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domingo, 5 de outubro de 2008

)O velhO nO espelhO(


“O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.”
(Julio Cortázar)


Aqueles pensamentos já não eram novidades para o velho há muito tempo, talvez já o acompanhassem desde o início da vida adulta e agora, enquanto pensa parado em frente ao espelho, fica perturbado com este descontrole de idéias. Sempre lhe foi incômodo ter um pensamento qualquer, sobre qualquer coisa e logo descontextualizá-lo, transferindo-o para anos antes ou então anos depois. Isto para ele era um descontrole de idéias. Como seria ter pensado assim antes? Como seria ter pensado nisso somente muito mais tarde ou tarde demais? Existe um tarde demais para um pensamento? Ele preocupava-se com as idéias que viriam tarde demais e perguntava-se se poderia ter um pensamento, uma idéia, um acesso de entendimento justo alguns segundos antes do último suspiro.
Alguns desses pensamentos voltavam de tempos em tempos como se estivessem em órbita em torno de sua consciência e outros eram novos e o surpreendiam inteiramente: “Como não pensei nisso antes?”; esses talvez só tivessem uma órbita maior e dando o tempo necessário reapareceriam. Alguns outros pareciam ser capturados pela gravidade da consciência, porque depois que surgiam uma primeira vez, voltavam com certa regularidade. Um deles foi a impressão que não havia mais nada a ser feito de relevante em toda sua vida! Esta impressão o fez pensar, em várias épocas da vida, sobretudo após realizar coisas marcantes, que a sua parte já tinha sido concluída e o resto dos seus dias seria um longo e inútil marasmo. Agora pensa nisso com um ar resignado que, se existe mesmo algo a ser terminado, este término é bem mais uma imposição constatada do que um simples pensamento ou sensação. Como poderia ter lhe passado alguma vez pela cabeça que sua parte já estava terminada? Pondera agora quase com tristeza que tudo isso era um luxo desnecessário e um grande desperdício de energia. Ele apoiou os braços na pia e deu um sorriso sem abrir a boca olhando-se no espelho; estava pensando nisso de novo, mas não podia ficar triste porque ainda tinha a dúvida de estar tendo mais um pensamento luxuoso. O que pensaria nos seus últimos segundos?
Lembrou-se de uma estudante que conhecera quando começava a deixar os anos de juventude e os aniversários já passavam a ser momentos de reflexão. Ela costumava dizer que só não gostavam da própria idade e dos aniversários aqueles que não haviam tido experiências suficientemente satisfatórias, boas ou ruins. A estudante, mais jovem e cheia de observações mordazes, comentou simplesmente que as pessoas mais velhas demonstram uma maior capacidade de sobrevivência, então o velho abriu um largo sorriso imaginando o que a jovem estudante diria se o visse agora. Ele já havia superado seus dois avôs e já estava empatado com seu pai e bisavô materno em longevidade, já se considerando um homem com grande capacidade de sobrevivência. Tudo bem que as inconveniências dos corpos velhos existiam, porém ele as manejava com discrição, evitando situações que pudessem evidenciar sua fraqueza na coluna ou então ingerindo somente alimentos que colaborassem com suas vísceras. Ele sabia que ser discreto neste sentido significava desligar-se de uma parte do convívio social, mas se esforçava para manter esta situação sob controle. O velho desejava gozar sua capacidade de sobrevivência vivendo o mais normalmente possível até o fim.
Em uma de suas viagens Gulliver vai parar num país onde existem pessoas imortais. A sua primeira reação foi ficar maravilhado e eufórico com as infinitas possibilidades deste dom. Viver eternamente, conhecendo todas as culturas e aprendendo sobre tudo, uma chance sem comparações de viver com toda intensidade, aproveitando tudo o que existe. Esta euforia dura até encontrar um cidadão imortal e ver suas enormes limitações. Neste país os imortais não morrem, porém envelhecem. Envelhecem tanto ao ponto de não entenderem mais a língua corrente, não entendem as novas regras sociais, as gírias e todas outras mudanças e novidades que são normais ao transcorrer do tempo. Eles também possuem grandes problemas de memória, esquecendo de quase tudo que já lhes aconteceu, de pessoas que conheceram, o que aprenderam. Os jovens não confiam mais nos imortais velhos e até mesmo seus bens precisavam ser administrados por outros, geralmente contra sua vontade e aos poucos os imortais iam sendo esquecidos numa vida extremamente solitária. Por não conseguirem mais conversar nem fazer quase nada, ficavam vagando pelas ruas sozinhos e, se olhássemos em seus olhos, talvez notaríamos que para eles a sua própria existência estava morta.
O velho ouve o barulho do vento que faz as portas e janelas do casarão de madeira estremecerem. Desde pequeno ouvia chamarem essa ventania vinda do mar de vento sul, indo se dar conta do motivo só mais tarde. Fica ali imóvel e respirando o mais silenciosamente possível, coisa que na sua idade requer uma boa dose de controle, está tentando escutar o vento como escutava bem antes, quando era criança. O vento sul que prolongava as brincadeiras no salão da casa e intensificava o cheiro de gás na cozinha mal iluminada e de sombras bruxuleantes. Aquele vento que depois de algumas horas deixava os vidros das janelas melados de maresia, a praia deserta e as ondas espumantes, transformava a casa num aconchegante abrigo cheio do cheiro do café da tarde e de cantinhos escuros. Hoje ele ouve o vento forte que vem em rajadas do sul e observa como as árvores se comportam, pensa em como estão adaptadas.
A casa de praia já pertencera a seu avô que tinha passado seus últimos anos como um imortal numa varanda. Olha-se no espelho e vê um homem velho; acha bom ainda poder ter estes pensamentos com lucidez e subir as escadas sem a ajuda de ninguém. Enche as mãos com água e esfrega o rosto e os olhos fazendo uma careta que tornam as rugas ainda mais salientes. Mesmo ficando pasmo com seu reflexo considera seu olhar cheio de existência, é incrível como tinha mudado pouco ou quase nada desde a infância. Lembra-se com detalhes das sensações e fantasias que tivera naquela casa e em outros lugares e sabe que ainda brincaria do mesmo jeito se fosse hoje. Após tantos anos, viagens e pessoas, ele percebe que seu olhar é a marca de sua essência, a ligação entre os seus ascendentes e descendentes. Seu bisneto e seu bisavô viram corpos diferentes, mas o mesmo olhar. Ele pensava que se um indivíduo consegue atravessar a sua vida inteira sem um acontecimento inaceitável em proporções de horror ou beleza, o olhar acaba mantendo aquele ar essencial que temos desde o começo. O velho achava que seus olhos tinham uma matriz de compaixão que tornava o resultado final um olhar bondoso e tímido, alguém também já havia lhe falado isso e muitas vezes ele tentara ser mais altivo, apesar de ser cada vez mais difícil. A velhice parece trazer, com o acúmulo de experiências e enfraquecimento do corpo, uma humildade inerente ao indivíduo. Pode ser esta humildade uma condição única para se ter nesta fase da vida a plenitude. Agora ele sente a serenidade e pensa nestas coisas aleatoriamente, não se importando muito em encontrar certezas.
Espia o tempo pelas cortinas do banheiro e vê os sombreiros do jardim sacudindo. Do lado da estrada e do lado da praia formam-se redemoinhos de areia, o céu esta inteiramente cinza e mais ao longe, mar adentro, é um cinza escuro onde provavelmente deve estar chovendo. É um daqueles dias que logo depois do meio-dia o sol desiste de iluminar e no meio da tarde a noite já parece estar chegando, quando os trabalhadores da terra e do mar têm seus relógios adiantados e retornam para suas casas. O velho sempre admirou muito aquela riqueza de eventos: “Este tempo vai noite adentro.” Acreditava que fazia parte de algo grandioso e tentava perceber cada acontecimento que estivesse ao alcance de seus sentidos. Muitas vezes andava lentamente através de um jardim que se mostrava exuberante, observando ou imaginando com atenção tudo o que poderia estar acontecendo à sua volta. Imaginando, pois a maioria das coisas que podem acontecer em um jardim acontecem de forma invisível. Quanta atividade há na tortuosa e peluda copa de uma velha figueira? Também se interessava pela movimentação de pessoas na areia da praia, entre as pedras, as ondas, os carros, as árvores e as antenas; aquilo lhe significava um infinito de possibilidades. Quando podia ficar em silêncio absoluto, numa noite de escuridão quase absoluta, à entrada do mato, apurava os ouvidos ao máximo e escutava um galho se quebrando e despencando num lugar qualquer. Aquilo sim era um grande acontecimento para a floresta e para seus ouvidos. Algo assim até desencadeava uma seqüência de outros eventos como o vôo assustado de uma coruja ou a quase destruição de um formigueiro com semanas de existência. Ao olhar pela janelinha do banheiro e ver os sombreiros e suas largas folhas sacudindo com o vento, se pergunta qual é sua parcela de participação naquele evento como espectador.
Outra coisa que intrigava o velho era o tamanho do raio de ação de um indivíduo durante a sua vida, qual a amplitude geográfica que alguém atingia até morrer. Quando ia a cemitérios ou lia textos mencionando grandes personalidades prestava atenção na cidade de nascimento e morte. Percebera que as pequenas cidades são as favoritas para o nascimento e Paris para os momentos finais. É bastante curioso pesquisar o trajeto de um biografado até seu destino final e ele pensa em si mesmo nessa hora. Está muito velho, com a capacidade de sobrevivência mais que comprovada e a apenas cinqüenta quilômetros do hospital que nascera. Se morresse neste instante sua hipotética biografia não despertaria muita curiosidade nos ignorantes. Além disso, ele está na mesma casa que já freqüentava quando criança. O que deveria pensar disso?
Em relação ao raio de ação de um indivíduo durante a sua vida, a contemporaneidade gerou um grande fenômeno. Há vinte anos ou menos, a amplitude geográfica alcançada por uma pessoa era um dos principais diferenciais entre o seu sucesso em larga escala ou não. A divulgação de grandes idéias e a busca de conhecimento implicavam em viagens a grandes centros e dificilmente alguém isolado geograficamente poderia se sobressair como líder intelectual. O velho pensa nisso e lembra-se do pensador alemão Kant que saíra pouquíssimas vezes de sua cidade e que, enquanto a música redefinia-se nas mãos de Debussy, Schoenberg e Stravinsky na primeira década do século XX, o músico americano Charles Ives fazia experimentos de mesma envergadura bem longe dos centros europeus. Estes exemplos ele encarava como exceções à regra. O fenômeno contemporâneo da comunicação global aniquila grande parte das limitações geográficas. Será que as culturas estariam sendo definitivamente equalizadas?
A porta do banheiro está entreaberta e o velho pode ver os seus dois bisnetos passarem correndo de lá para cá. Estão correndo pela casa toda, indo e vindo aos gritinhos e de pés descalços da garagem no térreo até subirem as escadas ofegantes e se jogarem no sofá da sala de TV. Ele pode ver os dois quando aceleram os passinhos antes de pularem. Lá de baixo vem o som da louça e da conversa de um jantar sendo preparado. Estão juntos para a temporada de verão na velha casa de praia quatro gerações de sua família, seu filho e sua nora, sua neta com seu marido e seus dois bisnetos, a neta também tinha convidado duas de suas amigas balzaquianas da universidade para ficarem alguns dias. O avô tinha orgulho de ver sua neta seguindo o mesmo caminho acadêmico que o seu; e ela ainda tinha conseguido concluir sua formação e começado a trabalhar como professora mais cedo que ele. Orgulhava-se do tempo que passara com a neta na infância e juventude, era crente que suas orientações e conselhos foram decisivos. Ele a via fazendo com seus bisnetos os mesmos testes de coragem em volta da casa ao anoitecer que ele havia feito. Ainda hoje eles conseguiam ficar horas conversando e davam longos passeios na praia, a neta era sua maior ligação com a esposa.
Ele havia conhecido pouquíssimos bisavôs em todo o seu tempo de vida e por isso sentia-se um privilegiado. Via que as chances de seu filho alcançar este status eram menores que a sua, pois em sua família, como em tantas outras, engravidava-se cada vez mais tarde. Essa dinâmica da procriação era agora cada vez mais adotada, como fora também adotada por seus próprios avôs e pais a dinâmica de ter menos filhos. O velho pensava na quantidade de tempo que estava sendo contemporâneo de seus descendentes. Os bisnetos seriam os últimos. Que lembranças seus bisnetos terão dele quando ficarem velhos?
De todos os seus consangüíneos, ele é o mais velho. O segundo lugar é de uma prima com oito anos a menos. Quando eram bem jovens esta distância de idades era enorme, ele com vinte anos e ela com doze significava a condição de uma criança contra a de um jovem que trabalhava e tinha responsabilidades. Hoje os dois estão velhinhos e seu último encontro foi há alguns aniversários atrás. Os dois primos falaram muito pouco, olhando tudo em volta aos suspiros; um encontro entre dois velhos silenciosos pode ser de uma nostalgia quase insuportável. Refletindo sobre esta inevitável transformação, não consegue evitar uma sutil e secreta incredulidade: “Como passou rápido.” Ele não saberia dizer se é deste jeito para todos ou se tinha deixado de fazer alguma coisa. Será que tinha deixado de experimentar algo satisfatoriamente? Que idéias deixara de ter? Que pensamentos nunca ocorridos lhe fizeram falta? O homem velho de pé em frente ao espelho e cheio de perguntas decide descer as escadas e jantar, depois convidaria sua neta para uma partida de xadrez.


Itapema, Janeiro de 2006 – Leandro Gaertner
Obs: a citação do início foi colocada em Janeiro de 2007 e trata-se de um trecho do texto Instruções para dar corda no relógio do escritor Julio Cortázar.

Imagem: Desespero (Edvard Munch)

domingo, 14 de setembro de 2008

Homenagem ao Maestro Egon Bohn


Há quase 20 anos falecia na sua casinha do sítio em Gaspar Mirim um homem forte e idealista, que deixava para a memória de seus familiares, alunos e amigos mais que uma sensação de perda e saudade, mas um legado de valores e conduta virtuosa, baseados na educação musical de qualidade. Seu trabalho e amor pela arte e pela cultura continuam ainda hoje ecoando nas igrejas, palcos e escolas através de várias gerações de discípulos e descendentes destes ideais.
Egon Bohn nasceu em Blumenau em 3 de julho de 1929 e, como nos conta sua filha, a musicista Celine Bohn Gaertner, descobriu o mundo dos sons numa gaita de boca quando era garoto, tocando nas caminhadas para a igreja e para o trabalho. Saciava sua curiosidade musical observando professores e maestros, pesquisando em livros e instrumentos que lhe chegavam às mãos, assim aprendendo quase sempre de forma auto-didática. Foi um jovem de personalidade muito marcante, perfeccionista, com espírito de liderança e muito exigente no tocante à disciplina. Com uma formação escolar fundamental começou a trabalhar muito cedo, antes dos 14 anos na Usina de Açúcar São Pedro em Gaspar (1943 - 1945), depois trabalhou na Indústria de Linhas Leopoldo Schmalz S.A. (Linhas Círculo) em Gaspar (1945 - 1953), Fritz Lorenz S.A. em Timbó (1953 -1954), Comercial Cláudio Gaertner em Blumenau (1954 -1955) e Neitzel Corretores de Seguros Ltda em Blumenau (1955 -1975). Em 1945 foi admitido na Congregação Mariana da Paróquia São Pedro Apóstolo de Gaspar, onde optou naturalmente por participar da Banda São Pedro, fundada logo em seguida em 16 de junho de 1946. Neste período também teve aulas de trombone com o maestro da banda Sr. Eurides Luiz Polli e ingressou no Coro Misto Santa Cecília sob a direção do Sr. Luiz Franzói.
Em uma de suas apresentações musicais (30.11.1954) conheceu sua futura esposa, a musicista Claudette Goerisch (Bohn), com quem teve quatro filhas, Celine Bohn (Gaertner) (*1958), Lorena Bohn (Bornhausen) (*1959), Juvani Bohn (*1960 +1960) e Noêmia Bohn (Pessatti) (*1961). Em 1958 assumiu a regência do Coro Misto Santa Cecília, coincidindo este momento com a reformulação da liturgia católica romana. O pároco Frei Arthur Kleba OFM convida Egon Bohn para reorganizar o coro e adaptar o canto às novas diretrizes da Igreja, com as celebrações agora em língua portuguesa. Contando com a ajuda de Frei Arthur, Sr. Ildefonso Koser e de vários outros coralistas perseverantes, Egon Bohn inicia a reformulação do Coro Misto Santa Cecília, convidando jovens integrantes, ensinando música para os iniciantes, incluindo atividades de preparação vocal, leitura e solfejo e ampliando o repertório com canções folclóricas e outras não ligadas diretamente ao rito católico. Para aperfeiçoar o coral, o maestro Egon Bohn não mediu esforços, buscando orientação em diversos cursos em Blumenau, Florianópolis e Rio de Janeiro, onde teve aulas com grandes músicos como Heinz Geyer, Oscar Zander e Padre Penalva. O maestro João Batista Bohn, irmão de Egon, explica que neste período também ocorreu um evento de grande importância histórica para a Banda São Pedro (nesta época regida pelo maestro Eurides Luiz Polli) e Coro Misto Santa Cecília, a junção destes dois grupos guiada com energia pelo Sr. Egon Bohn. João Batista Bohn ainda explica em seu livro sobre o Clube Musical São Pedro que o maestro Egon Bohn incentivou com disciplina a igualdade entre os músicos da instituição, sem distinção racial, idade ou ideologia política, configurando um novo conceito de respeito mútuo e companheirismo. Outro tabu histórico foi se resolvendo também nesta época, como a participação de mulheres na banda e a convivência amistosa entre católicos e protestantes.
O maestro Egon Bohn pôde dedicar-se com mais intensidade após conseguir sua aposentadoria em 1975, pois até então todo seu trabalho com música era filantrópico e realizado nas horas livres. A partir desta data dedicou-se de corpo e alma para as atividades musicais de Gaspar, lecionando gratuitamente para os iniciantes da Banda e do Coro Misto e trabalhando como maestro destes dois grupos. Também preocupou-se com as questões públicas como a poluição sonora urbana, apresentando um projeto pioneiro na câmara de vereadores. Em 1977 organizou uma escola de música reconhecida pelo Departamento de Extensão Cultural da UFSC, possibilitando desta maneira um aprendizado musical de caráter laico e de grande competência técnica na comunidade gasparense. Hoje, esta escola está registrada com o nome de Escola de Iniciação Musical Egon Bohn, e ao longo dos anos 80 e 90 foi responsável pela formação inicial de diversos profissionais da música em nossa região, como sua filha, a musicista Celine Bohn Gaertner, maestrina do Coro Misto de 1988 a 2002, seu neto, o flautista Leandro Gaertner, solista da Orquestra de Câmara de Blumenau e professor de música na UNIVALI e o pianista Dayro Bornhausen, atual maestro do Coro Misto Santa Cecília e professor de música na FURB.
O Maestro Egon Bohn faleceu com 59 anos no dia 2 de novembro de 1988. A missa em homenagem foi realizada na Igreja Matriz de São Pedro Apóstolo de Gaspar, num dia silencioso e ensolarado, quando o tempo pareceu parar de tristeza com os acordes do Ave Verum de W.A.Mozart interpretado pelos seus muitos admiradores. Em uma homenagem póstuma publicada na época, o jornalista Silvio Rangel resumiu carinhosamente o que vem se comprovando nestes quase 20 anos: “Boa Noite Maestro! Teus discípulos te perpetuarão. Tua obra te imortalizará.” Egon Bohn foi mais que uma personalidade gasparense, foi um verdadeiro artista!

(Tive o privilégio e a honra de ser contemporâneo do Vô por 10 anos e 11 meses....Jamais iremos esquecer do “Ô... Zé!”! Tu estas presente na música e nos passarinhos!)

Leandro Gaertner - Escrito em Gaspar, dia 20.08.2007


Imagem: Orfeu (O.Redon)

domingo, 7 de setembro de 2008

VALE DO ITAJAÍ X VALE EUROPEU


O Vale do Itajaí é uma região com ótima qualidade de vida, comparando com o restante do Brasil e é quase unânime dizer que aqui se vive bem apesar de, é claro, termos nossas falhas e deficiências. Temos vários transtornos crônicos causados pela defasagem nas opções de transporte, por exemplo, temos também problemas sociais e tantas outras dificuldades encontradas em todos outros lugares.
Basta olharmos com atenção para notar que moramos em cidades de pequeno e médio porte, cercadas de morros e mato, perto de ótimas praias, são cidades até razoavelmente organizadas e limpas, cheias de belíssimos recantos naturais. Ao andarmos pelas ruas vemos sempre uma citação dos nossos antepassados que aqui chegaram com sua acolhedora arquitetura. Como nossas cidades estão bem próximas, não existindo um grande espaço vazio entre elas, numa média de 15 a 20 kilômetros de distância entre cada uma, seus habitantes acabam se integrando, tanto profissionalmente, culturalmente ou recreativamente. Somos alimentados pelo caudaloso e barrento Itajaí-Açú e pela mata de maior biodiversidade do planeta, a Mata Atlântica, que recentemente ganhou um parque nacional de preservação, fruto da longa e heróica luta de pesquisadores e professores de nossas escolas e universidades.
Vivemos em cidades interioranas e bem longe da alucinante rapidez e quase infinitas opções de uma grande metrópole. Porém, mesmo não tendo esse ar de grande capital, temos aqui instituições tradicionais e sólidas que favorecem a circulação de pessoas e sua formação, propiciando uma comunidade/ambiente cosmopolita. Uma dessas instituições é a própria identidade que vêm ganhando contornos mais definidos nas últimas gerações, a identidade do habitante nativo do Vale, sua herança européia, africana, ameríndia ou asiática, diluída, integrada e expandida nesses ares úmidos, espalhada pelas brumas que saem das pirambeiras verdes todas as manhãs.
Chamarmos nosso Vale do Itajahy de Vale Europeu é negar tudo isso! É negar a realidade, as belezas e as feiúras, todas as dificuldades AQUI enfrentadas por nossos antepassados, nossa identidade calcada no trabalho e nossa sofisticada interpessoalidade. É também não estar ciente que a Europa, por exemplo, não aboliu os trens nos anos 60, pelo contrário soube manter e aprimorar as malhas ferroviárias intermunicipais, inter-regionais, nacionais e internacionais. Lá os rios não são esgotos desde a primeira metade do século XX (além disso, são usados como meio de transporte), não tem favelas na periferia e na administração dos recursos públicos têm menos lugares para diletantes.
Aqui, justifica-se a alcunha Vale Europeu como sendo um chamariz turístico! Isto é um ótimo exemplo de diletantismo. No Brasil, o Vale do Itajay já tem força suficiente e sustenta-se, como disse anteriormente, com suas instituições: temos universidades, teatros, tecnologia, grandes empresas, comércio especializado, festas de grande porte organizadas e seguras, boa qualidade de vida e identidade. Agora façamos propaganda disso tudo dentro da nossa exuberante paisagem e clima subtropical. Vamos dar um bom exemplo de turismo regional: alguém já ouviu falar em Alpes Gaúchos? Acho que não... Acredito que nossos vizinhos do sul estão bem contentes com a performance turística da sua Serra.
Essa ingênua e provinciana metáfora de Vale Europeu nunca vai atrair os turistas endinheirados da Europa, América do Norte e até mesmo os bons turistas brasileiros, que não são bobos e vão eles mesmos conhecer um vale europeu de verdade, com seus castelos, trens bala e muito frio. Os turistas não querem saber de pessoas disfarçadas e orgulhosas por uma ilusão fantástica, assim já basta a Coréia do Norte.


Imagem: Foto do Rio Itajaí e Morro do Baú (Gilberto Harbe)

Leandro Gaertner - Escrito em Gaspar, dia 05/06/05

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

O Maestro Bipolar



(Numa cidade periférica de um país periférico)

O flautista se junta aos outros músicos esperando o início do concerto na penumbra atrás do palco. São quase quarenta pessoas andando de um lado para o outro ou parados num canto tocando seus instrumentos. Enquanto tira os primeiros sons da flauta, ele cumprimenta com os olhos e com um gesto da cabeça os outros instrumentistas da orquestra que ainda não havia visto nos camarins. O flautista é mais um vulto esguio andando devagar entre cadeiras empilhadas, caixas, equipamentos de outros espetáculos e cordas presas a cinco andares de altura e, mesmo sem estar nervoso naquela noite, pensa na dantesca descrição de uma apresentação artística ao vivo dada por um professor seu: “O momento antes do concerto é o inferno, durante é o céu e depois, caímos de novo na terra.” Do outro lado do gigantesco biombo o público está chegando e logo procura se acomodar nos lugares centrais do grande teatro, mas para alguns ouvintes o espetáculo já começava ao entrar na espaçosa sala e ouvir a abafada e emaranhada confusão de sons vinda lá de trás.
Passando ao lado de um desconhecido oboísta, o flautista inicia provocativamente a primeira frase do concerto número dois para flauta e orquestra de Mozart. O oboísta pego de surpresa ajeita rapidamente as palhetas do seu instrumento e, sem se deixar abater, responde a provocação iniciando o mesmo concerto um tom abaixo.
- Este é o tom original.
- Eu sei. Mozart depois se arrependeu e fez uma nova versão para flauta.
Ambos riem da clássica piada entre flautistas e oboístas. A história conta que o genial compositor aproveitou mesmo o seu concerto já concluído para oboé e orquestra, o transpondo um tom acima para honrar a encomenda de um flautista numa corte distante. Mozart era também genial porque sabia se aproveitar das vantagens de viver no século XVIII.
O flautista já se aproximara de alguns oboés com essa velha brincadeira. A orquestra em que toca, como tantas outras, precisa importar oboístas de outros lugares, pois eles são músicos que vivem em ambientes restritos e em muitas localidades são até lendas. Um oboísta é uma criatura difícil de se encontrar e isto talvez ocorra pelas adversidades de seu caprichoso instrumento, pela dificuldade de se comprar um oboé que funcione, pela paciência necessária ao trabalho de quase artesanato com as palhetas, ou simplesmente por estar fora de moda. O fagote, seu parente mais grave e burlesco, se encontra em situação parecida. O flautista, como os demais instrumentistas da orquestra, sobretudo os de sopro, procuram logo estabelecer relações com estas célebres raridades, bem intencionados em conhecer seu habitat natural e ter notícias de terras promissoras.
Ele caminha na direção de alguns músicos que conversam em torno do piano de cauda. Sobre a empoeirada capa, que protege o grande teclado dos muitos dias de abandono, estão apoiados alguns instrumentos de corda e de sopro. Um dos músicos está falando como em ladainha sobre as inaceitáveis condições profissionais que esta orquestra oferece, não parece zangado e o seu rosto mal iluminado até tem um ar leve e condicionado de deboche. É um dos músicos “fixos”, um dos músicos que tem a promessa de salário e explica a um novato que talvez o pagamento saia após o concerto, pelo menos era o que se estava dizendo baixinho pelos corredores. O novato trompista então se mostra impaciente e pega seu instrumento de cima do piano várias vezes. Ele tinha vindo de longe há quatro meses e até agora recebera somente um pagamento. Concordava que foram quatro meses de pouquíssimo trabalho, mas isso não era problema seu, ele veio e estava à disposição do maestro, era um acordo! O músico do salário fixo dedilha seu violino para conferir a afinação enquanto fala outro rumor à meia voz: “Dizem que já liberaram o dinheiro esta semana, mas ele o está segurando até passar o concerto”. O novato da orquestra é um dos poucos que trabalha exclusivamente com música, ele balança a cabeça e vai com sua trompa fazer o aquecimento em outro lugar; percebe agora que tem um grande problema.
O flautista já ouvira aquela conversa algumas vezes, ele mesmo já fora um músico de pagamento fixo, agora é instrumentista convidado, um “cachê”. Em suas discussões sobre o funcionamento desta orquestra notava que a maioria dos músicos, mesmo descontentes, demonstrava sua infelicidade de maneira mecanizada. Reclamar era um reflexo automático ao ouvirem o nome da orquestra e, para quase todos, a orquestra era desqualificável por ser uma atividade extra. A maior parte dos músicos sempre fora a de amadores, estudando ou trabalhando em outras áreas que não a música e eles reclamavam sem na verdade se importarem verdadeiramente com aquilo. Pouco trabalho, pouco dinheiro, pouca estabilidade e pouca responsabilidade; ele demorou a entender que essa situação era até confortável para os músicos. A princípio, o flautista achava estranho os músicos aceitarem essas regras de uma remuneração ad libitum, mas agora, anos depois e mesmo com seu cachê de músico convidado aparecendo somente três ou quatro meses depois dos concertos, também entrara no jogo fingindo tocar numa orquestra. Esta condição lhe gera pensamentos tragicômicos, afinal, é uma orquestra conveniente para todos, inclusive para o público, que pode ir aos concertos sem pagar nada e se divertir com o colega do curso de direito arranhando uma viola.
*
Neste momento soou o segundo sinal de aviso e os músicos começaram a se dirigir com moleza para as coxias, ao terceiro sinal todos deveriam entrar. O flautista anda sem falar nada e ajeita um pouco sua gravata borboleta, olha em volta e vê aquele mar de rostos sorridentes e ansiosos, metidos em smokings e em vestidos longos de gala. Ele está relaxado com a execução da música, sabe que o mais importante é o simples acontecimento do evento, basta entrar no palco, esperar o primeiro gesto do maestro e fazer alguma coisa, quase qualquer coisa, o mais importante é que todos aqueles músicos estejam juntos no palco na mesma hora. Pensando bem, tocar com esta orquestra não é muito diferente de quando ele se apresentava no jardim de infância! Ele aperta os lábios com os olhos vidrados no piso de madeira e se enxerga fazendo parte de um episódio infantil.
Quando a figura do maestro surge fantasmagórica na porta e dá a ordem com uma voz nervosa e esganiçada para que todos entrem no palco:
- Entrem! Entrem rápido!
Os músicos, olhando uns para os outros, entram em cena sem muita convicção, caminham devagar e os primeiros até ameaçam voltar no meio do caminho, mas as mãos do maestro agitadas lá no fundo confirmam a ordem. O flautista também entra constrangido por estar fazendo parte de tal embaraço, com as luzes da platéia ainda acesas e sem os tradicionais aplausos. Enquanto vai se acomodando na cadeira e conferindo as partituras da estante com o programa do concerto, o flautista ouve alguns assobios e urros, “os torcedores já reconhecem seus amigos no show”, pensou ele. Sem muito jeito a orquestra inteira vai chegando ao palco e os músicos tomam seus lugares, alguns retribuem os urros com pequenos acenos e sorrisos. Sentado bem no meio, o flautista observa que a orquestra está com poucas cordas, tem até menos violinos e violoncelos de quando ele era um músico fixo. “Desta vez ele não chamou muita gente. Parece que alguns nem quiseram vir”, comentou seu colega da segunda flauta. Esta preocupação existe, pois em praticamente todo repertório sinfônico, as cordas devem ser numericamente bem superiores aos outros naipes, do contrário serão sobrepujadas pelo volume sonoro e o resultado artístico fica comprometido, quando não arrasado.
O spalla da orquestra entra tímido agradecendo a acolhida da platéia e, após todos os músicos estarem novamente sentados, olha para o oboísta. É o sinal para que o oboé dê o LÁ de afinação, o som daquele instrumento fantástico servindo de referência para todos os outros, um som quase extinto ressoa pela sala e todos se unem a ele comparando as freqüências. O flautista sabe que alguns instrumentistas no palco não conseguem fazer uma única escala com propriedade total, não podem repetir uma frase musical da mesma maneira e, para piorar ainda mais, a orquestra ainda tem esse desequilíbrio numérico entre as cordas e os demais naipes. Como o maestro pudera incluir no programa uma sinfonia de Tchaikovsky sabendo que contaria com esse time tão capenga?
O mestre de cerimônias entra em cena e vai até uma tribuna colocada na frente direita do palco. Com a entonação vocal impecável e a pronúncia de palavras estrangeiras um pouco atrapalhada, lê o histórico da orquestra, o currículo do maestro e alguns comentários sobre o programa que seria apresentado. O maestro, um homem de uns cinqüenta anos, não muito alto, com o rosto ossudo e o nariz aquilino, aguarda fora da vista da platéia, empertigado com seu fraque, dando os últimos retoques na sua caricata figura. Cada movimento seu obrigava suas mãos acudirem imediatamente um topete grisalho que se desmanchava. Enquanto ouve a televisiva voz do mestre de cerimônias, o maestro respira fundo e olha altivo para o teto do teatro, é o seu momento! Ao chegar à metade da leitura do currículo um burburinho chama a atenção dos músicos e os sentados mais no canto vêem o maestro desaparecer sem explicação porta adentro, empurrando os curiosos que ali se aglomeravam. Volta um minuto depois com o arquivista carregado até o queixo de partituras. As suas partituras eram extraordinariamente grandes, verdadeiros lençóis de papel, tudo para compensar seu problema de visão. O maestro volta à coxia esbravejando em silêncio com o rapaz que havia esquecido de deixá-las na estante antes do concerto enquanto, com os óculos escorregando pelo suor, o arquivista tenta desculpar-se em vão.
Este incidente merece uma explicação para esclarecer o deslize do pobre coitado. A orquestra conta com apenas três pessoas de cargos burocráticos que trabalham no suporte dos músicos: dois arquivistas-telefonistas-estafetas e o maestro. Os dois rapazes cuidavam dos serviços práticos, como servir as estantes com partituras, carregar cadeiras, telefonar para os músicos ou providenciar fotocópias, mas não possuíam nenhum poder de decisão. O maestro centralizava totalmente as decisões e literalmente era obrigado a se preocupar com tudo, até mesmo conferir se tinha frutas suficientes no camarim de um solista convidado ou acertar os cachês e transferências bancárias, por exemplo. Esta estrutura defasada acabava por deixar os dois rapazes diversas vezes em situações verdadeiramente vexatórias. Certa vez, numa apresentação da orquestra num palco ao ar livre em outra cidade, um deles foi obrigado viajar um dia antes com a responsabilidade de orientar na colocação dos microfones. Com a habitual ineficiência, a pernoite do rapaz na distante cidade não foi arranjada, forçando ele a dormir na caixa do contrabaixo dentro do caminhão de som.
Quando o mestre de cerimônias finalmente terminou de ler, o maestro indicou ao estafeta que colocasse a pilha de partituras em sua estante. A entrada do rapaz no palco naquele momento provocou reações adversas no público e nos músicos, que castigaram o chão com sapatadas. O maestro estava vermelho de raiva, mas ainda pôde lembrar-se do seu cabelo antes de finalmente se mostrar à platéia. Entrou rápido, quase correndo e de braços abertos. Cumprimenta o spalla com calculada elegância, olha para todas as seções da orquestra e estica os braços para cima empunhando a batuta na mão direita. Fica um instante imóvel nesta posição olhando para todos os lados... Conferindo se todos estão prontos... De supetão, extrai o primeiro som da orquestra com um golpe duro e preciso. Logo no início ele já parece se desesperar com o peso dos músicos. Seus gestos tornam-se cada vez mais longos e bruscos e a orquestra começa a atrasar muito o andamento da música. No desespero o maestro começa a cantarolar num volume perceptível até a quinta fileira de cadeiras da platéia, o que faz o tubista soltar uma sonora gargalhada. No mesmo instante o instrumentista é devorado com os olhos e após ficar vidrado na tuba por uns cinco compassos da música, um solo da flauta traz o maestro de volta. O flautista está concentrado e projeta o som da maneira mais pontuda e brilhante possível. O clarinete toca a mesma frase imitando com beleza o desenho sugerido pela flauta. As trompas entram firmes com uma clássica chamada das caçadas. Por alguns momentos tudo na música parece estar indo bem ou pelo menos de maneira aceitável. Aparentemente os músicos da orquestra, alguns já começando a molhar-se de suor por causa da luz intensa, estão atentos à partitura.
Vendo que a situação está governada, o maestro inicia uma série de trejeitos com caras, bocas e gestos exagerados, nitidamente querendo evidenciar sua personagem para o público. Enquanto o braço direito está esticado e rígido marcando a pulsação, o esquerdo fica apertado contra o peito de punhos cerrados. O maestro gira um pouco seu corpo e de cabelos desgrenhados se mostra ao boquiaberto público. O flautista executa a sua parte na sinfonia esperando que o maestro sinalize pelo menos as entradas que tem em conjunto com outros instrumentos. Nessas horas o papel de um chef d’orchestre é importante, orientando os instrumentistas para começarem ou terminarem simultaneamente. Porém, quando dois ou mais instrumentistas tem entradas complicadas, onde suas partes ficam muito evidentes e precisam tocar necessariamente juntos sem errar, é feito um acordo para que um deles dê o sinal, geralmente usando seu instrumento como batuta. O spalla, se conhecer bem a obra sendo interpretada, pode exercer esta função de sincronizador da orquestra inteira. O flautista e seus colegas de naipe estão trabalhando independentemente grande parte do concerto. Sentem que podem seguir o maestro sem medo somente nos grandes tutti, quando a orquestra surge com toda sua sonoridade e ele não vacila em dar saltos e chacoalhar os braços freneticamente.
Nas partes expressivas e lentas da música, os mais desavisados da platéia se derretem ao ver o maestro se curvando em posição de prece. Com a testa franzida e de olhos fechados vira-se para a câmara filmadora colocada ao lado do palco e pede silêncio aos músicos com o dedo indicador escorregando pelos lábios. Todos instrumentistas riem por dentro. O último acontecimento desta sinfonia é um tutti fortíssimo onde o naipe dos instrumentos de metal encobre com facilidade o resto da orquestra, o maestro então vibra em todo seu desvario, de olhos esbugalhados e boca escancarada, cortando a tremenda massa sonora com as mãos fechadas para o alto. Uma cachoeira de aplausos despenca e o maestro ainda fica olhando como um predador para o tubista antes de se virar para o público.
O convulsivo homem de fraque desce do tablado e dirige-se com passos firmes para a parte de trás do palco. Os músicos arrumam na estante as obras da segunda parte do programa. Sentem-se sobreviventes de um desastre que quase aconteceu. A regra número um para qualquer intérprete é: Não pare! E a número um para o músico de orquestra é: Na dúvida, não toque! Os músicos souberam respeitar bem isso e, mesmo enchendo a composição de buracos (pausas não escritas pelo compositor), não deixaram a música parar.
A segunda parte começa sem que os músicos precisem sair do palco. O maestro retorna sorridente e com o cabelo refeito. Ao posicionar-se novamente sobre seu estrado e passar os olhos sobre os músicos, repara no spalla remexendo as partituras nervosamente. O maestro dá um sorrisinho e recolhe os braços, espera alguns segundos, olha mais uma vez para a orquestra e vê com o canto do olho que seu spalla ainda não encontrara a partitura da primeira música. Todos os músicos vão se ajeitando confortavelmente em suas cadeiras, recolocando os instrumentos no colo e aguardando o desfecho de mais um imprevisto. O maestro se vira para a platéia e começa em tom teatral:
- Senhoras e senhores, a música é o enlevo d’alma. Nada melhor que uma orquestra sinfônica para expressar as idéias dos grandes gênios. A nossa cidade orgulha-se de ter uma orquestra como esta que luta há anos contra mil inimigos em busca do reconhecimento, desejosa de colocar-se honradamente entre os mais gabaritados grupos do gênero, no país e, porque não, no mundo. Venho lutando com punhos de aço em prol da formação de instrumentistas e de grupos camerísticos com o objetivo de incentivar a música sinfônica. Temos tido algumas adversidades, mas nem por isso deixamos de lhes trazer aqui um trabalho digno do mais alto nível artístico.
Neste momento ele pára e respira longamente. Tira do bolso do fraque um lenço para secar algumas lágrimas que caíam.
- Quero externar minha profunda gratidão ao poder público que, com a presteza e a sensibilidade do senhor secretário vem colaborando com a manutenção desta instituição, suprindo todas as carências deste reduto, desta ilha da grande música em nossa comunidade.
O spalla olha para o maestro no auge da sua teatralidade e sinaliza negativamente. Está realmente sem a primeira música na estante.
- Peço as mais humildes escusas ao caríssimo público para uma pequena mudança no nosso programa. Não interpretaremos a primeira obra, seguindo o concerto a partir da segunda.
Vira-se para a orquestra com o rosto contraído; fala com os lábios cerrados tornando seus maxilares ainda mais pontudos: “Le Toreador! Le Toreador!” Os músicos se apressam e quando já estão quase todos prontos, o maestro vira-se novamente para o público, curvando-se como se estivesse agradecendo a aplausos. Surgem palmas esparsas pela platéia que estava e silêncio esperando pelo início da segunda parte do concerto. O maestro sorri forçadamente e gira sobre os calcanhares de braços erguidos, dando o sinal para orquestra. Muitos ainda são pegos desprevenidos com tamanha encenação, principalmente os músicos convidados que estão lá pela primeira vez e estes, na verdade, ficam rindo a maior parte do tempo. A música começa com meia orquestra, mas em poucos compassos, como um carro velho morro abaixo, ganha força. O maestro incentiva o público a bater palmas no ritmo da música e dá pinotes sapateando como um sevilhano no seu pequeno estrado. Quando chega o tema mais lírico deste breve excerto operístico, ele passa a acariciar seu próprio peito como símbolo de toda expressividade e emoção que sentia. Esta seção não é muito longa nesta música, porém é o suficiente para o maestro tirar de novo seu lencinho do bolso e secar os olhos. Ao retomar o tema anterior em tutti, o teatro quase vem abaixo com as palmas ritmadas da multidão já em algazarra. Alguns músicos dos sopros não conseguem conter o riso e param de tocar. O tubista toca batendo com os pés no chão e o maestro rodopia enlouquecido sobre si mesmo, dando o último sinal para terminar a música no meio de um salto para fora do estrado. Agora atinge a sala uma tempestade de assobios, urros e palmas empolgadas.
O flautista está se divertindo como os outros, mas sabe que para alguns ouvintes a orquestra não está cumprindo a sua promessa. No próximo número, uma valsa que os músicos já tocam há bastante tempo, o maestro sai do palco e tira uma espectadora risonha para dançar no meio do corredor central. Ele ainda consegue voltar no tempo justo de dar o corte final em grande estilo. A última música é uma polca tocada pela orquestra num andamento muito rápido e certamente bem conhecida de boa parte dos ouvintes. Agora o maestro convida uma criança para assumir seu posto, lhe entregando a batuta e ensinando a mexer os braços para cima e para baixo no ritmo da música. O flautista entende que toda esta cena do maestro acaba sendo um grande empreendimento. Havia recrutado aquele monte de músicos das maneiras mais variadas, convencido o público a comparecer e, finalmente, tinha oportunizado um momento especial para seu recado. Apesar de todos os disparates e incongruências ele tinha conseguido.
*
Uma boa orquestra não é muito diferente de um grande clube de futebol, tomando como base para esta observação o funcionamento de sua estrutura. Ambos os casos, independentes de sua evidente diferença de natureza, necessitam de uma boa dose de estratégia na estruturação. Para começar, uma vez que os interesses de investimentos existam, podendo ser de ordem privada ou pública, uma equipe competente e com claro direcionamento deve se ocupar dos enlaces práticos. O estabelecimento de uma sede, a contratação de profissionais de suporte, o projeto dos objetivos e a prestação de resultados aos investidores são somente alguns exemplos de primeira ordem. O maestro e os músicos instrumentistas, como o treinador do time e seus jogadores, encontram-se na estratosfera da organização. O flautista analisa sua orquestra sob este ângulo administrativo e se vê jogando uma pelada num time de várzea.
Antecipando uma melhora progressiva e sustentável de sua instituição, a administração também deve se preocupar com a fundação de uma escola. Alguns times de futebol chamam esses centros de ensino de “escolinhas de base”, que garantem boa parte da formação de atletas dentro do próprio clube. Isto ameniza naturalmente a necessidade de contratações externas que encarecem o funcionamento do sistema. Uma escola de música pode cumprir uma função semelhante ao ensinar os instrumentos da orquestra, igualmente amenizando gastos a médio e a longo prazo com convidados e cachês. As diferenças entre essas hipotéticas escolas são óbvias, mas talvez a mais chocante seja a manutenção de professores instrumentistas verdadeiramente capacitados num sistema de ensino tradicionalmente individual. Na escola de música os resultados são lentos e os instrumentistas ficam prontos quase a conta gotas; nem sempre os investidores podem ter este luxo romântico. Algumas escolas ainda podem surgir como projetos secundários, uma conseqüência saudável de uma orquestra bem estruturada que conseguiu firmar seus investimentos e tornar-se necessária à comunidade.
O flautista é um dos três ou quatro músicos da orquestra que possuem a formação específica de instrumentista. A grande parte dos membros são oriundos de pequenas escolas particulares, que não ultrapassam a formação de amadores ou então, de músicos vindos de instituições que observam a substância artística através de um telescópio lunar, como as religiosas e as militares. Durante os ensaios, o maestro roubava tempo em explanações professorais na tentativa de contextualizar histórica e estilisticamente as obras tocadas; e a orquestra acaba se tornando um grande laboratório cheio de inexperientes instrumentistas de boa vontade, comendo e defecando ao mesmo tempo estas esparsas digressões.
Naquele final de concerto o flautista sentia seus pensamentos meio ácidos e amargos enquanto secava e guardava sua flauta no estojo. Lembrou-se de uma conversa que tivera com o maestro meses atrás ali no café do teatro. Sua relação com ele sempre fora de bastante polidez, enxergando nele um homem culto e excêntrico. Apesar de seus revolteios no palco e outros descomedimentos, o flautista ainda o considerava um cavalheiro, mesmo que sendo apenas um personagem assimilado e, como um verdadeiro cavalheiro, o maestro lhe fez o convite para tomarem um capuccino. Naquele encontro o flautista lembra que tentara arrancar informações sobre os projetos e planos do maestro em relação à orquestra, afinal a orquestra era o maestro e, por causa disto, dava a insegura impressão que tudo poderia acabar a qualquer momento, apesar de suas seguidas imprecações de positividade. Com estas inquietações, é evidente que o flautista pensava no seu próprio interesse e futuro como músico. Também aproveitara para fazer alguns comentários diplomáticos e sugerir algumas idéias.
- Por que não diminuímos a quantidade de músicos fixos na percussão e nos sopros, incrementando as cordas e deixando a orquestra mais enxuta? Assim montamos uma orquestra menor e mais equilibrada para fazer o repertório do classicismo, uma orquestra clássica.
- Isso não é possível meu caro. Precisamos de volume. Tchaikovsky, Brahms e Beethoven precisam de uma orquestra grande. Estamos no caminho certo!
Por algum motivo o maestro falava o nome dos compositores com um carregado sotaque estrangeiro.
- Concordo que os românticos precisam de uma grande massa sonora. Eu sugiro termos uma orquestra com base menor, tocando bastante repertório pré-romantismo, música sinfônica nacional, excertos de ópera, tudo coisa que já fazemos. Quando tocarmos este repertório mais pesado, chamamos os cachês e isso até ajudaria a estabilizar os repasses de pagamento.
- Os repasses estão sendo providenciados e acredite mestre, estamos no caminho certo! Como vão os ensaios com o quinteto de sopros?
-Está devagar, maestro. O oboísta daqui é muito iniciante e o trabalho fica sem ritmo. É complicado. Ninguém está animado.
- Muito em breve vocês terão trabalho. Sou autor de um projeto para a compra de 29 oboés, 29 fagotes, 29 trompas, 29 clarinetes e 29 flautas. Veja bem mestre, teremos 29 quintetos de sopro em nosso estado. Estamos trabalhando por estes recursos de mais de um milhão. Seremos um dos centros musicais do país!
O flautista depois desta conversa foi desistindo da orquestra e se tornou apenas um turista descomprometido, um músico convidado para cachê. Sabia que o maestro era um grande entusiasta, só não sabia como ele pretendia encontrar 29 oboístas e fagotistas por aqui. Ou ainda, não sabia como seriam encontrados os 145 instrumentistas de sopro merecedores dos instrumentos que supostamente viriam com este projeto. O tempo passou e este projeto evidentemente não aconteceu e o único quinteto que existia morreu esquartejado, com suas partes espalhadas até a Europa.
No fim do concerto todos saem alegres, não importa o resultado. O flautista tira a gravatinha e, com a flauta escondida na mochila, acompanha soturnamente os outros músicos pela saída dos fundos. Agora vão todos entre risos e ladainhas tomar cerveja.


(Qualquer semelhança é mera coincidência...)
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Leandro Gaertner
Itapema, Janeiro de 2006 e Janeiro de 2007

Imagem: Foto de 1862 - Duque de Bolonha com um paciente-vítima de eletro-choque.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

---------- A NOITE ----------


Ao sair muito rápido da avenida principal e entrar numa rua menor com paralelepípedos dirigindo um pequeno carro, o músico percebe que a lua está cheia, confere o seu caminho e olha de novo para cima, repara vagamente na silhueta de alguns telhados, nas nuvens indefinidas e nos galhos mais altos das árvores que se alongam encurvados e finos em pequenos movimentos. O carro rápido acompanhado do borbulhante barulho dos pneus sobre o calçamento de pedras passa tão veloz e com um trajeto tão certo que quase não dá para notar o contorno das casas, as sombras, a vegetação escura e os cantos não iluminados. Estes detalhes são fugazes e o músico não consegue ir além da observação, não pode estacar num olhar mais particular em busca daquele prazer incompreensível e nostálgico, que às vezes pode até ser um pouco aborrecido; logo nem pensa mais na noite e seus folgados pensamentos anteriores tornam-se incompletos, precisa se ocupar dos cruzamentos do trânsito. Então ele continua a ponderar com agradável liberdade que, no meio de uma cidade, a noite só pode observar e, ele mesmo, não pode mais que observá-la, existindo um corte preciso entre eles.
Para ele existe a possibilidade da noite e de todas as suas coisas secretas deixarem a simples condição de observadas, como se fosse um cenário, para tornarem-se determinantes nos fatos. Nesta seqüência de fantasias, a noite só deixa sua condição de observada quando o observador a percebe e sente medo; nessas horas o observador percebe-se dentro da noite e é envolvido! O músico só pôde ter estes aforismos enquanto dirigia porque já havia experimentado o medo, aquele medo que é o “único aviso” capaz de tornar a noite perceptível, nas idas solitárias à casinha de madeira do sítio. Neste lugar não há saída, quando escurece e as horas passam é fácil notar-se dentro da noite com toda a intensidade. A casa está incrustada no fundo de uma estreita várzea e cercada de altíssimos paredões de mato, é uma fenda que parece ser o núcleo, o próprio centro gravitacional da noite. Quando ela chega é melhor nem abrir a porta e sim ficar dentro com a companhia do fogo, da flauta, do vinho e de outras coisas iluminadas e aquecidas no interior daquela casinha de cem anos. Na casinha do sítio, longe da cidade e dos vizinhos, somente com os sons vindos do riacho, do vento e da mata, o músico percebe a noite completa por causa do medo. Quantas vezes já ficara paralisado enquanto estava quase dormindo, deitado a espera do fim de alguma coisa que arranhava a parede pelo lado de fora. Era um instante que o coração parava e a casa inteira tremia até ele lembrar-se que o gado estava solto e fazer uma citação cheia de alívio de seu pai “o boi é um bicho curioso...”. Ou quando, concentrado na sua mastigação durante o jantar, era surpreendido por uma avalanche de galhos quebrados descendo do morro. A escuridão insondável que cerca a casa com seus infinitos eventos sonoros lhe assusta, mantêm os sentidos em alerta e jamais o deixa esquecer que está no meio e completamente à mercê dos sustos da noite. É difícil dizer se existe um lugar mais amado neste mundo.
Ao fazer o trajeto entre a casinha do sítio e o vizinho, distante uns quinhentos metros por uma estreita estrada de capim roçado, o músico vibra num temor eufórico nos primeiros passos, certamente os exatos dez segundos ensinados pelo seu avô para fechar os olhos e acostumar-se com a escuridão, alguns instantes antes de controlar-se e começar a assobiar. Quando fica quieto e caminha cadenciadamente atento onde está, a noite torna-se densa e a sua textura palpável. A pele é atingida por baforadas de ar quente e logo em seguida gelada por um ar frio que parece ter sido mandado direto no rosto. Ele pára um pouco para saber de qual direção vem esta corrente fria, de onde vem este calor tão confortável, será que existe algo respirando bem na sua nuca? Enquanto caminha na escuridão, guiando-se por um traço tênue na estradinha, rodopia nessas imagens informes e instáveis, às vezes sendo tudo rasgado de repente por um gemido agudo vindo de algum lugar do mato sobre sua cabeça. Este percurso é completamente diferente nas noites de lua cheia. Nestas noites mais claras, a passagem pela estrada fica mais fácil e o próprio ar mais leve, a noite recua para as encostas do morro e observa o caminhante passando reto em direção à luzinha depois da curva. Quando não tem lua o caminho precisa ser aberto à força!
O músico viu a noite incompleta enquanto dirigia na cidade, pois apenas podia observá-la, mas os estranhos ruídos vindos da escuridão do lado de fora da casa do sítio fazem com que a noite possa ser imaginada. A imaginação é a chave desta representação, é ela que transforma as sombras em seres desconhecidos e fantásticos, os sons da noite em avisos. A imaginação nos encurrala na claridade, nos faz espreitar pelo cantinho da janela, é ela que faz o músico voltar para junto do fogão e tocar mais um prelúdio de Bach. A verdadeira noite traz irremediavelmente pensamentos sérios por causa do silêncio das coisas conhecidas, o provocador da expectativa. Esta expectativa provocada é ansiosa, é o puro medo, mas não o medo de violências humanas ou de simplórias sobrenaturalidades, é um medo mais indizível, do irreal e do invisível, o medo impelido pela imaginação, que quase nos faz sair andando noite adentro ao encontro das criaturas mitológicas; será que é assim que elas se criam? Então, este ciclo de contornos impressionistas fecha-se quando ocorre o silêncio, a expectativa e a transfiguração da noite através da imaginação. Para o músico, neste lugar sua flauta pode tornar-se fantástica ao ecoar e misturar-se pelas pedras, raízes e árvores da mata escura, onde se escondem e brincam as criaturas impossíveis.
Nas cidades conhecidas ou nas estranhas em qualquer país, a noite é a mesma e sua essência extraordinária permanece constante e inflexível. Para os caminhantes atentos ao que acontece nos grandes e velhos jardins, ao muro arruinado coberto de hera ou nas partes mais desviadas dos parques, a noite continua instigando a imaginação, provocando a beleza dos contrários ao sustentar no ar os arrepios do temor e da curiosidade, o desejo de ficar horas ali como espectador. O músico dentro de seu carro atravessa a noite com estes pensamentos, aguardando o momento de reencontrar com mais calma alguns destes segredos tão fabulosos.

(Escrito em: Gaspar, Julho de 2006 e Janeiro de 2007)

Imagem: Caçador na Floresta (Caspar David Friedrich)


Leando Gaertner

domingo, 27 de julho de 2008

Música como Conhecimento



Quando criticamos a opinião política de alguém ou quando defendemos com convicção nossa própria escolha religiosa em detrimento de outra, apesar de serem campos de pensamento distintos, certamente estaremos provocando uma discussão conturbada à mercê das reações mais inflamadas. Agora, a despeito desta fantástica liberdade que temos em nossa sociedade, se quisermos nos intrometer no gosto musical alheio, uma briga muito séria pode estar começando, pois como se diz “gosto não se discute”. Não deveria ser assim! Gosto musical se discute sim, como se discute o gosto para a literatura, para o cinema e para as outras formas de arte. O gosto não pode ser imposto, mas deveria ser discutido sim, já que a música é uma forma de conhecimento, ou seja, pode ser aprendida e estudada.
Em relação às outras artes, a música se encontra numa situação peculiar: por quê é mais fácil assumirmos uma postura humilde de leigos frente a uma pintura complexa ou a um texto literário intrincado do que quando ouvimos uma música nova e difícil? De um modo geral, com a música parece ser mais fácil simplesmente falar que não gostamos, que é música ruim e pronto. É óbvio que uma discussão desta natureza se envereda pelas questões da política de educação musical nas escolas brasileiras ou até da antropologia cultural, mas sem entrarmos neste mérito, muito poderia ser resolvido se tivéssemos um pouco mais de cuidado, paciência e disponibilidade para um novo conhecimento.
Acredito que um bom ponto de partida é entendermos que nem tudo que não gostamos seja necessariamente ruim. Podemos ser mais curiosos e querer saber, por exemplo, por qual razão esta música é tão desconfortante, ou como que esta canção traz associações com imagens da cavalaria medieval... Podemos aproveitar o que nossa era tem de melhor, o acesso à informação armazenada, e nos divertirmos com centenas de anos de história da música gravados bem ou mal por músicos dos últimos cem anos. Podemos investigar como é a música em outras culturas através de grupos especializados, investigar que tipo de música está sendo produzida nos círculos acadêmicos ou, simplesmente, ficarmos bem atentos ao que está acontecendo nas salas de música de nossas cidades.

Recomendação: Cds do grupo curitibano Terra Sonora.


Leandro Gaertner
Itapema, Fevereiro de 2008.