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sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Sobre o Homo-Vegeta-Ha(ma)bilis‏

O texto "TRANSFIGURAÇÃO - A absorção de um homem por uma árvore" (publicado dia 10 de setembro neste mui exclusivo blog) rendeu bons frutos, sementes, raízes e flores nas mãos de minha querida amiga de Desterro (cidade atualmente conhecida como Florianópolis), uma das artistas mais compleXtas que já tive o prazer de conhecer e conviver, e com o nome mais que perfeito para o conTexto: Flora Holderbaum! (inclusive existe em Joinville (SC) um comércio de plantas com o mesmo nome... fato que torna tudo cada vez mais apropriado!)
Além disso, minha estimada cunhada alemã Sol Flörke, atualmente em um posto avançado da FAB em Passau, completa minha breve introdução e torna ainda mais incrível a rede de associações com a tradução da palavra "Holderbaum": hold=linda/cara/fagueira; baum=árvore. E assim, arrisco uma tradução para este Holderbaum cada vez mais entranhado na terra: Árvorequerida! Nada mal para as Magnolias grandifloras, nada mal para um texto escrito por um Feijão Jardineiro!
Então, finalmente, segue abaixo o comentário desta artista dos sons, das cores, das palavras e das sensações, e que há mais de oito anos soube me guiar pela ilha, sob a escuridão do blecaute, e que continua a compartilhar seus amorosos sensíveis sentidos, influenciando a mim e também as pessoas que me cercam; basta ler os textos recentes da minha frutífera Pereira (metasnalinguagem.wordpress.com)... e que venham mais cafés prolongados em Meia-Praia...


"Caro Homo-vegetalis....


Teu novo texto absorvido em folhas (ou das folhas) inspirou em mim a lembrança esticada de alguns trechos que coloquei no meu TCC (Isto Não É Um título).
Cabe certeirassutadoramente a citação de Otávio Paz, colada mais abaixo. Apresento-te também, se não o conheces, os autores Deuleuze a Gattari, por sinal franceses, pensadores contemporâneos, creio que da vanguarda do pensamento sobre a linguagem.
Tua forma de descrever ou inscrever tuas percepções presente passadas lembrou-me muito um conceito que eles colocam: o Devir.
Também achei muito rica a maneira de escrever causando o desgaste da percepção de quem lê, como que desfiando um fio narrativo (ou a descrição dos substantivos perceptores: "ramificação mais sensível dos limites de minha extensão") para desaparecer o significado que se formará logo a seguir na mente de quem lê, e não tece uma sequência forçosamente literal--linear esmagadora e concentradora de um só significado por alguns caracteres, que assim abertos, tornam-se livres para colarem-se às partes, ou funções, que se -lhes vierem a fazer "devir"...a conectarem-se por extensões rizomáticas.
Enfim....
Te jogo aqui algo densamente e deliciosamente louco sobre o que é escrever o que se sente e vê e vive e pensa e expressa. Se puder, pegue os livros....para mim foi um delíreo lúcido lê-los...Fica a teu cargo (como escrevi horrores) escolher algum trecho pra colocar como comentário no teu blog!

"Para Deleuze e Guattari, um devir consiste "a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em via de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos.", Ou seja, o devir implica num processo de vizinhança, estabelecendo relações rizomáticas com o outro. (DELEUZE, GILLES e GATTARI, FÉLIX - Capitalismo e Esquizofrenia -vol 3, RJ:Ed.34,1996 [Coleção TRANS], p.24.)

"Nenhuma habilidade tipográfica, lexical, ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, ao nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que uno se faz parte do múltiplo, estando subtraído dele). Subtrair o único da parte a ser construída, escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma.(DELEUZE e GATTARI, 1995, p.14).

[...escrever sobre escrever é o futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites ou uma página em uma noite_que é o mesmo noites e páginas mesma ensimesmam onde o fim é o começo onde escrever sobre o escrever é não escrever sobre não escrever[...]" (CAMPOS, Haroldo de. Galáxias, SP:Editora 34, 2004, 2a ed., s/p.)
As multiplicidade são rizomáticas [...]. Uma multiplicidade não tem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que se mude de natureza (as leis de combinação crscem então com a multiplicidade)" (DELEUZE e GATTARI, 1995, p.16).
Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias diferentemente formadas, de datas e velocidade muito diferentes. Desde que se atribui um livro a um sijeito, negligencia-se este trabalho das matérias e a exterioridade de suas correlações.[...]. Num livro, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidade, mas também linhas de fuga, movimentos de deterritorialização, e desestratificação. As velocidades comparadas de escoamento, conforme estas linhas, acarretam fenômenos de retardamento relativo, d eviscosidade ou, ao contrário, de precipitação e de ruptura. Tudo isto, as linhas e as velocidades mensuráveis, constitui um agenciamento. Um livro é um tal agenciamento, e como tal, inatribuível. (Deleuze e Gattari. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia- vol 1. RJ Ed. 34, 1995,p.11 e 12.)
E por fim, sobre o esquecimento ou o desparecimento das impressões ou sensações limítrofes de partes longínquas da percepção versus a solida realidade aberta e das sensações primevas induvidosas. Ou sobre as ramificações da percepção que desaparecem ao serem detectadas num ponto esticado da máquina que capta o real/irreal envolta e por dentro .Ou sobre o aprisionamento dual realidade/mera fantasia onírica e sua possível dissolução em milhões de anti-definições, estas sim, abertas:
"Não são as sensações, as percepções, as imaginações e os pensamentos que se ascendem e se apagam aqui, agora,[...], não são o outro lado da realidade mas o outro lado da linguagem, o que temos na ponta da língua e se desvanece antes de ser dito; do outro lado que não pode ser nomeado, porque é o contrário do nome: o não-dito não é isto ou aquilo que calamos, também é nem-isto-nem-aquilo: n]ao é a árvores que digo que vejo mas a sensação que sinto ao sentir quea vejo, no momento em que vou dizer que vejo; uma concentração insubstancial, mas real, de vibrações e sons sentidos que ao se combinarem traçam uma configuração de uma presença verde-bronzeada-negra-leitosa-avermelhada-sonora-silenciosa; não, também não é isso, se não é um nome ainda menos será a descrição de um nome nem a descrição de sensação do nome nem o nome da sensação: a árvores não é o nome árvore tampouco é uma sensação de árvore [...] os nomes, já sabemos, estão ocos;[...] sensações que não são percepções não são sensações, percepções que não são nomes, o que são? se não o sabias, agora já o sabes: tudo está oco[...]e, apenas digo tudo-está-oco sinto que caio na armadilha: se tudo está oco, também está oco o tudo-está-oco;não pleno e repleto, tudo-está-oco cheio de si, o que tocamos e vemos e ouvimos e degustamos e sentimos e pensamos, as realidade que inventamos e as que nos tocam, nos vêem, nos ouvem e nos inventam [...]"
[...] e apenas digo, apenas escrevo com todas as suas letras que não é realidade o desnudar de nome, os nomes evaporam, sãoa r, são um som engastado em outro som e em outro e em outro, um murmúrio, uma frágil cascata de significados que se anulam [...]
[...] a resposta é reversível, as frases do fim são o avesso das frases do começo e ambas são as mesmas que são[...] a massa agitada do arvoredo de faias de minha janela enquanto o vento estcétera lições etcétera destruídas etcétera e o próprio tempo etcétera, as frases que escrevo neste papel são as sensações, as percepções, as imaginações, tcétera, que se ascendem e se apagam aqui, diante dos meus olhos, o resíduo verbal: é o que resta destas realidades sentidas, imaginadas, pensadas, percebidas e dissipadas, [...].(PAz, Otávio. O MONOGRAMÁTICO). RJ: guanabara, 1988, p.51-52,53-58).
Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significantes, não se buscará nada compreender num livro, pergutarse-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz passar intensidades, em que multiplicidades ele introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos-sem-órgãos ele convergiu o seu" (segundo os autores, 'ninguém, faz amor sem construir para si, sozinho, com outros ou com outros, um corpo sem órgãos. Um corpo sem órgãos não é um corpo vazio desprovido de órgãos, mas corpo sobre o qual o que serve de órgãos [...] se distribui segundo movimentos de multidões,[...], sob forma de multiplicidades moleculares. [...] O corpo sem órgãos não é um corpo morto, mas um corpo vivo, e tão vivo e fervilhante que expulsou o organismo e sua organização')_ (DELEUZE E GATTARI, opus cit., p.43 .)
Tomara que te fervilhe a razão!"
Flora Holderbaum
Desterro, Setembro de 2009
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terça-feira, 29 de setembro de 2009

Carta de Benjamin Costalat (1922)

OS OITO BATUTAS
Fujo um pouco ao normal deste blog ao incluir uma carta de 1922 do cronista carioca Benjamin Costalat ao jornal Gazeta de Noticias. Na época muito se discutiu sobre a ida dos Batutas à Paris, seu valor, sua qualidade musical, questões racistas (pois a maioria do grupo era de músicos negros), se seriam eles representantes legítimos ou não, adequados ou não, da cultura brasileira, que vivia momentos de afirmação nacionalista em pleno ano do centenário da independência... Esta história vai muito mais longe e foi maravilhosamente contada na tese de doutorado (que li muitos trechos emocionado e com os olhos marejados) de Luiza Mara Braga Martins, defendida ainda este ano no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
Este velho texto que segue não só merece, como precisa ser lido por todos os chorões e amantes da boa música! E o coloco aqui com muito orgulho por também ser um chorão, flautista, acadêmico boêmio, doctorant-bon-vivant, empenhado em continuar esta história, tocando Pixinguinha nas salas da Sorbonne!



"Foi um verdadeiro escândalo quando, há uns quatro anos, os Oito Batutas apareceram. Eram músicos brasileiros que vinham cantar coisas brasileiras! Isso em plena Avenida, em pleno almofadismo, no meio de todos esses meninos anêmicos, frequentadores de cabarés, que só falam francês e só dançam tangos argentinos! No meio do internacionalismo das costureiras francesas, das livrarias italianas, das sorveterias espanholas, dos automóveis americanos, das mulheres polacas, do esnobismo cosmopolita e imbecil!
Não faltaram censuras aos modestos Oito Batutas. Aos heroicos Oito Batutas, que pretendiam, num cinema da Avenida, cantar a verdadeira terra brasileira, através de sua música popular, sinceramente sem artifícios nem cabotinismo, ao som espontâneo dos seus violões e dos seus cavaquinhos. A guerra que lhes fizeram foi atroz. Como músicos eram bons, batutas de verdade, violeiros e cantadores magníficos. Como a flauta de Pixinguinha fosse melhor do que qualquer outra flauta por aí saída com dez diplomas de dez institutos, começaram os despeitados a alegar a cor dos Oito Batutas, na maioria pretos. Segundo os descontentes, era uma desmoralização para o Brasil ter na principal artéria de sua capital uma orquestra de negros. O que iria pensar de nós o estrangeiro?
Tive a honra de defender (e essa defesa foi das que fiz com mais entusiasmo em minha vida de jornal) os Oito Batutas naquela ocasião. Hoje, porém, tenho que voltar ao assunto: os Oito Batutas embarcam esta semana para Paris.
- Para Paris?
- Mas isso é uma desmoralização!
- Como é que o ministro do Exterior não toma providencia?
- Agora é que o Brasil vai ficar inteiramente desmoralizado!
Calem-se os imbecis. Calem-se os patriotas baratos. Calem-se os músicos pernósticos que fazem música das Casas Mozart e Artur Napoleão. Os Oito Batutas não desmoralizarão o Brasil. Levarão a verdadeira música brasileira, essa que ainda não foi contaminada por influências alheias e que vibra e que sofre e que geme por si, cantando luares dos sertões e os olhos da cabocla... Levarão o perfume das nossas matas, o orgulho das nossas florestas, a grandeza da nossa terra, a melancolia da nossa gente, a bondade e o amor dos nossos corações, ditos e cantados pelo verso simples e a música sublime da alma popular... Levarão o verdadeiro Brasil, desconhecido dos próprios brasileiros, mas formidável assim mesmo no enigma de suas forças e de suas aspirações...
- Mas são negros !
- Que importa ! São brasileiros !
Devemos procurar ser conhecidos na Europa tal qual somos. Com os nossos negros e com tudo o mais... Nada perderemos com isso. Temos uma personalidade internacional tão digna quanto as outras, e cumpre afirmá-la a cada instante:
- Somos assim. E se nos quiserem...
Detesto esses bons patriotas que, na Europa, querendo fazer propaganda desta terra, negam que no Brasil haja calor e negros, duas coisas que eles consideram bastante deselegantes.
- Mas, por que?
Porque consideram o calor e o negro duas coisas vergonhosas, se elas, primeiro, não o são e, segundo, são bem nossas, bem brasileiras? Eu quisera que no Brasil houvesse gente verde, gente de todas as cores, calor de enlouquecer, calor de matar, para poder afirmar com orgulho a existência de todas essas pretendidas calamidades aos europeus! E se eles se espantassem com o calor do meu país, eu me espantaria com o frio deles, se eles gritassem contra o sol, eu gritaria contra o gelo, se eles falassem contra o preto, eu falaria contra o branco, e assim não acabaríamos nunca! Não acabaríamos mesmo nunca! Cá por mim, não acabaria! Tenho muita coisa a dizer da Europa em reação às coisas que se disserem no Brasil!
Não é, pois, vergonha sermos conhecidos tal qual somos. Ao contrário, isso nos deve honrar.
Vergonha é sermos inteiramente desconhecidos. E é o que somos.
Noutro dia ainda, apareceu o Almanach Hachette, de 1922, que é comprado aos milhares e há anos, no Brasil, dando uma descrição fantástica da bandeira brasileira. Mas, uma descrição fantástica! O francesinho que a escreveu falara em linhas paralelas e nãosei mais quantas asneiras!
Isto é que é vergonha. E sem vergonha são estes livreiros daqui que vendem semelhante porcaria e não devolvem imediatamente ao Sr. Hachette o seu latrinário almanaque com um pouco de creolina.
Amanhã, também não teremos obrigação de conhecer a bandeira francesa. Podemos descrevê-la como entendermos. Com qualquer cor, com qualquer símbolo. E, naturalmente, o Sr. Hachette será o primeiro a protestar... vendendo mais caro os seus livros.
O sucesso dos “Oito Batutas”, em Paris, será grande. Será a revelação de uma música inteiramente nova na beleza de seus ritmos e de sua melodia.
Paris que eu vi, ainda há meses, festejar uma grande orquestra americana de pretos. “The Syncopated Band”, que tocava Beethoven e todos os clássicos com acompanhamento de buzina de automóvel, apito de trem, campainhas, latas velhas e os barulhos mais infernais e mais prosaicos que a imaginação mórbida do jazz-band conseguia inventar, uma orquestra que enlouquecia, uma música que dava cólicas; Paris, que foi em peso, de casaca, com luxuosíssimas toilettes, ouvir religiosamente todo aquele ruído ridículo no Theatre des Champs Elysées, naturalmente saberá fazer distinção entre nossos músicos e os palhaços americanos, os homens das latas, das buzinas e dos apitos...
Os americanos levaram barulho. Os nossos levam sentimento. O que saiu das latas, vai sair agora dos corações. A diferença é grande... Não é mais Beethoven com chocalhos que os franceses vão ouvir. É a música de uma terra e a alma de uma gente distante. Terra do luar, da cabocla, do violão... Terra admirável de sentimento onde até os coqueiros morrem de saudade!...
Tu não te lembras da casinha pequenina
Onde o nosso amor nasceu
Tinha um coqueiro ao lado
Que, coitado, de saudades já morreu!
E ouvindo as nossas modinhas, e ouvindo cantar as nossas noites de luar e o nosso sertão e os olhos das nossas morenas, e o nosso amor e as nossas saudades, muitos franceses hão de se comover. E no cabaret, estonteante de alegria e de luzes artificiais, muita cocotte, olhos fundos de crayon, lábios úmidos de champagne, há de chorar ouvindo a ‘asa branca da serra’ ou uma ‘casinha na praia’. Há de chorar, e com razão, a casa branca que ela nunca teve, nem na praia, nem na serra...
Chorarás, mulher!, mesmo sem compreender as palavras, porque a modinha brasileira fala pela voz de seu violão. E todos o entendem na sua linguagem cantante...
Chorarás a pequena casa branca da felicidade onde a garrafa de champagne é um riacho que geme mansamente todo o dia e toda a noite, e vem, puro, lá dos altos das montanhas infinitas... E compreenderás, enfim, graças à modinha, plangente mas feliz, que é ainda cá nestes maravilhosos sertões brasileiros que há um pouco de beleza e de felicidade espalhadas entre os homens..."
BEMJAMIM COSTALAT
Janeiro de 1922


Fonte: Museu da Imagem e do Som, Arquivo Almirante: Carta de COSTALAT, Benjamin, na Gazeta de Noticias, domingo, 22 de janeiro de 1922, p. 2, 7ª Coluna.
Foto: Jornal A Noite, 14 de agosto de 1922

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

-TAPIRA SKY-

Assim como aconteceu com Recife, minhas impressões sobre a Fazenda Mangueira Preta e Tapira se contornam à medida que estes lugares se afastam no tempo. Porém, estas são impressões urgentes e não poderia esperar (leia-se “me controlar”) muito para escrever, mesmo sem o medo de perdê-las. Destas impressões a mais impressionante é o meu novo olhar para a nossa localização no Sistema Solar, e assim na Via Láctea e assim, construir uma imaginação um pouco mais audaciosa sobre nossa própria posição no Universo, e agora não importa mais se estou falando de mim mesmo, da casa da fazenda ou de nossa espécie. Também não irei perder a surpreendente constatação de: “como demorei tanto para me interessar por isso?” E eu que sempre gostei de mapear, saber dos climas, bandeiras, o tamanho dos países, sempre soube que os Estados Unidos são maior que o Brasil por causa do Alasca, mas perdem para o Canadá, sempre quis me localizar pelos pontos cardeais em uma nova cidade (apesar de perder no shopping de Recife), me ver de “fora”, do “todo”, de “cima” e que aos 5 anos de idade ficava chocado com o tamanho da então União Soviética, um imenso país cor de rosa no antigo mapa... Quando pude ficar mais tempo sob o céu de Tapira tudo isto foi ampliado. Estava precisando mesmo de um banho a céu aberto para encaixar ainda melhor esta história de me localizar espacialmente no mundo, e ver o tamanho da naba.

“Toda cultura tem o seu mito da criação - uma
tentativa de compreender de onde veio o universo e tudo o que ele
contém. Quase sempre esses mitos são pouco mais que histórias inventadas
por contadores de história. Em nossa época, temos também um mito da
criação. Mas está baseado em evidências científicas sólidas. Diz mais ou
menos o seguinte... Vivemos num universo em expansão, cuja vastidão e
antiguidade estão além do entendimento humano. As galáxias que ele
contém estão se afastando velozmente umas das outras restos de uma
imensa explosão, o Big Bang. Alguns cientistas acham que o universo pode
ser um dentre um imenso número - talvez um número
infinito - de outros universos fechados. Uns podem crescer e sofrer um
colapso, viver e morrer num instante. Outros podem se expandir para
sempre. Outros ainda podem ser delicadamente equilibrados e passar por
um grande número - talvez um número infinito - de expansões e
contrações. O nosso próprio universo tem cerca de 15 bilhões de anos
desde a sua origem ou, pelo menos, desde a sua presente encamação, o Big
Bang. Talvez haja leis diferentes da natureza e formas diferentes de
matéria nesses outros universos. Em muitos deles a vida talvez seja
impossível, pois não há sóis nem planetas, nem mesmo elementos químicos
mais complicados do que o hidrogênio e o hélio. Outros talvez tenham uma
complexidade, diversidade e riqueza que eclipsam as nossas. Se esses
outros universos existem, nunca seremos capazes de sondar seus segredos,
muito menos visitá-los. Mas há muito a explorar no nosso. O nosso
universo é composto de algumas centenas de bilhões de galáxias, uma das
quais é a Via Láctea. “A nossa galáxia”, como gostamos de chamá-la,
embora ela certamente não nos pertença. É composta de gás, poeira e
aproximadamente 400 bilhões de sóis. Um deles, num braço obscuro da
espiral, é o Sol, a estrela local - e, pelo que sabemos, insípida,
trivial, comum. Acompanhando o Sol em sua viagem de 250 milhões de anos
ao redor do centro da Via Láctea, existe um séquito de pequenos mundos.
Alguns são planetas, outros são luas, uns asteróides, outros cometas.
Nós, humanos, somos uma das 50 bilhões de espécies que cresceram e
evoluíram num pequeno planeta, o terceiro a partir do Sol, que chamamos
Terra. Temos enviado naves espaciais para examinar setenta dos outros
mundos em nosso sistema, e para entrar nas atmosferas ou pousar na
superfície de quatro deles - a Lua, Vênus, Marte e Júpiter.
Estamos empenhados em realizar uma tarefa mítica.”


(Trecho do livro Bilhões e Bilhões de Carl Sagan)

Por enquanto é melhor deixar quieta a naba do Universo ou Universos e agora o “X” da questão é olhar para o céu noturno e ver a Via Láctea. Ué! Mas... Como assim! Como ver a Via Láctea se nós estamos na Via Láctea? Esta questão elementar nunca tinha latejado em minha contemplativa mente até a terceira cuia de chimarrão da segunda semana na arejada calçada da Mangueira Preta. Mas então fui investigar e saber que o “caminho leitoso” que vemos graciosamente estendido como um véu no céu, a nossa Via Láctea visível a olho nu, é na verdade um dos braços da galáxia onde está o Sistema Solar e, por sua vez, também se encontra o planeta Terra. É uma parte da galáxia, ou melhor dizendo, é um braço da nossa própria galáxia, visível de acordo com a nossa perspectiva, é o que conseguimos, o que podemos ver com os pés plantados em nosso planeta. Aqui da Terra só conseguimos ver esta enorme faixa esbranquiçada, este braço da Via Láctea, como se estivéssemos olhando para as bordas de uma moeda deitada, sem ter a noção de seu formato real. Conseguimos ver de certa maneira sua espessura, porém não vemos que a moeda é redonda. E pelo que entendi, estamos deveras longe do centro da moeda.
Praticamente tudo o que se sabe sobre a Via Láctea, desde o formato em espiral (uma série mais ou menos circular de braços), extensão e idade, só é possível graças à observação de outras galáxias vizinhas, pois as nuvens de poeira e gás de nossa própria galáxia impedem a nossa visão, pois absorvem a luz visível. É... A coisa vai se complicando. Também já seria demais, entre uma cuia e outra, de meias furadas e pernas cruzadas, querer não só entender toda uma galáxia, mas ainda por cima, querer vê-la? Com certeza o próximo passo seria criticá-la e ainda ficar se gabando por morarmos na área nobre da periferia, já poetizando saudosos sobre o nosso espaçoso braço de Órion.
Olha o tamanho da criança! A galáxia onde estamos é tão grande, mas tão grande que, proporcionalmente, se ela fosse do tamanho da Terra, o Sistema Solar seria do tamanho de um CD. E assim, na melhor das hipóteses, a Terra não passaria de um cocozinho de mosca neste CD. Continuando um pouco mais neste absurdo abismo pragmático, sem dó nem piedade, o que poderíamos então pensar de uma pessoa ajeitando o cabelo no reflexo de um CD? Esse negócio de proporção pode nos trazer sempre uma surpresa: um dia achei engraçado que a economia da Argentina inteira equivale à economia do estado de São Paulo; na página seguinte o sorriso maroto se desfez ao ler que a economia do Brasil inteiro equivale à economia da Califórnia. Este tipo de pensamento pode nos deixar de cama, o jeito é seguir andando.
O bom disso tudo é encontrar um garçom turco no alto da rue Ménilmontant e, sob o anoitecer de Belleville, falarmos de nossas terras, e que apesar dele ser curdo e eu da Coloninha, termos uma certeza em comum: pouco importa que língua falamos, estamos vivos e no mesmo planeta, sem poder sair dele.
O céu de Tapira agora me acompanha.


Leandro Gaertner
Paris, Setembro de 2009

Imagens: Representações da Via Láctea.

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quinta-feira, 10 de setembro de 2009

T R A N S F I G U R A Ç Ã O

A absorção de um homem por uma árvore

A última lembrança em movimento é de uma caminhada lenta e curta através de um jardim úmido, ainda consigo lembrar vagamente da grama verde e pegajosa roçando talvez os meus pés. Esta é a última lembrança que tenho de minha respiração. Agora puxando com força pela memória lembro do impulso que tinha em me derreter pelo caminho, mas somente posso supor que seja um derretimento, não está muito claro como tudo acontecera. Não consigo dizer se era dia ou noite, nem mesmo arriscar uma hora aproximada, o tempo era muito parecido com o tempo de um sonho, impreciso. Talvez esta seja a única certeza, a certeza de que não era um sonho. Nem mesmo poderia entender como ainda é possível refletir e ter estas lembranças, mesmo que vagas e confusas. Ainda estou vivo? E por quê não estaria? O que resta é uma forma de pensamento incompleto e está mais para um delírio, uma alucinação, como um espasmo retrógrado de memória do que para um pensamento do passado. Nem mesmo tenho certeza se estas lembranças são mesmo só lembranças ou são todo o meu conhecimento, se é tudo o que tenho. Pensar em uma última lembrança implica obrigatoriamente na existência de pensamentos anteriores, ou então, em uma vida anterior. Mas, sobre esta vida não sei mais nada. Só consigo pensar na sensação da grama úmida e cada vez mais entranhada nas minhas sensações. Nem tenho certeza da existência de algo para além disso. Como poderia? Se o que vem aos meus sentidos é uma caminhada lenta e curta através de um jardim úmido e fora do tempo cognoscível? É menos difícil explicar tudo pela simples inexistência, minha própria inexistência antes de minha lembrança mais remota. Para mim a vida real é diferente desta débil recordação e nem precisaria mais pensar nisso. Estas memórias só persistem por capricho. Para longe destes flashes insondáveis, minha realidade se impõe inexorável. Até este pensamento não surge mais do que um clarão passageiro, fugaz e está por completo à mercê dos sentidos primários. Estes sim. Estes sentidos me fazem explodir! Distante da reflexão, que não consegue passar de um esforço efêmero e até inútil, a realidade, a minha própria existência, algo como um tempo presente, está escancarada em todos os níveis. Nesta condição primária e original tudo faz sentido e tudo está conectado. Isso eu posso explicar e não ter dúvidas. Não poderia ter nenhuma dúvida de uma realidade tão intensa e vibrante. Apesar destes ecos, sussurros de uma memória estranha, a plenitude da realidade é latente. Não existe nem dor nem conforto, só existe o mais simples e direto, a existência transparente e irrestrita, como estar em uma fortaleza invisível. Tudo está latejando, desde os pontos mais indiferentes, onde quase nada pode ser sentido e só existe um fraco sinal de sensibilidade, até os menores e mais sólidos poros vitais. A intensidade de minha existência é tão fantástica que dá a impressão de imortalidade, mas sei que isto é irreal, nada tão vivo e tão caloroso pode ser tão forte e perene. Através de meu ser totalmente esticado tudo flui sem nunca parar. Sou esticado, alongado, puxado pelas extremidades, como um puxão que me retorce aos poucos, mas não deixo de sentir a pressão sólida e seca que é o principal, a solidez rude parece ser o mais primitivo, original e o próprio fim. Todas as pulsações, até as mais sutis, são compactas, quase que esmagadas, e assim as percebo por causa de sua brevidade. Só que a aspereza dominante não sobrepõe por completo e nem pode esmagar as pequenas palpitações, estes mínimos respiros, semelhantes a minúsculas gotas de vida surgindo e morrendo por todos os contornos do corpo. As frestas e poros deste corpo são perpetuamente atravessados por um som grave e monótono, raramente alterado ou entrecortado, e o corpo de limites certamente intangíveis torna-se também uma esponja, a despeito de sua dureza, e filtra e transforma a soma de todas as frequências. Da mesma forma, a dureza não impede as rápidas adaptações de todas as partes para se manter em equilíbrio quando chegam inexplicáveis as rajadas de círculos invisíveis. Porém, quase tudo isto é simplesmente refletido para longe antes mesmo de ser capturado e acaba não passando de uma carícia, uma existência inteira entregue aos afagos da dança e à probabilidade de se tornar música. Quando penso no céu e no vazio consigo perceber, ou talvez só consiga imaginar, as curvinhas mais frágeis e quase sem sinais do meu ser. É através delas que mais percebo o que acontece, é assim que consigo pelo menos ter a sutil impressão dos meus limites. Nestas extremidades de incontáveis ramificações a vida está agarrada de maneira reveladora, mas displicente, chega a ser até jocosa. E a revelação consiste, sobretudo, na combinação de sentidos, no calor e nos primeiros sinais enviados a todo meu corpo que chegou a hora de ficar mais forte. A displicência irônica consiste na fragilidade e efemeridade desta parte, projetadas em direção ao nada, em constante improviso, se esticando cada vez mais, se contorcendo às cegas tentando lamber cada baforada de aquecimento. As sensações podem ser descritas como um pulso estável, em constante renovação, como um ciclo bastante perceptível e conduzido pelo tempo. Na última ponta da ramificação mais sensível dos limites de minha extensão, é ali que posso sentir com um pouco mais de singularidade. É ali que também posso perceber a passagem do tempo. Às vezes um sinal, já bastante leve e difícil de ser notado, vai enfraquecendo ainda mais, pouco a pouco e em progressão quase perfeita, até parar por completo e por algum tempo, daquele lugar, nada existir. Agora já aprendi que isto significa um desaparecimento, aquela sensação se perdeu para sempre e dela nunca mais terei notícias. Mas, deste mesmo lugar, naquela pontinha em forma de olho, de boca e de ouvido, não demora muito para que incríveis e minúsculos estalos iniciem novíssimos e inéditos sinais, totalmente singulares e reconhecidos pela minha velha pulsação. Aos poucos procuro sentir o todo e daquele ponto exato posso distinguir mais uma faísca vibrante, acenando e aquecendo. Em certos pontos, também nestes lugares mais extremados e ramificados, acontecem coisas ainda mais raras e maravilhosas! É quando uma incontrolável urgência se impõe sobre todos os outros eventos do ciclo habitual. Todos os sentidos se desligam por alguns instantes, em total descontrole, em abandono e irresponsáveis. Dali algo novo vai surgir, algo que parece não me importar mais, mas que consigo perceber como infinitamente original e único, algo que só poderia existir desta maneira, espontâneo e indomável. E assim desabrocha escancarada a minha síntese! Todas estas impressões são mínimas e precisam ser descobertas uma a uma entre minha rigorosa solidez. O prevalecente é o que chamo de sentidos primários, pois não precisam ser descobertos, são as sensações primeiras, urgentes, a identidade pura antes do pensamento reflexivo, um estado arraigado em profundidade, sem dor e sem prazer. Estou firme, vivo, em franca existência sorvendo as entranhas da terra. Esta sim é minha condição dominante, distante das nuances, uma existência fácil de resumir, em silêncio, absorvido em indeterminada espera.



Leandro Gaertner
Gaspar e Itapema, Setembro de 2009
Imagens: Árvore e flor Magnólia-branca (Magnolia grandiflora)
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terça-feira, 1 de setembro de 2009

*Oma Irma*



O sol já subia há mais de uma hora quando uns passinhos abafados foram ouvidos na casa. A mulher põe seus chinelinhos de pano e vai um pouco encurvada pelo corredor em direção à cozinha, às vezes até parece querer se apoiar na parede, como se tivesse uma leve tontura. Passa bem devagar pelo degrau que dá acesso à copa, piscando os olhos encovados atrás dos óculos, vai até a caixa de lenha, escolhe uns tocos e os mete no fogão junto com umas folhas de jornal. A chapa começa a esquentar e um cheiro de fumaça se mistura na cozinha, ela amarra o avental espiando lá fora o pátio vazio e então coloca uma chaleira cheia de água no fogão a gás enquanto sua filha no andar de cima logo escuta as louças para o café. Quem a visse naquela manhã veria uma mulher pequena, cada vez menor, com uns 80 anos se movimentando com gestos lentos e automáticos. Para o velho corpo todo aquele ritual agora é feito com calma. A mais leve reação de um sentido é agarrada com atenção, como se fosse de importância vital, as mãos, os olhos e os ouvidos nunca estiveram tão unidos e a rotina é uma de suas melhores aliadas. Desse jeito a velhinha simplesmente continua indo em frente.
Hoje ela vive com seu marido doente que quase nunca fala e com sua filha mais velha. Para as tarefas mais pesadas ainda conta com a ajuda de uma empregada, antiga conhecida da família. O café da manhã, o almoço e o jantar são as obrigações da oma e todos os dias ela se entrega a isto com tamanha devoção que é difícil de acreditar não fazer tudo com verdadeira alegria. Nesta manhã ela tinha começado com o sol já alto, mas nem sempre acontecera assim. Muitos anos antes, também trabalhava no açougue da família ao lado da casa, quando o trabalho iniciava ainda de madrugada. Sua principal função diária era preparar a primeira refeição para os trabalhadores que chegavam de outros bairros e por muito tempo também ajudou nos embutidos produzidos no açougue. A oma, com seu marido e filhos, antigamente com seus sogros, viviam do abate de bois e porcos para a venda da carne nos mercados da região. A casa e o açougue não se separavam e o trabalho era constante, entre as duas construções passavam as cargas de lenha para o fumeiro e de animais que iriam esperar a morte na mangueira. Existia um grande movimento de pessoas entrando e saindo, comerciantes, empregados, clientes e curiosos para ver o sangue da matança. Mas isto já faz tempo e agora ela não precisa mais pular da cama tão cedo, mesmo assim, as manhãs não duram muito sem de repente ouvirmos seus passinhos em direção ao fogão à lenha.
Durante quase todo o dia a casa permanece em silêncio, as refeições até criam alguma animação passageira na cozinha e os carros mais barulhentos lembram que a estrada passa rente à fachada. Mas na maior parte das horas a casa se volta para o grande jardim, que ocupa um lote inteiro no lado oposto ao açougue, onde até poderia ser construída uma nova casa. Netos e bisnetos agradeciam por isto nunca ter precisado acontecer, o grande jardim que vai da estrada até o barranco do rio sempre fora um lugar de curiosas explorações e brincadeiras. Para as longas tardes que os velhos passam na varandinha nos fundos da casa, o jardim de grama cortada, com uma frondosa jabuticabeira, flamboyants, uma nervosa e espinhenta paineira, sombreiros e um pé de ipê, é o refúgio de olhares gastos, de pensamentos fugidios.
No início da manhã, ao meio-dia e ao anoitecer a oma prepara e esquenta a comida abnegada na sua função, enchendo a mesa com seus potinhos e pães ela parece estar totalmente absorvida em servir. Não é raro também vê-la indo rápido ao armário das louças quando chega uma visita inesperada; por nunca sair de casa, é uma anfitriã em prontidão. Um de seus netos que mora ao lado, na casa depois do jardim, a acompanhava diversas vezes nas refeições. Ele se perguntava, olhando a velhinha nas suas voltas entre o fogão e a mesa, qual seria a ligação dela com aquele trabalho todo. “Deixa oma, não precisa mais trazer nada.” Para ele, nestas horas se misturavam na atitude da velhinha a gentileza e o condicionamento. Geralmente as gentilezas estão ligadas a uma situação de extremo domínio, onde podem ser calculadas e desta forma os gentis estão no auge do controle de suas articulações. Uma gentileza pode estar cheia de preocupações metafísico-religiosas, de uma necessidade de traquejo social não inteiramente livre da demagogia, como os automatismos de polidez adquiridos nos primeiros hábitos, de uma simples bajulação ou então, a mais incrível das explicações, a gentileza como gozo narcíseo. Como o narciso altruísta que afaga seu bondoso coração ao dar espaço para outro carro entrar na fila. Mas as gentilezas da oma são de outra natureza, são atos amorosos que após tantas voltas tornaram-se reflexos amorosos. Quando ela se levanta da mesa pela terceira vez em busca de mais potinhos de comida, ela está reagindo como a dona de casa que quer servir sua família. A oma dá uns risinhos encolhendo os ombros e com passos curtos continua a encher a mesa: “Tá! Tá!”
O passar dos anos cristalizou na mulher uma essência inalterável e esta constância essencial lhe é especialmente marcante. É normal ouvir de seus filhos: “Minha mãe sempre foi desse jeitinho.” Certamente alguns de seus conhecidos mais próximos até se esquecem da sua condição de mulher, sua atitude e pequenos detalhes são tão perenes que ela talvez já seja uma daquelas pessoas transformadas em instituição. Após se casar nunca mais trabalhou fora de casa, exceto no açougue da família. Sua educação se reflete muito nos moldes do século XIX, experimentando como esposa e três filhos as singularidades de uma família patriarcal e, durante toda sua longa vida de casamento, o que significa a maior parte de sua própria existência, ela voltou suas atenções para os entes familiares. Como os outros, que não podem mais enxergá-la como uma unidade autônoma, ela também parece não ter conhecimento de nenhuma vontade exclusivamente sua, com exceção de algumas pequenas vaidades como uns brinquinhos ou um pouco de maquiagem. Assim, tão mergulhada nesta micro-comunidade, um de seus únicos desejos demonstrados é o de ficar em casa.
Para seus muitos descendentes a convivência com a oma é de uma candura dificilmente perturbável, a simplicidade dos modos e das coisas que diz a torna muito querida. O seu jeito reto de interpretar já causou situações divertidas na família. Uma noite quando estavam assistindo o jornal da TV, o jornalista anunciou o lindo gol de bicicleta que seria mostrado no próximo bloco depois dos comerciais. Ninguém se mexeu nessa hora e no final do jornal a oma ainda continuava de olhos atentos na televisão. “Eu não vi nenhuma bicicleta entrando neste jogo!” Ela denunciava a falha do repórter com seu sotaque dos antigos colonos.
Todos os natais a oma prepara diversos envelopes com dinheiro para presentear seus netos e bisnetos. Uma vez, na correria para arrumar tudo em um natal especialmente agitado, quando até o Papai-Noel apareceu, ela acabou escondendo o montinho de envelopes num lugar muito seguro. Seguro até mesmo da sua memória! Quando a perda foi anunciada em desespero, uma verdadeira e desenfreada caça ao tesouro começou por toda a casa. No meio da correria uma das noras avistou o montinho cuidadosamente encaixado debaixo do forno de micro-ondas.
Nas conversas durante as refeições as coisas precisam ser ditas com clareza para poderem ser processadas pelo jeitinho simples da oma, ela não raramente troca as histórias que são contadas com atropelo. Uma vaga concentração acentua sua ingenuidade e o resultado é um entendimento muitas vezes simplório das novidades. Mas isto não é maior que seu entendimento geral sobre as coisas, que de tanta constância está sólido numa coerência de valores invioláveis. Não importando os entremeios, ela quer todos os seus unidos e felizes até o final.
Nesta tarde depois de seu descanso do meio-dia, a oma recolhe algumas camisas e panos pendurados no pequeno varal atrás da casa. Leva a pequena pilha de roupas até o quartinho da frente e começa a passar com rapidez, dando batidinhas com o ferro aquecido, na mesma hora em que a filha sai de carro e o marido dorme no quarto ao lado. Por ele estar doente precisaram mudar sua cama para este cômodo no piso de baixo, o velho homem mal pode subir as escadas e passa a maior parte do dia dormindo ou sentado na varanda.
É um meio de tarde aprazível de outono. A casa possui vários cantos escuros, tapetes, móveis escuros e antigos que a tornam sóbria, quase sombria. Pela porta preta da sala de visita, um pouco pelas janelas da cozinha e por outras frestas indefinidas entram os raios de sol avermelhados e oblíquos. No quarto onde está a oma, bem de frente para a movimentada estrada de asfalto, a luz entra com toda a força, esquentando e abafando o ambiente. Este barulhento quartinho aos poucos fica morno e com um cheiro forte de roupa passada e ali a oma repete os movimentos de dezenas de anos, alinhando as roupas com cuidado, dentro de seus pensamentos.
Quando volta pelo corredor escuro em direção aos fundos da casa, sente nas pernas o arzinho frio vindo da cozinha. Vai recolher o resto da roupa seca e escuta a sinuosa e aguda melodia de um instrumento musical passando pelo jardim. Também se misturam no ar os sons da serra elétrica funcionando no rancho e as rolinhas ululando sobre sua cabeça nos longos galhos do sombreiro. O homem que realiza trabalhos para a casa está serrando a lenha no rancho, ele é um solitário que desaparece de tempos em tempos e volta em busca de pequenos serviços, quase mudo por uma gagueira que arrasa a língua e lhe é intransponível, permanece em estado de embriagada serenidade, convivendo com a possibilidade da indigência. A oma entra na casa carregando nos braços a roupa que vai passar, mas antes ajuda o marido a levantar-se da cama e o acompanha até uma cadeira na varanda. Ela lhe oferece água, falando seu nome com uma voz estralada, acentuando levemente a primeira sílaba. O marido concorda silencioso com a cabeça e vira o copo cheio de uma só vez, depois de saciado estica o braço com o copo vazio e solta o corpo lentamente. Então ela resolve deixar as roupas para passar outra hora e senta ao lado do opa na varandinha atrás da casa, com vista para os fundos, para o pátio, o rancho e o jardim. Enquanto ele já vai cochilando ela se curva na leitura da bíblia sobre os joelhos fininhos e desta maneira eles ficam ali, aguardando o retorno da filha.
A tarde passa com a copa das árvores mais altas alaranjadas pelo sol descendente e bem nesta hora a grama começa a ficar gelada se andamos descalços. Quando o carro finalmente reaparece pelo calçamento atrás da casa, a oma se levanta ligeira e vai esquentar a água. A filha chega falante com alguns papéis e caixas de remédio; ela tem trabalhado bastante pelo velho pai e também quase nunca sai de casa, é o contato com os médicos e com o mundo exterior.
Uma pequena toalha é arrumada até a metade da mesa e a oma coloca os potes de doce e geleias, ajeitando com cuidado a louça para três pessoas tomarem o café. O opa é levado pela mão passo a passo até seu lugar e espera para ser servido, agora os três estão sozinhos na penumbra da copa-cozinha. Algumas perguntas em voz mais alta são feitas ao homem sentado: “Pai! Já tomou o remédio?” “Onde está o remédio?” As duas demoram a se juntarem à mesa. “Pai! Sabe quem morreu ontem? O Willy Becker.” A oma encobre a boca aberta com as duas mãos e olha com atenção para a filha, o velho levanta o olhar profundo e triste por um instante e, num longo suspiro, volta a encarar o tampo da mesa com sua xícara enorme. Eles ficam ali sentados por pouco tempo e conversam apenas algumas frases. A filha elogia o doce da Helga, a velha oma diz que amanhã precisa acabar de passar a roupa.
Depois de lavar a louça vai até o velho rancho de madeira pegar uma enxada. A oma quase sempre usa vestidinhos até os joelhos e chinelos que aparecem os dedos do pé, ela caminha pelo pátio ainda mais arcada e encolhida que de costume, como se fora da casa se sentisse menor do que já era. Entre devaneios sem fim, pensa no velho de sua geração que morrera ontem e calcula aliviada que ele era mais velho do que ela. Passa entre o rancho e o viveiro abandonado segurando a enxada para baixo. O viveiro está cheio de plantas crescendo em liberdade em vasos de plástico e de barro, trepando pelas grades deterioradas ou plantadas no chão, a maior planta é um fícus que fugiu do controle; que copa mais cheia, que esconde poucos ou nenhum ninho e onde se vê de noite os gambás passeando pelos galhos. Mais atrás no jardim, antes de chegar ao barranco do rio, a oma entra pelo portãozinho que se abre para o antigo galinheiro, agora um grande quadrado cheio de mato bem alimentado crescendo sem piedade. Dentro do antigo galinheiro ela consegue ver de um lado a caixa d’água de cinco metros de altura torta como a Torre de Pisa, “se ela cair, o rancho vai junto.” Do outro lado, o alto muro que separa seu terreno da casa do seu filho mais novo, onde agora moram dois de seus nove netos. A velha se entorta um pouco para frente e começa a arrancar o capim com a ferramenta, a terra escura tem algumas pedrinhas que fazem um som forte a cada golpe. Ela trabalha devagar e com movimentos regulares, franzindo um pouco o rosto e após capinar alguns metros aparenta estar alheia ao que acontece fora de sua atividade.
Todo o cenário, que vai do pátio do antigo açougue e sua mangueira abandonada, o rancho velho que serve como garagem e depósito de ferramentas e velharias, a grande casa cheia de vasos bem cuidados, o comprido jardim e o barranco do rio, é onde a oma passa seus dias. Nestes lugares ela preenche seu tempo com pequenas e constantes lidas. Para um observador desatento pode ser difícil notá-la andando pelo quintal, mesmo se ela estiver bem à sua frente, no meio do jardim na coleta de acerolas. A oma já se confunde com seu próprio espaço, seus canteiros, sua casa e suas árvores. Mas, para um observador atento, a velha mulher de dedinhos nodosos é transcendente. Percebê-la andando entre os arbustos e flores é como ver algo importante no último instante, um pouco antes de desaparecer. É um privilégio! Escutar as pancadinhas de sua enxada no outro lado do muro é uma alegre surpresa, é como um pensamento inesgotável, porém suave e sem enfeites, “a oma agora está capinando...”
Antes de escurecer completamente a oma já tem os trabalhos para a janta bem adiantados. O dia termina com a última novela, às vezes até mais cedo e as conversas com a filha são breves e funcionais, as portas são fechadas e os pássaros do jardim e do telhado se aquietam. Se passar alguém andando muito devagar pela estrada o cachorro vai latir e arrastar a corrente pelo calçamento do pátio. Em algumas noites se podem ouvir miados lamentosos por toda vizinhança e outros cachorros ou ainda algum silvo arrepiante vindo de longe pelos lados do barranco do rio. Quem espera na sala ou fica parado no corredor escuta seu próprio coração batendo e a casa não reage mais. As lâmpadas são fracas e os cantos se enchem de esconderijos fazendo esquecer as formas que poucas horas antes eram iluminadas, o tique-taque seco do relógio de parede deixa o silêncio ainda mais evidente. Também existe um outro grande relógio de estimação pendurado que não funciona há incontáveis anos e olhar para aquela caixa de madeira escura com os ponteiros parados causa um estranho desconforto. O fogão à lenha está esfriando, mas na cozinha ainda dura um pouco do cheiro de fumaça; quando crianças, netos e bisnetos tinham medo da casa nesta hora, parecia que o ar nos pés ficava cada vez mais gelado obrigando todos a irem para seus quartos, quase dava para ver os fantasmas - a casa estava transformada.
A oma se prepara para deitar, satisfazendo as últimas exigências de sua rotina, anda para o quarto iluminado no fim do corredor e ainda escuta a filha fechando as janelas lá em cima. Logo vem pronta do banheiro com os cabelos soltos e de camisola. O marido já dorme profundamente quando ela se ajeita no travesseiro e estica o braço para apagar a luz.

Com amor para Irma Wiese Gaertner





Leandro Gaertner
Blumenau e Gaspar, Fevereiro de 2006 e Janeiro de 2007.


Imagem: Manhã com névoa (Alfred Sisley 1874)

PS. No dia em que resolvi ler este texto para Oma, anos depois de ter escrito, ela disse que quase tinha perdido meu pai na hora do parto, disse que ele tinha nascido muito roxo. Ela suspirou e disse “Ainda bem que não perdi...” Se ela já tem essa sensação de alívio, imagina eu.


terça-feira, 18 de agosto de 2009

R E C I F E

Eita... Sei que Recife merece mil blogs e mil páginas, todos a todo vapor no esforço de captar um centésimo de sua essência... agora distante vejo aquele aglomerado de gente na ponta do continente como uma jóia verde e caudalosa, ardida e morna, acho que um dos lugares mais escancarados do mundo e por isso insondável. Não teria a profundidade necessária para desnudar todas as sutilezas daquela querida terra dos altos coqueiros e dizer quase tudo em três palavras como Aslan Cabral "Quente, Pobre e Feliz", nem resumir tanta amizade como o sorriso do Rico ou tanta musicalidade quanto o bandolim do Beto ou encerrar tanta displicência quanto o garçon do Arriégua, só posso brincar de comparar e com isso eu me divirto.
Nos primeiros cinco minutos no bafão já comecei a brincar disto e não parei mais, mas não demorou muito para entender algumas coisas e assim levar meus meses em Recife, atento e admirado. Vivia à caça de estranhezas e belezas, como toda cidade grande cidade, aquele clarão encalorado de Pernambuco só oferece e mostra e esbanja e vomita e afaga e espeta e quase nada esconde.
Não foram as lindas pontes, nem o cotovelo enferidado do Capibaribe, que mais amei, foi um grupinho de taxistas em volta de um radinho ouvindo frevo na pracinha desgrenhada da Várzea, entre um Brenand e outro, foi o laguinho da federal brilhando arejado e decorado de flores. Aquele tropical absurdo quando saímos de uma sala do Conservatório Pernambucano de Música ou do CAC, ou o vento assanhado rasgando pelas frestas do CFCH, o pequeno jardim do Éden ou das Carícias ou das Formigas ou dos Gatos, o ar fresquinho da Várzea, longe do centro e dos prédios de Casa Forte.
No shopping em Boa Viagem tive que usar o GPS ou me deixar levar pela Cambica até os vapores cafeinados da Casa do Pão de Queijo ou nos perdermos juntos em sonhos distantes na TokStok, depois abraçar aquela luazinha fraquinha de dentro do ônibus, satisfeito.
Macaxeira hoje.... How i met your mother.... onde mais isso poderia coexistir balançando na mesma rede? Vai barracão... vai Brubeck cheio de vinho e veritas, duas mulheres lindas na minha frente, risonhas, uma branca, quase ruiva, e uma morena, quase índia, duas heroínas, lindas e amorosas, corajosas, o melhor já feito em todas as latitudes!
Recife é para lavar a alma, passar calor, tropeçar no lixo, cantar Mozart com toda força, comer camarão, pizza, correr pro Barro-Macaxeira, engarrafar nas calçadas da Boa Vista, desfilar maracatuéreo pelo Recife Antigo, olhar para os lados, tocar flauta em castelos, beiçar a Jureminha, ler e escrever, é a casa de Nossa Senhora do Ó, é lá que parei para poder voar, voar nas ideias e também para outras terras. Recife não deixa nós nos perdermos nos extremos da Finlândia ou do Haiti, ainda bem que Recife existe!


Leandro Gaertner
Tapira, Agosto de 2009.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

DIÁRIO DE VIAGEM - Inglaterra 1996

“Quando os primeiros raios de sol apareceram, também saíram dos esconderijos os esquilos e até uma lebre. Fiquei sentado nas raízes do carvalho escrevendo o diário e sentindo que a floresta estava diferente agora. Algo tinha mudado... Tudo que havia sentido no fim da tarde anterior já era distante! Os calafrios haviam passado e estava feliz, pois naquela noite deixei de ser só um visitante da floresta...”

Dia 53
Escrito na Floresta de Sherwood

Agora estou deixando Manchester com uma ótima impressão da cidade. Afinal tive uma perfeita e silenciosa noite de sono! O albergue está super vazio, pois é segunda-feira normal, estou matando aula. Não entendo minha forma de avaliação pra uma cidade, mas de Manchester eu gostei. É uma Curitiba sem aquela favelança do subúrbio, não é limpinha mas também não é suja. O centro é Curitiba de corpo e alma. Estou a caminho de Nottingham, no centro do país, dizendo tchau pra minha primeira sessão de cinema na Inglaterra.
Cheguei em Nottingham para o almoço às 12:00 horas. Depois fui até o centro municipal de informações para saber como ir até a Floresta de Sherwood. A moça do balcão explicou e fui conferir o que restou do Castelo de Nottingham com a estátua de Robin Hood. Já tinha resolvido pegar o busão das 14:00 horas. Tudo resolvido... Dei aquele passeio no castelo, nos jardins, tirei fotos, falei com dois senhores que era do Brasil – a mesma coisa de todos finais de semana... + ou – 13:30 voltei para a região do Centro Vitória onde sabia ser o ponto. Procurei, procurei, não achei nada! Voltei para as informações puteado, mas falei normalmente com o recepcionista. O indiano deu-me outro mapa e agora entendi. Foi cagada minha não encontrar a estação certa do ônibus 33 para uma linha que passa perto da Floresta de Sherwood. Achando a estação correta peguei o ônibus correto às 15:35. Queria voltar logo para pegar o trem das 19 horas...

(Depois eu continuo pois já está muito escuro, preciso tentar dormir!!!)

Resolvi continuar ainda hoje pois este momento é único!!!
A floresta é mágica, impossivelmente penetrante, cativante, a sensação de estar aqui, deste jeito como estou é nova, original, natural, completa.

Total!!!

A escuridão vai tomando conta e é difícil enxergar, mas faço pela importância desta noite para minha recordação futura... Tenho um pouco de receio pela noite que cai sobre as folhas. Espero não chover, é tudo fantasticamente excitante. Minhas mãos cheiram a barro e grama, estou sujo, minha roupa muito. Deitado no desconforto estou mais confortável como nunca estive. Olho para cima, o carvalho antigo está imóvel com os finos galhos balançando ao vento. Sinto algumas gotas caindo do céu cinza querendo escurecer... Estou feliz por poder estar aqui, feliz por viver com saúde e poder fazer o que estou fazendo!!!
Nunca mais esquecer este instante que gostaria compartilhar com a família. Sinto-me quase completo, é incrível, inexplicável...

Eu amo viver !!!!!!

Boa noite na Floresta de Sherwood
10:20 hs PM

AMANHECEU
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Cheguei na floresta 16:20 h, apressado, quase volto pro ponto para pegar o próximo ônibus de volta para Nottingham. O ponto fica num vilarejo chamado “Edwinstowe, Royal Oak” e fica distante da entrada da floresta + ou – 1 Km, techo que fiz a pé. Quando vi que a Floresta de Sherwood tem muito a oferecer, decidi pegar o busão das 6:30 h. Então comecei a andar pelos rumos, o parque está quase vazio, apenas algumas pessoas, pois é meio da semana... Seguindo as placas cheguei até o “grande carvalho”, continuei andando e sendo dominado pela lenda. Quando já ia saindo vi um aviso numa pequena placa explicando ao turista que não é obrigatório só andar nos trilhos feitos, é permitida explorações aos segredos da floresta...
Comecei a andar mato adentro. Esta florestas na Inglaterra não podem ser chamadas de mato pois são bem abertas, árvores grandes (carvalhos) e distantes. O solo é coberto por uma espécie de gramínea com várias espécies de plantas pequenas como a samambaia. Andando entre as árvores, resolvi escalar um carvalho. Tentei no primeiro que pareceu fácil, mas não consegui. Atravessei uma clareira, escolhi outro carvalho e consegui chegar ao topo. Ele é meio inclinado facilitando o meu desejo. Queria tirar uma foto do alto da árvore, mas chegando no topo com muito sufoco, vejo que os galhos tampam a vista, não é o carvalho ideal. Além de ter acabado o filme de 24 poses e não 36, como pensava. Minutos antes de começar meu passeio fora do rumo, quando já ia saindo do parque , vi um círculo de pinheiros grandes, densos e escuros, formando uma perfeita cabana no centro. Me passou pela cabeça pela primeira vez a possibilidade de dormir na floresta... Ri, mas achei sério e possível.
No alto do carvalho, sentindo toda aquela adrenalina pensei mais sério ainda sobre dormir no mato. Por quê não? Por quê não? Desci da árvore e continuei refletindo sobre a possibilidade. Via só três aspectos negativos: “aula amanhã, sem fotos, não poderia mais enganar o cobrador com a data do passe de trem”. Fiquei uns 15 minutos no pé da árvore tentando bolar saídas para ainda conseguir falsificar o Brit Rail. Muito bandido! A pergunta ainda ficou no ar e voltei pensativo e sorridente para a vila Edwinstowe. Como achava que o filme era de 36 poses, nem olhei e, quando a câmera pifou no alto do carvalho, pensei que era problema da pilha. Fui até um bazar, troquei as pilhas, que realmente estavam fraquejando, descobri que o maior grilo era com o filme e troquei. Perfeito! Segundo problema resolvido. O primeiro, o da aula, nem levei em consideração... Sem perceber eu torcia para não encontrar motivos para ir embora. Tudo me veio à mente, inclusive voltar semana que vem, especialmente para dormir na floresta. Logo descartei pois não seria a mesma coisa, não seria natural! Voltei para o ponto de ônibus, tinha comprado uma passagem com returno. Precisava daquela viagem de 45 minutos para pensar mais. O cérebro esta a mil!!! Aos poucos as chances de dormir ao relento pela primeira vez foram aumentando... Comecei a seguir outra linha de pensamento após resolver o terceiro problema. Em relação aos passes de trem, que me deixou um tanto apreensivo, descartei: “Eu não vou perder dinheiro, só não vou ganhar!”
Levando em conta o lado bom, me achei imbecil de ter vacilado fazer algo tão único por dinheiro ilegal, ainda por cima. Estava decidido!!! Passar a noite do dia 3 de junho para o dia 4 de junho, a céu aberto, na Floresta de Sherwood!!! Uma decisão muito maluca, que saiu não sei de onde, mas importante pelo puro e simples ato do pensar e fazer, deixando acontecer. Em Nottingham comprei meu jantar no McDonalds, fiz tudo rápido para pegar o próximo ônibus. Quando o motorista me viu de novo até ficou pasmo... É o melhor motorista que já conheci, muito legal e assobia todo o percurso. No caminho de volta para Edwinstowe, como já claramente iria dormir no mato, fui pensando como dizer pra mãe no telefone na quarta-feira. Só rindo... Desci do ônibus e comecei a caminhar rumo à aventura. Estava me sentindo tão bem andando pela estrada rumo à floresta que é impossível por nesta agenda todo complexo sentimento. Precisaria de páginas, muitas páginas para tentar pôr no papel o que pensava naquele momento.
Chegando, no estacionamento ainda tinha alguns carros, apesar de ser 20:30, algumas poucas pessoas passeavam. Ainda na entrada fiz uma cópia à mão muito rudimentar do mapa do parque onde os turistas tem acesso. Estava pronto para fazer a parte mais legal: procurar um bom lugar para se aconchegar. Andei um tempinho pelos rumos, sempre completando o mapa que fiz na agenda. Parei num ponto que pareceu bom, pulei a cerca e entrei no verde. Nem procurei muito e já achei o lugar ideal. Um lugar limpo, sem samambaias, apenas um capim macio. Para dar mais emoção decidi que iria dormir no pé de um velho carvalho. Como solo é bastante humoso poderia ter arrancado muitas pequenas árvores para me camuflar melhor. Não o fiz, estou num parque ecológico. Escondi minha chamativa mochila debaixo de uns arbustos, catei algumas folhas e fiz minha cama. Exatamente 21:40 estava pronto para dormir, até escovei os dentes com o gelo derretido no copo de coca-cola do McDonalds.
O lugar que escolhi é + ou – distante do rumo usado pelos turistas, fica no meio do espaço que existe entre estes caminhos. No mapa no final da agenda, talvez a visualização seja melhor...
Comecei a escrever ainda noite, tive que parar às 10:20 pela escuridão. Não total pois a lua está cheia. Animal!! Que momento, que lugar... Deitei já com a gota do orvalho pingando de leve das árvores. Abri o guarda-chuva e coloquei sobre as pernas. O corpo estava bem protegido com a jaqueta e o capuz. Tentei dormir! Não deu! Já esperava por isso mas ignorei. O frio apertou, levantei, peguei minha mochila e usei ela para tampar um quinto das minhas pernas! Sabia que dormir em si, seria a pior parte. Ao ar livre na Inglaterra não é muito aconselhável. Dormi mal mas realizado... Ou melhor só cochilei, para dormir precisaria de um cobertor.
Agora estou na raiz do meu carvalho, querendo deixar a floresta e voltar para a civilização. O nascer do sol está sendo lindo, acompanhado por esquilos e até uma grande e ligeira lebre. Sem contar com a passarinhada que começou logo no primeiro clarão, às 3:30. Tudo isso, mais a realidade fora do papel, cheiro frio, emoção, gerando uma infinita satisfação...
Estou deixando a floresta de Sherwood, uma decisão simples, prática, unida a muita vontade de fazer. Nunca mais poderei esquecer tudo que aconteceu nesta autêntica Grãventura!


ADEUS PRA
f l o r e s t a ! ! !
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Dia 54
Escrito no trem e em Brighton


Consegui mudar totalmente minha rotina. Minha viagem fez por merecer o nome de batismo. Fiz a diferença entre eu e os outros turistas! Poderia ter perfeitamente ido pra casa, planejado melhor com cobertor, comida, etc. Mas jamais seria a mesma coisa, assim de supetão é melhor, tudo acontece por acontecer acontecendo. É tudo muito doido!!!
Quando no ônibus ontem, a caminho da noite na floresta, tinha receio, mas conseguia saber porquê. Hoje sei que estava com medo de mudar o planejado, mesmo sabendo que seria uma experiência inesquecível... Simplesmente não pensei mais em coisas ruins, sempre procurando enxergar o lado bom. A decisão de fazer foi imediata e fulminante. A condição de pensar n o realizar ou não realizar foi rápida, uma hora e meia, a consciência de ter medo ou não durará sempre durante toda a vida. O detalhe desta vez foi o de escolher a coragem, uma coisa pequena que poderá servir como exemplo para meu futuro. Quando tiver uma oportunidade única, diferente, lembrarei da minha indecisão de ontem e optarei pela confiança! – Nunca pensei que teria uma segunda-feira tão legal!!!
Nesses últimos dois dias meu diário está numa divertida confusão... Quando “acordei” hoje na floresta com os pássaros, escrevi muito, aproveitando o embalo da situação. Tive bastante tempo para pensar pois ainda era muito cedo 4:30 AM, tudo fechado. Fiquei lá sentado junto à árvore, sentindo cada segundo com o mistério, lenda, magia e esquilos. Num desses instantes escutei um barulho no mato, olhei pra trás e vi um coelho gigante sair da moita. Meu primeiro reflexo disse ser um bambi, depois caí na real e me conformei com uma lebre papa-léguas.
A floresta inteira ainda estava um pouco úmida pela noite, eu, úmido e gelado. Numa próxima vez um cobertor será bem–vindo. Valeu cada milésimo de segundo, cada respiração naquele ar puro será importante pela decisão... Creio que muitos frutos nascerão partindo destes pensamentos, novas opiniões surgirão, tenho certeza que serão legais como foi minha primeira noite ao relento. Estreando melhor, só duas vezes: “Debaixo dos galhos de um antigo carvalho na lendária Floresta de Sherwood!!!”
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Após deixar “meu lugar” ainda escalei um tortuoso carvalho na beira de um dos rumos principais. Tudo para tirar fotos, um filme de 24 poses somente para minha louca pernoite. No caminho de volta pro vilarejo senti-me bem, não estava tão no bagaço como esperava ontem. Mas também não estava nas melhores manhãs. No ponto de ônibus via várias pessoas andando com mangas curtas e eu ainda tremendo um pouco, mesmo usando a jaqueta. Comi sanduíche com tody e nada de ônibus. Esperei 2 horas quando finalmente apareceu o número 33 para Nottingham. O motorista só parou porque acenei, ele disse que o ponto é em outro lugar. Ontem o motorista do assobio falou que o ponto era aquele no qual havia estado durante as últimas 2 horas. Das 7:30-9:30. Não poderia saber que cada motorista escolhe seu ponto... Paciência! Fui no andar de cima, dormindo e pescando esquilo. Em Nottingham só deu tempo para almoçar, comprar passagem para Londres e embarcar no trem às 11:30, pois tudo é longe e tenho que andar. Não mexi no número 3 no passe Brit Rail; semana que vem eu falsifico. Paguei £28,00 até Londres, de onde quero ir de busão até Brighton. Para mim a viagem Londres-Brighton tem que ser de ônibus, é histórica, afinal foi assim que tive meu primeiro contato com a Inglaterra...
Durante todo este tempo estou escrevendo no trem, treme bastante e é neguinho com celular pra todo lado... Chegando em Londres fui direto pro metrô, destino estação Victória, mais próxima da rodoviária. Peguei o busão das 14:30 para Brighton. O calor em Londres está animal, cheguei a suar no ônibus. Durante a viagem “dormi” bastante, como no trem. Estou bem mas com sono, tenho disposição mas quero dormir... Coisas de Sherwood.
Quando contei para Mrs. Hallifax minha aventura ela quase teve um ataque de tanto que gostou, não parava de repetir elogios, colocando muitos lados positivos no feito, toda hora retomava o assunto floresta!!! No livrão ilustrado da Mrs. Hallifax tem uma foto do amanhecer na floresta de Sherwood. A foto tem aquele solzinho penetrando devagar nos carvalhos com um pouco de neblina, vendo aquilo senti um aperto no coração pois não sei quando verei aquilo de novo! Toquei flauta, senti o conforto da casa, mas meu coração agora é feito de
Lendas e Aventuras !


Leandro Gaertner
Junho de 1996
P.S. (Texto copiado sem alterações de minha agenda "Diário de Viagem"; viagem que fiz com 18 anos, morando 3 meses na Inglaterra e viajando 1 mês pelo continente europeu - França, Alemanha, Suíça, Itália, Grécia, Holanda, Bélgica, Áustria e Espanha. O diário completo possui 122 dias escritos.)
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terça-feira, 28 de julho de 2009

! in cannabis duplum veritas !

“Disse também Deus: Eis aí vos dei eu todas as ervas, que dão as sua sementes sobre a terra;..., para vos servirem de sustento a vós”. (Gênesis 1: 29)


Quero que este seja um autêntico texto de blog, então tenho pouquíssimas linhas para falar das minhas impressões sobre a cannabis sativa, uma plantinha, que apesar de tão esclarecedora, estar ela mesma sempre na confusão. Não irei aqui desnudar as tramoiadas históricas que conseguiram transformar este simples verdoláceo, talvez um primo distante do aipim, um dos heróis do Sexto Dia, das velas das grandes navegações, dos vestidos renascentistas e das primeiras folhas impressas em um ícone mefistofélico cucaracha da meliância, no óbvio causador da guerra urbana, no demônio da juventude. Agora só terei tempo para algumas rápidas reflexões, mas que talvez consigam chegar a maconheiros e não-maconheiros do meu alcance.

Não sei porquê, quando penso a maconha na televisão penso no casal que apresenta o Jornal Nacional. Acho que na TV este é o tipo de espaço que ela consegue, uma noticiazinha lida com uma certa eloquência pela apresentadora, geralmente de uma apreensão feita na estrada, de uma carreta com toneladas apreendida na BR-101 em Pernambuco; com aquela carinha de moralista (ergue-se de leve uma das sobrancelhas) na notícia da maconha e uma variação daquela carinha, agora um pouco mais inteligente (cerra-se um pouco os olhos elevando o lábios quase num biquinho) e menos moralista na leitura do mercado financeiro.
Já quando circulo em liberdade pelo bioma internético, me parecem primordialmente coexistirem dois tipos bem distintos de formadores de opinião, e digo formadores de opinião, pois eles são realmente bem lidos e ouvidos. Um grupo é o de intelectuais remunerados para darem suas opiniões em lugares oficiais, como as colunas semanais. Apesar de invejar um pouco sua fama, não poderia invejar o seu cinto de castidade. Do outro lado, existe o grupo dos que escrevem sem os apertos e desconfortos do cinto, porém são semi-analfabetos, geralmente no Orkut, que não conseguem escrever mais de duas frases sem usar “Tá ligado?” “Fmz é nóis qui solta a fumassa pru alto!” A essência da maconha não é explorada por nenhum destes grupos.
Para delimitar minhas considerações, preciso falar da essência da minha maconha. Apesar de não ser um dos mais indicados para esta função, por não ser assim um fumador tão regular e experiente, posso afirmar até com um tom de felicidade que desde meu primeiro pega, há uns 10 anos, tenho a mesma boa impressão. A essência dos efeitos desta plantae é boa e não destrutiva. Recomendo um encontro com a cannabis tanto quanto recomendo um banho de mar.
Apesar de ser essencialmente boa, tenho que admitir que fico um pouco cansado quando fumo. Não é fácil ter tantas janelas abertas na mente e tantas ideias desnudadas. Parece que algumas áreas restritas do inconsciente são temporariamente abertas à visitação e o encadeamento de raciocínio tem o seu percurso ampliado em algumas etapas, como se o muro inexorável da desconcentração e efemeridade demorasse mais para aparecer. Com certeza podemos nos embrenhar mais na mata fechada de uma ideia complexa, achar vários caminhos, clareiras e soluções mais razoáveis.
Pouco se fala dos efeitos intelectuais da cannabis, deste atalho para pensamentos superiores e alargados. Poderia até dizer que ela facilita um pensamento reflexivo de terceira ordem, Pensar como se Pensa o Pensamento, o Pensar³. De repente a fila destes Pensares podem ir ainda mais longe, talvez inferir sobre nosso próprio futuro se pensarmos que somos puro potencial. Mas é verdade que este atalho não é assim tão fácil de ser encontrado, ele requer um esforço. Pode acontecer de fumar um pouco e não sentir nada de especial, mas nestes casos recomendo a versão brigadeiro. Sim senhor! Comer chocolate é melhor que inspirar fumaça...
No meu caso, não estou sempre disposto a este esforço de pensamentos ao cubo, não diria que esta disposição é diária e nem mesmo semanal. Porém, uma vez que aprendemos a acessar certos atalhos do pensamento, podemos voltar a eles pela memória. A maconha nesta perspectiva passaria a ser uma “conselheira”, bem aos moldes dos ritos antigos, usadas em momentos escolhidos e especiais, sozinho ou em grupo, para ouvir música ou para conversar, para observar as coisas ou fechar os olhos, ou ainda tudo isto ao mesmo tempo. Eu me interesso por este olhar, um tanto conservador eu sei, mas não moralista, da maconha. Mas este sou eu com a maconha, ainda mais introspectivo e tentando aguçar a tosquice dos meus sentidos. Assim posso dizer que amo esta plantinha!


Para quem não gosta ou não pode fumar, segue a seguinte receita:


Brigadeiro de Maconha ou Choconabis

Ingredientes:* 5 g de maconha (solta ou prensada);
* 5 colheres de manteiga;
* 1 lata de leite condensado;
* Achocolatado a gosto;

Procedimento:Siga os mesmos passos do preparo do brigadeiro normal. Porém, coloque a maconha junto com a manteiga em derretimento e deixe que ela frite um pouco para liberar o THC, mas retire do fogo antes de queimar. Depois peneire a manteiga, pois você não vai querer um brigadeiro com pedacinhos de mato. Coloque esta manteiga chapada na panela com o leite condensado e o achocolatado de sua preferência.

Efeitos:
Não exagere na dose (mais de três colheradas) se você tiver compromisso nas próximas 5 horas.



Leandro GaertnerGaspar, Julho de 2009.
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domingo, 19 de julho de 2009

Uma breve história de Deus

Esta imagem é a capa do Disco Dourado, enviado para o espaço a bordo da nave Voyager em 1977. Na superfície em ouro está desenhado um manual de instruções para acessar a tecnologia do disco. O disco é um registro da humanidade, sons do planeta, imagens, as ondas cerebrais de Ann Druyan, música e a saudação em 55 idiomas.

Intróito
Antes de começar a leitura deste texto é importante que o leitor seja alertado quanto às limitações de conhecimento histórico específico do escritor sobre esta mirabolante criatura antropomórfica (segundo a usual metáfora cristã) ou então sobre esta onipresente força cósmica (segundo Star Wars), também conhecida e requisitada em português como Deus. Por outro lado, é bom que o leitor esteja tranquilo, pois a carência de uma pesquisa aprofundada sobre a história de Deus não descarta a auto-confiança exacerbada deste autor, que irá utilizar dos meios que já lhe são habituais, um amálgama perfeito entre a humildade e o sarcasmácido. Neste texto irei ainda mais longe na auto-confiança, bem provavelmente, para alguns que me conhecem, ultrapassando a fronteira do bom senso e me tornando ingenuamente arrogante. Digo isso para advertir sobre uma sensação (por causa da humildade ainda não uma certeza) que me apoderou finalmente aos 31 anos, após centenas de livros, filmes e pessoas, a sensação de que poderia entrar num debate sobre Deus com o próprio Papa Bento XVI. Digo isso por que acho que entendo mais de Deus que o próprio Papa... ainda mais por ter descoberto que daqui a quatro anos nós, eu e o Papa, teremos estudado na mesma escola. É claro que o tom humorístico permeia quase tudo neste texto, com exceção da minha recente adquirida serenidade. Mas quem conhece Hermann Hesse sabe que o humor é o equilíbrio entre o homem e o lobo, uma saída que mantém a integridade quando não suportamos a mediocridade do homem comum nem queremos correr os perigos de um afastamento total experimentado por alguns gênios. O humor sempre é a coluna do meio. Contextualize, se um cara da Coloninha já está falando isso do Papa é sinal que a Terra continua dando voltas.

Um pouco mais sobre igrejas
Voltando a Deus, quero também dizer que considero este pequeno texto mais do que um golpe de humor e relaxamento, e sim um texto de utilidade pública, mesmo que para um público bastante restrito, visto à pequeníssima fama do autor. Eu não poderia enumerar e dissertar com erudição sobre todas as formas já assumidas por Deus desde os primeiros lampejos do pensamento caracteristicamente humano, tarefa que a teologia deveria se ocupar (pelo menos daqui para frente), e não o que faz desde a idade média, algo como a busca da sabedoria num conjunto de livros antigos. Na verdade seria mais correto mudarmos o nome. Se a inteligência humana fosse realmente suficiente, já teríamos abolido a teologia antes mesmo da virada para o século XX, chamando este campo do conhecimento de “história das crenças humanas”, ou algo parecido. O próprio nome teologia seria um verbete a ser investigado. Nada mal para alguém doutrinado entre o catolicismo e o luteranismo, como eu, sair zombando dos dois grandes orgulhos destas organizações ocidentais, um líder popular e uma escola séria, inclusive sendo estes orgulhos a melhor arma com as quais beatos dos dois lados se digladiam. Um líder popular descontextualizado, o que o torna irresponsável (aprofundarei esta observação logo adiante), e uma escola séria, se ainda tivéssemos o conhecimento do século X, o que a torna falaciosa no século XXI.
Não quero aqui neutralizar por completo os esforços genuínos das denominações religiosas, nem das mais estruturadas como a Igreja Católica ou a Igreja Luterana nem das mais improvisadas como a Assembleia de Deus ou Universal do Reino de Deus (me desculpem estas duas últimas, mas nunca ouvir falar nem de algo que se pareça com um Papa nem de algo que se pareça com uma Faculdade de Teologia). Certamente, a despeito do desarranjo intelectual que todas elas causam, todas elas desempenham sim uma função contemporânea digna de louvar quando funcionam como ONGs e ajudam a organizar e a subvencionar iniciativas humanitárias como lares para idosos, viciados (eu mesmo estou precisando há muitos anos de um lar para viciados em jogos de ação; já pensou um Lar Cristão para dependentes de Counter Strike), dinheiro na manutenção de hospitais e, sem dúvida o mais importante, organizar maravilhosas festas de igreja onde podemos encontrar os amigos. Espere aí! - alguns podem pensar - Como que as festas são mais importantes que os hospitais? Ressaltei as festas como o mais importante, pois os outros benefícios deveriam ser mais cobrados do “nosso” “governo” “laico”. A beleza e a riqueza folclórica das festas religiosas não pode ser conseguida por equipes reorganizadas a cada quatro anos nas prefeituras; isto demandaria uma equipe de antropólogos, psicólogos, atores, músicos, figurinistas e cozinheiros que seria muito onerosa ao orçamento público, podendo daí faltar ainda mais em hospitais, asilos e clínicas para dependentes. A organização e performance dos membros da igreja em suas festas ainda é bastante útil na vida contemporânea, sobretudo nas pequenas cidades do interior, onde quase nada ou nada acontece, e a tradição e o folclore são preciosos. Em resumo, poderíamos abrir mão de Deus e toda aquela pressão celeste, mas é impensável ficar sem o churrasco de São Pedro.
Antes de voltar às questões estratosféricas da condição humana, ainda preciso tocar num outro ponto pertinente às igrejas contemporâneas. Para além de hospitais, asilos e clínicas para dependentes, estou também ciente da justificativa das igrejas, em especial a justificativa da Igreja Católica, que afirmam em tom de alerta de sua quase intolerável carga de responsabilidade na função de últimos redutos da moral divina, uma antiga falácia ensinada em chatequeses cristãs-judaicas-islâmicas-etc, como se a moral humana dependesse da fé em Deus. Ah! Por favor!
Estou falando da emissão de alvarás de conduta para algumas questões-chave como aborto, pena de morte, AIDS, clonagem, preservativos, homossexualidade, eutanásia, etc. E, por tradição e doutrina, estes alvarás de conduta viriam do próprio Deus via legisladores religiosos. Em alguns casos, estes legisladores se veem numa sinuca por não poderem contextualizar estas grandes questões-chave caso a caso, como deve ser feito, e então acontecem coisas do tipo: “proibir” o uso de preservativos mesmo diante de uma população de um país pobre no interior da África em estado de calamidade por causa da AIDS. Acho que nestas horas funciona a lógica clássica de recuar na guerra: perderemos esta batalha para não perdermos a guerra. É óbvio que a recomendação de preservativos iria desconcertar a coerência interna das religiões. Mas quem se importa com isso se compararmos com a incoerência desta atitude no mundo real? É claro que só as religiões se importam.

Cheios de perguntas e felizes da vida
Mas então, pela segunda vez tentando voltar a Deus... este texto não quer falar das igrejas e seus rituais, de suas responsabilidades terrenas, qual a mais antiga, qual a mais representativa, mais coerente, mais persuasiva, mais culta, a mais conservadora, a mais animada e nem qual oferece o melhor plano pós-vida, este breve texto quer sim falar um pouco da Breve História de Deus.
O título deste texto é ambíguo de propósito. O texto é breve como também é a existência divina, se encarada sob o ponto de vista de uma rocha terrestre, ou ainda mais breve, se encarada sob o ponto de vista de uma estrela normalzinha como o nosso Sol. Sem mais delongas, quero dizer que toda essa confusão, que vai do churrasco das noites de fim de junho na Paróquia São Pedro, passa pela aparição em Lourdes, pelos insights de Lutero e Calvino, pelo filme do Exorcista, pelos aviões do 11 de setembro, passa pelas orações antes de dormir e antes das provas, pelas carrancas das embarcações romanas, pelo sacrifício da indiazinhas astecas, passa finalmente pelos tremores frente ao trovão e orgulho frente à conquista do fogo chega galopante na recusa altiva e resoluta da aceitação de nossa ignorância.
Ainda nos primeiros anos do século XXI já poderíamos todos, mesmo com um pouquinho de informação e um tiquinho de ousadia, resquício da ousadia que nos tirou das árvores e nos fez segurar um pedaço de madeira em chamas pela primeira vez, olhar para o céu visível e relaxarmos com questões que simplesmente não podem ser respondidas ainda, aceitando nossa condição humana histórica, nossas descobertas e nossa ignorância, “felizes da vida” (temos que levar essa expressão mais a sério) por estarmos aqui. Já podemos vislumbrar que provavelmente saibamos, em relação à complexidade do universo, apenas sobre uma gota de um dos oceanos. É preciso olhar para o céu e relaxar com as perguntas que ainda não podem ser respondidas, assimilar melhor as que já foram solucionadas e sair em busca ou, pelo menos, valorizar as perguntas certas.
Deus pode ser também objeto da ciência, mas por enquanto, tudo o que se fala sobre sua existência ou inexistência e todo o respeito despendido em seu nome não passam de conjecturas. Quanto a isso, confesso pender mais para o ateísmo do que para o agnosticismo. Mas não posso afirmar com uma certeza de 100% que Deus não existe, desta forma estaria caindo no mesmo erro do teísta que afirma com certeza absoluta a sua existência. Justifico meu pendor pelo ateísmo dizendo que é mais fácil acreditar na limitação intelectual da nossa espécie e encarar esse Deus como um produto comum de nossa mente a aceitar uma entidade primordial universal exterior ao nosso pensamento, ou seja, a inexistência é mais plausível do que uma existência em qualquer tipo de forma exterior ao nosso pensamento.
Gostei de uma tabelinha dos Juízos humanos sobre a existência de Deus organizada pelo R. Dawkins no livro Deus, um delírio. Acho que ela agrada teístas e ateístas. Você pode copiar e brincar com seus colegas no trabalho, na hora do lanche, no estudo bíblico ou na encontro da OASE:

Quanto à existência de Deus você se acha...


1 Teísta convicto. Probabilidade de 100% de que Deus existe. Nas palavrasde C. G. Jung, "Eu não acredito, eu sei".

2 Probabilidade muito alta, mas que não chega aos 100%. Teísta de facto. "Não tenho como saber com certeza, mas acredito fortemente em Deus e levo minha vida na pressuposição de que ele está lá."

3 Maior que 50%, mas não muito alta. Tecnicamente agnóstico, mas com uma tendência ao teísmo. "Tenho muitas incertezas, mas estou inclinado a acreditar em Deus."

4 Exatamente 50%. Agnóstico completamente imparcial. "A existência e a inexistência de Deus têm probabilidades exatamente iguais."

5 Inferior a 50%, mas não muito baixa. Tecnicamente agnóstico, mas com uma tendência ao ateísmo. "Não sei se Deus existe, mas estou inclinado a não acreditar."

6 Probabilidade muito baixa, mas que não chega a zero. Ateu de facto. "Não tenho como saber com certeza, mas acho que Deus é muito improvável e levo minha vida na pressuposição de que ele não está lá."

7 Ateu convicto. "Sei que Deus não existe, com a mesma convicção com que Jung 'sabe' que ele existe."

Eu poderia me colocar tanto na categoria 5 como na 6, mas ainda considero a 6 mais coerente.



Descendo das árvores
Encarando o amadurecimento da humanidade como o amadurecimento de um ser humano comum, já podemos deixar lá na nossa tenra infância o medo aterrorizante do desconhecido, do escuro e do bicho-papão, como o homem pré-histórico deixou quando dominou o fogo e finalmente sonhou. Depois deixar de lado os vários amiguinhos imaginários e protetores, deuses disto e daquilo, como fizeram os homens monoteístas europeus no fim do Império Romano, que não precisavam mais de tanta ajuda para viver e, de uma vez por todas, lançar mão do último deus, amigo imaginário e confessor dos adultos, aquele que tudo sabe e tudo vê, o velhinho de barba branca, a força, o big brother cósmico, o grande projetista, o poder, a salvação, a natureza, o amor, a garantia da vida eterna e nos tornarmos adultos de verdade, para então podermos avançar de verdade e não só pela metade. Já podemos chamar natureza de natureza, amor de amor, rirmos tranqüilos da câmera celeste 24horas, não entendermos bem o que salvação quer dizer, chamarmos força de força, poder de poder, aceitarmos nossa ignorância quanto às grandes perguntas.

Neste momento evoco os poetas portugueses...


O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
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(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
--------------------------------------------------------
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
--------------------------------------------------------
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.


Trecho final do poema Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada
de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa).



Afinal, ainda não podemos formular questões precisas sobre o grande projetista ou outras questões existenciais tão genéricas, mas podemos nos esforçar em compreender as perguntas e as respostas que já nos foram dadas, por exemplo, o Processo Evolutivo explicado por Charles Darwin. Só estudando um pouquinho, a percepção do nosso planeta e de seus moradores já fica bem mais leve. Estamos todos na mesma casa, o nosso pálido ponto azul, a nossa espécie e tantas outras. Encarar isto de verdade já seria a solução para muitos problemas sociais e ambientais, para começar o respeito dentro de nossa própria espécie como também o nosso respeito para com as outras. Em algum grau somos todos comuns, em primeira instância temos semelhantes na nossa espécie e depois, vamos nos assemelhando em graus diferentes com outras espécies. Tudo leva a crer que dependemos uns dos outros para o bom andamento das coisas. Temos registros históricos que um homem medieval de Assis já tinha entendido isso tudo, bem antes das pesquisas de Darwin. E também nos chegou pelos registros históricos, é verdade de um jeito bem fantasioso e bem tendencioso, que há umas 2009 rotações da Terra em volta do Sol, um outro homem de Nazaré falava: “Galera, vamos relaxar... somos irmãos. Atenção! Isto não é uma metáfora! Realmente dividimos a mesma casa.” Porém, naquela época ele só podia se fazer entender pela fé....ele bem que tentou, mas parece que se deu mal.
Muita gente pensou e falou desde então, deu-se o nome de filosofia e ciência aos estudos, métodos, pesquisas e descobertas do pensamento humano. A própria fé foi refletida, desnudada e decodificada como um produto da cognição humana, por isso já não poderia mais estar aí bela e faceira como verdade intrínseca, física e inexorável na cabeça das pessoas, ainda mais das que puderam estudar, aprenderam uma língua, aprenderam a ler, sabem usar um controle remoto ou possuem uma centelha de razão. Podemos transcender de outras maneiras.
E assim, através de exagerada licença ilustrativa, dá para imaginar alguns dos nossos ancestrais longínquos descendo das árvores e indo cada vez mais longe nas pradarias, enquanto outros lá de cima, dos galhos mais altos ou jogavam excrementos ou simplesmente dormiam. Certamente os que dormiam nem conseguiam perceber por onde aqueles danadinhos que agora andavam eretos tinham descido. Os que jogavam excremento não tinham entendido nada e estavam muito assustados. Alguns que haviam descido voltavam em êxtase primitivo com comida e ofereciam àqueles lá de cima, alguns aceitavam, mas outros ainda continuavam atirando cocô e gritando em desespero.
Milhões de anos se passaram e agora somos todos bípedes e eretos, e alguns já conseguem olhar com compaixão a tamanha fragilidade dos seus semelhantes contemporâneos de cabeça baixa, de mão atadas, falando baixinho consigo mesmo, alguns até mesmo ainda temerosos imaginando-se sob a espada de Nêmesis.

Problemas contemporâneos
Muitos de nossos problemas contemporâneos são resultados do desequilíbrio Poder de Impacto das Novas Tecnologias X Nosso Inteligência em lidar com este Poder. É gritante o desconforto de nossos tempos. Como sair de uma exibição de um filme visionário de ficção científica e passar logo em seguida por gente de joelhos às lágrimas, ouvindo música de quinta categoria num tecladão, numa salinha de esquina pintada de azul calcinha, sem nos perguntarmos: o que está acontecendo? Como viver em uma época onde mísseis teleguiados são manuseados por gente que acredita que vai morrer e cair num paraíso com seus entes queridos e não sei quantas virgens ou outras maravilhas do entretenimento? Resposta: é muito perigoso. Como cuidar de um planeta e de suas espécies se a maioria das pessoas acredita que só estamos de passagem e iremos desta para uma melhor? Como tratar bem as outras espécies se somos educados há centenas de anos como senhores absolutos, escolhidos como portadores da semelhança divina rumo à vida eterna? Resposta: é muito difícil e pouco eficaz. Resolver estas questões alinhadas com uma doutrina religiosa tradicional, qualquer uma, requer um altíssimo nível de educação coletiva, isso é evidente. Basta ver a dificuldade que é para convencer os cidadãos e seus governos a reciclarem o lixo. Com este fato vem uma outra pergunta: será que este altíssimo nível de educação coletiva, única solução para os problemas globais, não seria mais facilmente atingido se as pessoas pensassem de um outro jeito quanto a sua condição humana? Também temos que encarar a possibilidade que esta mudança não ocorra simplesmente por nossa vontade e educação, alguns cientistas não descartam a necessidade de uma catástrofe para um salto evolutivo humano.
Porém, contando com a devida paciência de arqueólogos e antropólogos, na fantasiosa ilustração de um passado irreconhecível, eu pergunto: Como resolvemos o problema da falta de comida quando ainda morávamos em árvores? Resposta: descemos e saímos andando. Fico arrepiado em imaginar um primeiro ancestral humano ou grupo de ancestrais a andar pelas florestas e campos e a dormir fora das árvores. Que medo! Que medo! Poderia ser estraçalhado por um leão! Mas quem passou aquela primeira noite pôde ver que no dia seguinte ainda estava lá.
Nunca fui muito adepto da militância fora da minha área de estudo principal, a música, mas quando penso nos problemas que começamos a enfrentar hoje nas questões Humanos versus Natureza, sendo que fazemos parte desta natureza, sou obrigado a tomar partido. Encorajado a falar assim por causa de Dawkins, acredito que essa antiga história de uma “missão divina” que temos aqui na Terra ou outras baboseiras espirituais devem ser banidas com urgência do nosso discurso e educação infantil.
Precisamos equilibrar o manejo de nosso poder de destruição e de criação. Não podemos mais pensar como um humano do ano 1000 no ano 2009, se desviando o tempo todo e adaptando as velhas ideias às novas somente pela hipócrita sensatez das conveniências individuais. Temos que pensar em grupo, em espécie e em planeta para sobrevivermos até um futuro distante, e não tem jeito disto acontecer se não aceitarmos nossa limitação cognitiva atual e entendermos que a história de Deus e todo o apêndice de sobrenaturalidades está enclausurado em nosso pensamento e é algo, na melhor das hipóteses, pouquíssimo provável para além disto. Este fato amplia a responsabilidade de nossa espécie.
A disparidade entre o desenvolvimento tecnológico nesta primeira década do século XXI e o desenvolvimento do pensamento humano e, além disto, a assimetria entre o desenvolvimento individual versus desenvolvimento coletivo são duas questões bastante urgentes. Estou convicto que a função das ciências humanas, como a psicologia, a sociologia, a história, a filosofia, as pesquisas sobre o potencial humano e a arte podem servir como peso nesta balança e ajudar a equilibrar o desnível. Precisamos avançar para podermos usar melhor os nossos carros velozes e lidarmos de maneira mais racional com nosso lixo.
Pensando bem mais longe, não acredito que Deus seja nossa última árvore a ser descida. Se sobrevivermos a este desafio, o que Carl Sagan achava que se assim for, será por um fio, acho que teremos, num futuro inimaginável fora da ficção, que vencer ainda o apego à Terra, depois ao Sol e assim por diante: Ah não, eu que não serei o primeiro a educar meu filho em outro sistema solar! Imagine só, que tipo de educação terá ele naquele sistema binário! Quero que meu filho cresça e tenha dias e noites como na velha Terra!
Tem muita gente que dá uma descidinha da árvore na hora do meio dia, se aproveita, caça e volta pra dormir lá no alto, curiosos para ver o que acontece ao pessoal lá do chão. Isso não ajuda muito! Mas é assim mesmo, depois de alguns milhares de anos o lance de dormir na caverna deu certo e todos resolveram descer da árvore. O desafio contemporâneo já vem sendo desenhado há muitos séculos. Copérnico, Keppler, Goethe, Darwin, Einstein e Feynman não só acharam a caverna como também ascenderam o fogo. Dawkins, Sagan e Douglas Adams trouxeram a cerveja e o churrasco e nos convidam para a festa, eles querem que tenhamos a chance de experimentar aquele mesmo êxtase primitivo da descoberta!

Um parágrafo para a Arte
Estou certo que pouco se pode fazer em arte contemporânea se estas questões não estiverem bem resolvidas. Bach fez o que fez porque respeitou a sua época e contexto em sua totalidade, o que significava abraçar com toda a sua genialidade musical a fé monoteísta emoldurada pela práxis da recém reformada igreja cristã da Alemanha. O resultado desta honestidade intelectual hoje já deve ter ultrapassado as fronteiras do Sistema Solar em gravações de Glenn Gould, Arthur Grumiaux e Karl Richter, todos a bordo da nave Voyager![1] Um primeiro pensamento sublime pode ser: “Poxa vida! Estamos aqui!” E então saber que é preciso caminhar para frente com coragem e alegria. O verdadeiro artista sempre é coerente com sua época. Isto é uma característica sine qua non para a produção e até mesmo para a compreensão da verdadeira arte. Por isso que não me surpreende alguém gostar de música renascentista, Bach ou Mozart, o que denota um ótimo gosto para música do passado, porém ser intransigente no desgosto com a arte produzida do século XX em diante. A solução para esta mente fossilizada é abrir olhos e ouvidos, mesmo que mediante algum esforço, para o que está se pensando na sua época. Eu já fiz a prova real e me garanti: gosto de Lucas Marenzio até Debussy, Alban Berg e a casadinha Kubrick-Ligeti, gosto de Leonardo da Vinci, gosto de Redon, Hopper e Pollock! Posso dizer que me arrepio do canto gregoriano a Miles Davis. Amo filmes de ficção-científica e a beleza de alguns ambientes virtuais gerados nos jogos eletrônicos.

A natureza é pragmática

“Voltando à necessidade de consolo da humanidade, ela existe, é claro, mas não há alguma infantilidade na crença de que o universo nos deve um consolo, como de direito?” Trecho do livro Deus, um delírio de Richard Dawkins.

A história de Deus também tem ligação direta (talvez a ligação mais importante) com o nosso pavor com a morte e daí a necessidade de conservá-lo, afinal é dele a garantia da vida eterna, o encontro catártico com os entes amados em um outro plano fora desta vida. Eu sei, é um assunto delicado e pesado. É realmente tentador e consolador pensar neste desfecho fantástico, um reencontro com as pessoas que amamos ao longo da vida, porém infelizmente, o virtuosismo da natureza consiste no pragmatismo absoluto.
Mais tentador ainda é aquele papo de encontrar as virgens; morrer para quem tem uma fé dessas até que não é mau negócio. Mesmo quem diz só ter aquela esperancinha em uma vida após a morte, aquele sopro inexplicável de entendimento, aquela vozinha divina quase inaudível dentro da cabeça, ainda consegue ouvir a pequena voz chata da razão contemporânea martelando e gasta um bom tempo da vida aproveitando e respirando fundo a chance real. São poucos os que vão para a morte confiantes num sonho eterno. O problema ainda é que destes poucos, a maioria não são os iluminados pacíficos e sim os iluminados suicidas homens-bomba.
Além disto, se oferecem no mercado das possibilidades in memoriam do altamente capaz raciocínio humano, outras saídas bastante lógicas para o que aconteceria após a morte: a encarnação, incluindo em corpo de animais ou então algo como a evolução do espírito ao longo de uma série de vidas. Espíritas e Encarnadores terão que perdoar minha ignorância sobre os detalhes desta lógica tão bem construída e criativa. Infelizmente a lógica e as evidências dos espíritas também só funcionam para quem quer ver e aí voltamos à fé. Que saco, nada parece funcionar com a morte.
Todos nós nos apavoramos com a morte, principalmente quem gosta de viver, isto nos torna semelhantes e humanos. Da morte ninguém escapa para sempre, a medicina até que engana por um tempo, mas uma hora a casa cai. E nunca ninguém escapou da morte, isto não seria nada justo com os outros. Não escapou nem mesmo aquele homem de Nazaré de 2009 anos atrás. Eu acho que Jesus (estou falando do Jesus bíblico – se ele existiu ou não já não é problema meu e sim dos índios que tiveram que aturar os jesuítas, ah, entendi, por isto os índios são tão chatos hoje... papo de índio e tal) não esperava que a repercussão de sua vida e morte seria tão grande ao ponto de lhe atribuírem uma ressurreição. Talvez ele já tenha se deixado matar contando com a ressurreição na cabeça das pessoas por causa dos aspectos da fé da época, não sei. Talvez aí o conhecimento do Papa poderia me ajudar. Realmente incrível ainda ensinarem isto como fato para as crianças em 2009.
Mas sem enrolação, a morte não tem solução mesmo. É nossa condição para estarmos vivos. Quem está vivo, mais cedo ou mais tarde vai morrer e quanto antes aceitarmos o óbvio melhor será nossa relação com o fato. É tão estranho ver os cristãos no maior desespero quando um ente querido morre. Afinal os cristãos acreditam ou não na vida eterna? Eu mesmo sei que sofro muito com a perda de entes queridos e estou desde já trabalhando para aceitar melhor a morte, exercitando estratégias de enfrentamento, por exemplo, escrevendo este parágrafo. Acho que cada enterro tive, e terei, uma reação diferente, mas sempre de muito pesar pela separação definitiva, mesmo que o falecido tenha tido uma vida bastante feliz. É verdade que se sabemos que o ente querido falecido teve uma vida plena e feliz, abranda um pouco o sentimento de tristeza... Porém, é errado pensar assim. A morte não é exclusiva de pessoas que tiveram uma vida longa e proveitosa, também morrem os jovens e as crianças. Não existe justiça e nem sentido no tempo de vida, isso é mais uma invenção humana. É difícil de entender que uma vida de 5 anos não é menos significativa que uma vida de 80 anos, de entender que ela não tem um sentido menor. Que somos imperfeitos, limitados e muito frágeis; que não controlamos as infinitas variáveis de uma vida, acidentes e doenças. Sim, escrever é fácil... O difícil é se consolar somente com a nossa própria existência quando enfrentamos uma tristeza tão grande. Mas também é muito fácil oferecer à crença das pessoas uma vida feliz após a morte.

Ainda bem que não precisarei me preocupar com a minha própria morte, será um problema dos meus amados. Triste pensar nisso, mas é assim. Alguém lembra alguma coisa antes do nascimento? Não. A morte será igual. É isso. Simplesmente voltaremos ao estágio anterior da não existência, ou melhor, um estágio novo da ex-existência. Nos meus últimos pensamentos quero pensar que fui útil aos meus semelhantes e que desci da árvore e andei pelas pradarias.

Somos quase impossíveis

“Nós vamos morrer, e isso nos torna afortunados. A maioria das pessoas nunca vai morrer, porque nunca vai nascer. As pessoas potenciais que poderiam estar no meu lugar, mas que jamais verão a luz do dia, são mais numerosas que os grãos de areia da Arábia. Certamente esses fantasmas não nascidos incluem poetas maiores que Keats, cientistas maiores que Newton. Sabemos disso porque o conjunto das pessoas possíveis permitidas pelo nosso DNA excede em muito o conjunto de pessoas reais. Apesar dessas probabilidades assombrosas, somos eu e você, com toda a nossa banalidade, que aqui estamos...” Trecho do livro Desvendando o Arco-Íris de Richard Dawkins.

“Nós, uns poucos privilegiados que ganharam na loteria do nascimento, contrariando todas as probabilidades, como nos atrevemos a choramingar por causa do retorno inevitável àquele estado anterior, do qual a enorme maioria jamais nem saiu?” Trecho do livro Deus, um delírio de Richard Dawkins.

Quem prestou atenção nos números da biologia e astronomia sabe que as possibilidades da vida dar errado são infinitamente superiores. Somos quase impossíveis. Quantos planetas e justo neste nossas moléculas de carbono ancestrais puderam se combinar e dar início a tudo. Naqueles idos tempos dos nossos "...tatatataravós moléculas", as condições de vida eram bem complicadas, mas como estamos aqui hoje, eu escrevendo no meu computador e você lendo, aquelas moleculinhas souberam se virar.
Na biologia das formas de vida atuais, todos sabemos que as chances de concepção de um ser humano continuam raras, sempre na ordem uma para milhões de possibilidades que precisam ser descartadas. Muito mais gente (ou melhor, possibilidades de gente) pereceu entre as páginas de Playboy que andando sobre a terra. Quantos que nem puderam nascer... É tão triste quando algumas pessoas que nasceram não vivem bem, sofrem o tempo todo e contam como única esperança e antecipadamente com uma vida após esta vida; é muita mesquinharia e muito desperdício de oportunidade. Uma verdadeira sacanagem com os outros trilhões de anônimos que nem tiveram a chance de ver a luz do dia. É uma delícia vislumbrar a nossa relação com pais e irmãos sob esta perspectiva; dá uma sensação meio bobinha de “equipe vencedora”. Por isso, com a lanterna de Darwin nas mãos ágeis de Dawkins, volto a frisar que basta olharmos pela janela de casa, respirarmos fundo e pensarmos: “Poxa! Estamos aí!” E a nossa sorte é ainda mais incrível, afinal nós além de vivermos podemos pensar sobre nossa vida! Eita... deveríamos ter ainda mais compaixão pelas árvores que nos ajudam e nem sabem disso.
Este fato pode se desdobrar de tantas maneiras ainda mais tristes quando misturadas com regras rígidas fundamentadas na culpa ou outras convenções morais forjadas na calada da noite humana. Agora me lembrei daquelas jovens senhoras da Assembleia de Deus, algumas mais jovens que eu, com uma postura de mulheres em fim de carreira, taciturnas, de marrom, completamente sem vaidade, sem o ímpeto, como se o tempo delas já tivesse passado. Se pudessem deixariam a barba crescer. Como observador distanciado, tenho a impressão que este sentimento vem com o casamento ou com os filhos e elas nunca mais se recuperam, só algumas escapam. Também já percebi isto em algumas beatas católicas mais velhas, geralmente solteironas, as primeiras a entrarem na igreja, não perdem a missa de terça-feira nem o Vale a Pena Ver de Novo da Rede Globo. Quem parou para pensar um pouco sabe que isto acontece. A única explicação que me ocorre agora é o efeito doutrinal da bíblia cristã sobre estas mulheres, bastante punitivo e muito ruim para o feminino. Quem ler só um pouquinho do início da bíblia já poderá conferir o que estou dizendo. O Deus do Primeiro Testamento é um carniceiro sádico e a fé naquela esquizofrênica criatura imaginária é a arma das armas, a bomba atômica é fichinha. Se pudesse me comunicar com estas pessoas e pudesse ser compreendido por elas eu só diria o seguinte: “Sai dessa, você está viva ainda? Então ainda há tempo!” Tipo aquela intervenção do Alfred Hitchcock quando viu um padre conversando com um garoto na beira de uma estrada enquanto passava rápido de carro e só deu tempo de gritar a plenos pulmões: “Run kid! Save your life!” [2] Se o velho Hitchcock ainda tivesse tempo de mais um conselho também poderia gritar: “...and also enjoy your life!” [3]

Perguntas ao Grande Projetista
Você pode me dizer e olhar com aquela bondade cristã-judaica-budista-islâmica-espírita-vudu-candomblé autêntica: “Eu não só creio, eu sei que Deus existe.” Mas é claro. Eu também consigo usar meus neurônios e imaginar este Deus. Todos nós podemos, de um jeito ou de outro, ouvir aquela tênue, porém insistente voz interior, nos falando das coisas mais íntimas. Incrível! Este Deus sabe de coisas que só eu poderia saber! Explicação: é a força onipresente e onisciente. Errado: é o meu próprio pensamento.
O ateísta não é aquele que não consegue elaborar Deus na mente, é aquele que mesmo conseguindo elaborar, ainda prefere aceitar sua dúvida e limitação impostos pela condição humana, limites impostos pelo tempo histórico e pela cognição. O ateísta entende a fé, mas opta pela razão. Quem sabe, num futuro distante, novas descobertas apontem para um Grande Projetista Universal? Todos nós ficaremos felizes com esta descoberta e então novas perguntas serão feitas: “Mas Sr. Projetista, o senhor projetou tudo-tudo ou só uma parte do universo­? Qual o tamanho do universo? O senhor nos apresentaria outras formas de vida? Existem outros universos possíveis? E quem projetou o senhor?” Ele pode muito bem nos responder: “Meus caros humanóides, só conheço este universo e eu não tenho nem ideia como eu vim parar aqui! Eu acho que foi Deus quem me criou!” Ele também poderia nos responder: “Quem me projetou? Não sei ao certo, mas existem várias teorias. Estou neste mandato há uns 1000 trilhões de anos terrestres, não deu tempo de falar com o outro Projetista, quando cheguei aqui ele já tinha pegado o táxi para o aeroporto.”
A grande sacada é entender, com a ajuda de Wittgenstein, que algumas perguntas e afirmações são somente mal uso da linguagem e quando formuladas não passam de um falso problema. O avanço do conhecimento se dá pelas perguntas certas na hora certa. A racionalidade do método científico possibilita isto, a sensibilidade à arte também, mas a fé não. O fato de conseguirmos imaginar e falar sobre anjos, diabinhos, Grande Projetista Universal e Deus não significa que eles existam na realidade, como também o desconhecido é desconhecido.

No passado era muito mais difícil encarar isso. Para começar era perigoso, você poderia parar numa fogueira. Mas em 2009 não é mais tão complicado. Basta um empurrãozinho nas mentes mais dispostas, mesmo as que foram entortadas pela doutrina religiosa ou então basta uma educação saudável para as crianças.

Pequeno comentário aos profissionais da sacristia
Já ouvi missionários cristãos inteligentes com um discurso quase laico, fugindo dos clichês antigos e automatizados da religião, nitidamente se pegando nas questões contemporâneas, principalmente cientes que não podem fugir do novo sujeito desencantado, mas ainda calcando sua argumentação numa matriz de pensamento sobrenatural. Acredito que a função dos missionários religiosos profissionais e inteligentes não é nada fácil nos dias de hoje, não queria estar na pele deles. Teria que pensar mais para achar um sumidouro para este sobrenatural, sem atrapalhar sua vida profissional. Percebo que é cada vez mais comum ouvirmos falar de religiosos que desistiram de suas carreiras, então seguem como professores e assim ficam mais felizes. O primeiro passo é que eles mesmos se resolvam. Eles tem que pensar a fundo sobre seu próprio respeito intelectual. Aposto que ex-padres católicos e ex-pastores luteranos devem ser professores fabulosos devido à volta cognitiva que tiveram que dar, e são muito mais úteis nesta nova profissão onde podem explorar sua liberdade intelectual ao máximo.

Avisos paroquiais
Neste ponto algumas indagações podem surgir na mente do leitor, mas como minha proposta inicial era a de um texto breve, visando à publicação no meu blog e por não ter competência suficiente, não poderei dissertar sobre todos os assuntos pertinentes a esta discussão. Certamente fica em aberto muita coisa a ser debatida com mais detalhe: se a existência de Deus garante a ordem moral e o bom comportamento dos humanos; se sem Deus não sobraria muita coisa aos humanos pouco instruídos; a diferença entre agnosticismo e ateísmo; como fica a educação das crianças sem Deus; criacionismo versus evolucionismo; aborto; respeito pelas religiões; etc. Todos os temas da sociedade contemporânea podem ser debatidos sob a ótica da razão e serem dissecadas sem qualquer vínculo com a fé. Grande parte das ideias contidas neste texto, como os temas citados neste parágrafo e muitos outros assuntos são debatidos com muita consistência e elegância por Dawkins e Sagan em seus vários livros.
Leitura obrigatória para quem se interessa pelo ateísmo é o livro Deus, um delírio (The God delusion) do biólogo Richard Dawkins e Bilhões e Bilhões, o último livro escrito pelo astrônomo Carl Sagan. Estes autores também escreveram diversas obras especializadas em suas respectivas áreas e são autores referência na divulgação das descobertas e do pensamento científico contemporâneo. E é claro, não perca a oportunidade de entrar em contato com o humor de Douglas Adams, um humanóide que parece ter entendido algumas coisas... Outro texto mais curto, para quem não estiver com paciência de ler um livro inteiro, mas quer uma opinião bem construída e bem escrita leia este artigo de Hélio Schwartsman no endereço:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u595384.shtml
Para ser simétrico na propaganda devo informar que um livro rebatendo os argumentos de Richard Dawkins já foi escrito e chama-se O delírio de Dawkins, do biofísico e teólogo Alister McGrath e sua esposa Joanna McGrath.

A coleta desta semana destina-se ao Lar dos Projetistas Universais, um belo trabalho realizado no amparo psicológico de ex-deuses individuais aposentados por invalidez.

Bênção final
Como eu já tive a experiência muito clara da fé teísta cristã, por ter sido educado como um cristão numa cidade pequena de um país subdesenvolvido e não-laico, confesso que mudar e pensar com um ateísta, ou seja, encarar Deus como um produto do meu próprio pensamento, o amigo invisível que sobrevive na vida adulta, causa uma sensação diferente quando olho para o céu. O primeiro resultado é dar um valor absurdamente mais intenso à vida, aos semelhantes de nossa espécie e também de outras espécies, incluindo as plantas, à Terra. O frio é mais frio, o calor é mais calor, parece que as sensações ficam mais exuberantes, como se fosse mais palpável e real o virtuosismo da existência. Temos que reformular de verdade a relação com a morte, coisa que a maioria dos teístas empurra com a barriga ou simplesmente inventa uma versão fantástica. Toda a ação humana e da natureza exterior, no passado e no presente, se reconfigura. Nos primeiros segundos parece estarmos flutuando sem nenhum suporte, sozinhos e abandonados, mas logo em seguida já sentimos os pés na terra mais firmes do que nunca e com uma vontade enorme de avançar.
Ateísmo não descarta o amor ao próximo como premissa, mas descarta a espiritualidade literal e milagres sobrenaturais. Não impede que você declare a seu semelhante um pensamento amoroso na hora de uma dificuldade ou para que dê tudo certo na viagem, ou no momento de uma grande conquista. Todos humanos sabem como faz bem saber que alguém está pensando na gente. Isto é a base da oração de todas as religiões, mas antes disto, é a base do bem estar entre os seres humanos. Em primeiro lugar a reza elabora o pensamento, organiza as ideias, é uma atividade reflexiva; em termos laicos, pensar faz bem. O doente acamado se sente melhor quando sabe que um grupo de pessoas orou por ele, isto é, pensou no bem dele. Isto é maravilhoso, traz ao debate nossas ligações ancestrais, nossa relação com estranhos sendo ampliada à proximidade familiar ao ponto de tocar o passado original (minha hipótese). Mas o ateísta não pode aceitar que a oração será transmitida a uma força superior e onipresente e retransmitida ao meu amigo doente, tipo um satélite divino. Nisso quase ninguém mais acredita hoje em dia, pelo menos espero que não. Na verdade, as pessoas quase não acreditam em mais nada, só que continuam se agarrando aqui e ali em velhos conceitos (como nos velhos galhos), renomeando, adaptando de acordo com as conveniências, no maior sufoco para manter a coerência e ainda querem ficar felizes... acho muito difícil ir por este caminho. Principalmente se você tiver conhecimentos atualizados com o ano 2009.
Não é tão fácil chegar num mundo desencantado. Não é tão fácil chegar lá sem uma sólida educação e uma mente disposta. Mas quando conseguimos é mais fácil do que ficar fazendo malabarismos com as metáforas e com as coincidências, se explicando por espíritos santos, povos escolhidos, novas vidas em corpos de animais, virgens grávidas, terras prometidas, anjos, demônios, fantasmas, águas transformadas em vinho (meu sonho), ou então, isso pode comer, isso não pode, aqui você pode ter várias mulheres, aqui você só pode ter uma, e a você padre, nenhuma. É muita confusão para uma mesma espécie. A gente se enrolou muito nestas últimas centenas de anos.
Confesso que às vezes fico meio desnorteado sobre a maneira mais correta para me referir aos não ateus. Não sei bem se chamo de teísta ou se chamo de religioso, pois entre os que acreditam em Deus existe um grande número de pessoas que não seguem uma religião específica. É verdade, existem teístas não religiosos e que ainda abominam as religiões, acho que no mesmo grau dos ateus. Se sair em busca de alguns, aposto encontrar vários amigos e parentes nesta situação. As diferenças entre ateus e este tipo de teístas assumidamente não religiosos são bem pequenas. Para estes teístas sem credo, suponho que Deus seja aquela força inexplicável que nós temos, a união do todo, o indizível e o indivisível e, que em sua infinita grandeza, simplesmente não coexiste nem interage com o mundo real, não teve um começo e nem terá um fim, ele simplesmente é. Este Deus me parece bem racional e calculado, além de criativo. A diferença é que para um ateísta isto não passa de uma hipótese bem improvável.
Mesmo tendo um Q de fantasmagoria, temos que convir que esta concepção do divino já é mais interessante que o Jigsaw do Primeiro Testamento.[4] Alguns teístas não religiosos até já admitem a morte como um fim consumado da existência. Porém, ah, sempre tem um “porém”, esta posição cômoda tem um problema. Esta fezinha fraca no Deus não religioso, por não ser assim tão fácil de ser alcançada, por ser tão sutil e sofisticada (note ao seu redor que só os mais instruídos conseguem), pode ser mais facilmente corrompida, ficar crônica, tornar-se patológica com o passar das gerações, criar vários braços e aos poucos ir se enchendo de regras e rituais, vai se facilitando e popularizando, dá-lhe santos, milagres, segregação, pecados, imagens, galinha preta, charutadas, flores, saravá...
E para concluir a Breve História de Deus, tudo leva a crer que o Deus sofisticado não religioso foi o último estágio do meu Deus pessoal. Ele já vinha deste jeito há mais de 10 anos; também faltava muito no trabalho, quase sempre estava cansado e com olheiras, tinha preguiça de levantar para ir aos cultos de domingo, não sabia mais o que inventar o coitado... Então, por coerência, resolvi aposentá-lo por invalidez, porém ainda consigo ouvir sua voz bem fraquinha e um tanto rouca no meu ouvido sarcástico: “Você me colocou de lado, mas ainda estou aqui, nunca te abandonarei, pense em mim na hora derradeira e te salvarás...” Acho que deve ser coisa da minha cabeça...
Agora tenho um profundo sentimento de grandeza e humildade por sermos tão raros e temporários.

Não tento imaginar um Deus pessoal; basta admirar assombrado a estrutura do mundo, pelo menos na proporção em que ela se permite apreciar por nossos sentidos inadequados. (Albert Einstein)

Basta olharmos em volta e respirarmos fundo! Estamos vivos! O sentimento de amor, reverência e transcendência não são incompatíveis com a falta de uma fé mística tradicional. A maravilha das pequenas e das grandes alegrias, e também as tristezas, são nossa ligação com a realidade, nossa condição humana, e assim sempre existimos, entre o desconhecido e as descobertas.

Para meu bisavô Heinrich Görisch (1904-1988)


Leandro Gaertner
Gaspar (SC), julho de 2009.
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[1] Vale mencionar aqui que Carl Sagan fez parte da equipe que selecionou uma série de registros da humanidade lançados ao espaço em 1977.
[2] “Fuja garoto! Salve sua vida!”
[3] “... e também aproveite sua vida!”
[4] Referência ao personagem sociopata assassino da série de filmes Jogos Mortais.