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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Porte ilegal de flauta

Já perdi diversos objetos no raio-x dos aeroportos. Por puro descuido e esquecimento tentava entrar num avião com um saca-rolhas ou com uma moderna chave de fendas dentro da mochila. Então, com aquele sorriso amarelo e compreensivo, entregava minhas aquisições pontiagudas aos fiscais da segurança de voo. Nunca fui perguntar para ninguém da área, mas imagino que ser funcionário da alfândega ou o pessoal do raio-x do aeroporto tem suas belas vantagens: já soube de funcionário implicando com caixas de vinho para consumo pessoal... Que chato deve ser apreender uma caixinha de vinhos bem escolhidos numa das lojas “Nicolas” de Paris... Ou então implicar com cremes comprados no Duty Free, devidamente embalados e grampeados. Isso não importou aos funcionários do Aeroporto de Lisboa. Mas repare na estratégia deles: você chega em Lisboa com compras de cremes e perfumes numa sacola lacrada do Duty Free de Recife, por exemplo. Os guardas do aeroporto dizem que a quantidade é ilegal para ser levada como bagagem de mão e obrigam o passageiro a despachar os produtos. Misteriosamente quando abrimos a mala em casa notamos que ela foi revirada e que alguns dos cremes sumiram. Por isso lembre-se, se isso acontecer, passe o cadeado na mala, é bom não contar com a sorte de encontrar um funcionário honesto.
Mas isso não tem nada a ver com o detector de metais e o raio-x. Lembro bem de um episódio muito engraçado no aeroporto de Florianópolis alguns anos atrás, acho que em 2003. Na noite anterior a uma viagem de turismo familiar para Natal toquei num concerto em Florianópolis e no repertório tocamos o famoso concerto para violão de Joaquim Rodrigo, aquele do famoso solo de corne-inglês no segundo movimento. Por coincidência o tocador de corne-inglês do nosso concerto era importado de Porto Alegre e acabamos nos encontrando no aeroporto na manhã seguinte. Lá estávamos nós, com objetos estranhos dentro de nossas mochilas, instrumentos de sopro pontiagudos e ameaçadores tentando passar pelo crivo do raio-x. A flauta passou bem e as caixas do oboé e do corne-inglês também, mas a caixinha de ferramentas do meu colega, com suas minúsculas chaves de fenda e afiados estiletes, inevitavelmente criaram a tensão de um ataque terrorista em potencial. Então, o músico das canas polidas se viu obrigado a pegar uma de suas palhetas e demonstrar aos atentos funcionários do aeroporto de Florianópolis a serventia de suas ameaçadoras lâminas, tirando uma lasquinha de madeira e fazendo aquele som peculiar das palhetas sem o instrumento. Foi um verdadeiro show que o autorizou a entrar no avião com todas as armas.
É claro que fazer o que ele fez não é assim tão complicado e naquela época ainda contávamos com a ingenuidade do sistema. Porém isto não é mais possível. Nesta minha última vinda a Recife, três dias atrás, tive uma surpresa. Como sempre, coloquei minha flauta na mochila que pretendia colocar dentro do avião, um pouco acima de minha cabeça, não longe dos meus olhos. Alegre e faceiro como um Mr. Bean dos manguezais catarinenses atravessei o detector de metais e aguardava do outro lado a chegada da esteira com minha mochila e sua preciosa carga. Foi quando a guardiã da segurança me perguntou: “Isso é uma flauta?” Num pensamento estranhei que ela sabia o nome do meu instrumento, coisa rara nesses lugares. Disse que sim e então vi que o mundo tinha girado mais um dente de sua enferrujada engrenagem rumo ao futuro. “Você não pode levar seu instrumento com você, precisa despachar como bagagem.” –“O quê? Mas por quê? Eu sempre levei comigo!” Numa rápida e civilizada discussão todos soubemos que eu tinha vindo da França no fim de junho, que essa lei era nova e tinha cerca de um mês, que proibia o porte de objetos metálicos circulares e compridos, como uma flauta transversal. Imagine então os estiletes do meu colega oboísta... Confesso que já sabia que a flauta é realmente uma arma em potencial. Amasse o bocal com jeito e tenha uma bela faca de prata maciça, ou tire as chaves do corpo do instrumento, depois amasse engenhosamente e tenha quase uma lança. Isso eu penso sempre quando entro num banco e preciso conversar com o segurança por causa do detector de metais da porta giratória. Abrindo a caixa da flauta em frente aos olhos curiosos dos vigias já tive a sensação de quase conseguir um aluno. Se realmente eu for profissional, montar e tocar um pouquinho, acho que já conseguiria a confiança instantânea, tipo aquela amizade frouxa e despreocupada de desconhecidos que vão com a sua cara, na melhor das hipóteses talvez até mesmo do gerente do banco. Depois de algumas semanas é só entrar armado e fazer a festa fantasiado de flautista de Hamelin. (Acho que essa estratégia não foi tentada ainda nem em Hollywood)
Três dias atrás no aeroporto de Florianópolis, acusado por porte ilegal de flauta, tive que correr emburrado até o balcão da companhia aérea, e despachar minha mochila com a flauta e minha querida pastinha amarela “Flauta Solo”, com as Fantasias do Telemann, Sonatas da Família Bach e outras. Ao finalmente sentar muito mal humorado na poltrona do avião, ao ponto de pensar “se essa merda cair, caiu...”, e já começar a ficar entediado com a espera e ter que me contentar com a revista da própria companhia, lembrei do livro que pretendia continuar lendo e que agora também estava amargando o desconforto no porão do avião: um livro de Shlomo Sand “Comment le peuple juif fut inventé?”(Como o povo judeu foi inventado?”), que comprei junto com o livro de Paul Veyne, que já terminei de ler, “Quando o nosso mundo se tornou cristão”...
Mas também pensei numa outra possibilidade para o confisco intransigente de minha flauta. Que talvez os funcionários do aeroporto de Florianópolis não queriam mesmo era o perigo de um flautista com sua flauta a bordo: vai que o flautista desata a estudar a terceira oitava em pleno voo, ou pior ainda, fica travado num dos compassos do terceiro movimento da sonata do Poulenc! Como minha família já teve paciência comigo...

Leandro Gaertner
Recife, 8 de outubro de 2010.
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3 comentários:

Anônimo disse...

Caraca Lê...como pode isso? Ser acusado de portar uma flauta...Que carma o teu guri...
Agora...sobre o texto...estou me deliciando cada vez mais com ele... chega a ser divertido...e tu sabes que é uma arte poder escrever e ainda com humor, os proprios infortúnios.

~leandro gaertner~ disse...

Até que não vi como um infortúnio próprio, a não ser que seja um infortúnio coletivo, o que aí sim é de verdade... e muito menos carma..hehe o lance não é só comigo...mas é claro, a piada é minha hehe...

R., R., Rosa disse...

o policial federal do primeiro texto não me pegou tanto quanto a arma-branca-musical em potencial que uma flauta pode ser!