ao ouvir aquelas figuras rítmicas entrecortadas, invariáveis e em alta frequencia vazando do pequeno alto-falante enterrado na orelha de alguém sentado ao meu lado no ônibus entre Gaspar e Curitiba, condescendente com o som extremamente forte e aos peculiares repertórios escolhidos em quase todos os lugares de interação social festiva, também tolerante aos alto-falantes do caminhão do gás que me acordaram semanas a fio em Recife, condescendente ao padrão musical preferido de tantos conhecidos, na casa e no carro deles e até mesmo quando estes conhecidos vinham na minha própria casa. São raras as vezes que externei meus pensamentos e fui inconveniente: lembro agora que uma vez fui um tanto rude com a música de amigos e conhecidos que festejavam na varanda lá da casa de Gaspar, mas esta é sem dúvida uma rara exceção de uma conduta quase impecável de tolerância e paciência. Coisa que de fato resumem meu profundo respeito pelas escolhas e espaço dos outros.
Minha vida adulta, de estudo, atenção, pensamentos e amor pelos sons e pela música me levaram e me levam sempre para novas descobertas, novas paixões sonoras. Ainda lembro com exatidão quando o mosquitinho do Jazz me picou, numa noite de setembro ou outubro de 2001 na loja de discos no shopping Estação em Curitiba, também lembro do mosquitinho da flauta sinfônica que zuniu durante as oficinas de música de Curitiba, ou do antigo mosquito da flauta bachiana e mozartiana, do mosquitinho da flauta francesa do século 20, do revolucionário mosquito andino e, é claro, lembro do malicioso mosquito chorão que tem suas larvas lá nos sambas da minha infância com a Banda São Pedro, cresce nas partituras do Zequinha Abreu no livro do Mascarenhas, nas brincadeiras flautísticas de Altamiro Carrilho, nas leituras de Pixinguinha e vai completar seu veneno com o mosquito chorão francês nas rodas de Choro em Paris a partir de 2004. Minha audição é aberta, de pele sensível, e mais recentemente, fui picado pelo mosquito do Frevo e do Maracatu, exatamente num gole de cerveja gelada com a proa voltada para o vento vindo das ruelas do Recife Antigo no carnaval de 2009. Ana Paula também foi picada gravemente por um enxame de mosquitos do Côco... Desde então ela se controla para não aumentar a coleção de sandálias de couro. Pernambuco fez um bem incrível, nos fez. E ainda lá no sertão e na capital mora o mosquito do Luis Gonzaga...
Como disse, quase sempre fui muito tolerante às escolhas dos outros, afinal, cada um é picado pelo mosquito que lhes chega, se for o mosquito do Rei Roberto Carlos, paciência. E também sempre fui muito aberto aos novos gêneros musicais, novas culturas, tanto quanto sou aberto a novas amizades, como disse o grande guitarrista e percussionista Arismar do Espírito Santo sobre a improvisação em uma de suas composições: “Vale tudo galera!” Também sou desta opinião cósmica!
Porém, quanto à tolerância às preferências alheias, algo tem mudado nos últimos meses: se algo bom nos torna melhor, por quê algo ruim não nos tornaria pior? Em outras palavras, se ouvir algo numa intensidade apropriada ao nosso frágil aparelho auditivo é bom, por quê precisamos sentir dor em praticamente todos encontros sociais festivos? Ou então, como músico, eu sei (todos sabem) que a música de Bach é um exemplo sofisticado da capacidade humana, logo, é estimulante. Será que ouvir um cantor “sertanejo universitário” da moda nesta temporada (acho que agora a moda chama-se Luan Santana) não poderia fazer um efeito contrário? Como um efeito de desestímulo intelectual? A minha questão é bem prática: devo permanecer num local que considero desestimulante? Devo optar entre estar com as pessoas e ter minha potência desestimulada? Se for realmente preciso para minha saúde social esta interação desestimulante, eu poderia compensar, por exemplo, duas horas de balada desestimulante musicalmente com duas horas de música estimulante? (Obs.: é importante deixar claro que falo da nossa espécie e não de uma cultura ou camada social específica). Eu poderia anular duas canções de Bruno & Marrone com dois prelúdios de Chopin? Ou, para ficar em saldo positivo, teriam que ser dois prelúdios mais duas fantasias?
Não quero agora falar da indústria cultural, já sabemos disto. A verdade é que tenho sido menos condescendente e com medo da anti-musicalidade, ora, não posso permitir âncoras nos ouvidos e no pensamento. Sempre tento aprender, mas tem hora que não dá. Aí, estou com medo de desaprender. O que é o fenômeno em Itapema (e em tantos outros lugares), nos dias de virada de ano, de vários carros estacionados um ao lado do outro perto da areia da praia, com som alto tocando ao mesmo tempo? Em torno de cada veículo um pequeno grupo de pessoas dançando, certamente isoladas numa redoma sonora ensurdecedora e particular. Uma ilha ilusória criada à custa da demanda máxima do aparelho auditivo. Para quem passa à distância, andando perto da água do mar, resta uma paisagem sonora cacofônica. Parece que este hábito também ocorre nas praças e em certas ruas de cidades do interior. Para começo de conversa, isso é mal uso da tecnologia.
As pessoas ouvem música indistintamente e depois não sabem por que não conseguem dormir. É como ficar vendo filmes de muita violência e terror, mesmo que já esteja banalizada, esta violência vai atrapalhar. Passam duas horas e meia num barzinho tendo que gritar pra conversar e depois querem ter bons sonhos?
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Esses dias em Paris, entre a nostalgia da mata atlântica e o silêncio surpreendente que esta cidade pode ter, prestei atenção em algo novo pra mim: o som produzido pelo nosso ouvido na ausência de som externo. Por exemplo, como quando estamos dentro de um estúdio isolado acusticamente ou em silêncio total deitado na cama. A ausência de som externo não significa um vácuo da percepção auditiva, não pelo menos pra mim. Mesmo num silêncio total, dá pra ouvir um conjunto de frequências sonoras atravessando a cabeça, os ouvidos, uma espécie de “chiado” muito sutil e intermitente. Provavelmente este “chiado” deve variar em cada indivíduo, mas deve estar lá. É como a prova que os ouvidos estão lá, mesmo sem os utilizarmos oficialmente para sons externos naquele momento. Como também sentimos os olhos quando eles estão fechados; até mesmo existe uma tênue variação da luminosidade com eles fechados. É a prova de que eles estão lá. No caso da audição, é evidente a necessidade deste “estado de espera”, enquanto estamos em repouso e no silêncio. Nossa audição 24 horas sempre foi uma de nossas maiores garantias de sobrevivência.
Para ter esta percepção com os ouvidos, basta existir um bom nível de silêncio externo e concentração. Neste silêncio, um som muito sutil começa a surgir, mas de repente pode se tornar uma verdadeira “pressão” na cabeça, algo do tipo: “estamos realmente vivos!” Posso descrevê-lo sem problemas como um “chiado”, mas ainda seria uma descrição limitada. Cada um pode descrever como quiser. O mais importante é que esta percepção se trata da percepção da audição em si, talvez pouco estimulada se comparada com a visão. Ao “ouvir” este som interno, também e talvez o "som da circulação do sangue", algo que poderia chamar de um jeito mais poético como o “som do ser”, estaríamos praticando uma audição bastante profunda e atenta. Conscientes deste som interno, podemos estar muitíssimo mais atentos aos sons vindos do exterior, mesmo os mais sutis, como o barulho das teclas deste computador, por exemplo. Também é bem interessante o som dos dedos coçando a cabeça, a audição combinada com o tato. Até o som mais corriqueiro pode ser percebido com maior riqueza de detalhes.
Depois de horas num ambiente com som muito forte, como uma boate noturna de repertório típico da indústria cultural de massa sendo propagado por tecnologia de ponta mal utilizada por um indivíduo pouco reflexivo auditivamente, quando nos deitamos enfim e exaustos na cama e no silêncio de nosso quarto, podemos ouvir com clareza aquele “apito” no ouvido. Agora penso que este apito é estranho ao chiado, é um intruso. O chiado estaria lá mesmo sem a exposição aos sons extremos da boate. Este tênue chiado, este “som do ser”, é que tem me apaixonado nestes últimos dias. Quando paro para escutá-lo com atenção, uma imagem sonora aparece: o “som do ser” se transforma em minha imaginação no “som da floresta”. Posso ouvir os sons dos morros em volta da casinha do sítio, um paredão da mata atlântica cercando todos os meus sentidos. Então mais uma vez me pergunto: sou eu que quero ouvir o “som da floresta” no meu ouvido interno? Sou eu que quero o “som da floresta” no meu “som do ser”? Seria este “som da floresta” uma “memória” do nosso aparelho auditivo inerente a todos os seres humanos? Seria o “som da floresta” o som mais ouvido por nossa espécie ao longo de sua história e assim transformando-se no “som do ser”? O que é imaginação e o que é percepção pelo aparelho auditivo? Onde os dois se encontram?
É claro que não posso responder a estas questões, mas confesso que sinto felicidade ao ouvir os sons destas florestas ancestrais no lugar mais íntimo e singular da minha audição. Fecho os olhos e encontro lugares tão amados, sinto até o cheiro e aquele arzinho noturno gelado das pirambeiras do sítio. Fecho os olhos e escuto as matas, as árvores, as folhas, os insetos, o vento, os pássaros, talvez seja até possível perceber um animal maior, os sons da lenha estalando no fogo e o cheiro de fumaça. Fecho os olhos e escuto as florestas ancestrais que não são somente minhas, são as florestas ancestrais de nossa espécie. E o som diz que viemos de longe no tempo e que no princípio e no fim, somos todos iguais.


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Leandro GaertnerParis, 3 e 4 de fevereiro de 2011.



Imagem: Silêncio (Odilon Redon)