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quinta-feira, 10 de setembro de 2009

T R A N S F I G U R A Ç Ã O

A absorção de um homem por uma árvore

A última lembrança em movimento é de uma caminhada lenta e curta através de um jardim úmido, ainda consigo lembrar vagamente da grama verde e pegajosa roçando talvez os meus pés. Esta é a última lembrança que tenho de minha respiração. Agora puxando com força pela memória lembro do impulso que tinha em me derreter pelo caminho, mas somente posso supor que seja um derretimento, não está muito claro como tudo acontecera. Não consigo dizer se era dia ou noite, nem mesmo arriscar uma hora aproximada, o tempo era muito parecido com o tempo de um sonho, impreciso. Talvez esta seja a única certeza, a certeza de que não era um sonho. Nem mesmo poderia entender como ainda é possível refletir e ter estas lembranças, mesmo que vagas e confusas. Ainda estou vivo? E por quê não estaria? O que resta é uma forma de pensamento incompleto e está mais para um delírio, uma alucinação, como um espasmo retrógrado de memória do que para um pensamento do passado. Nem mesmo tenho certeza se estas lembranças são mesmo só lembranças ou são todo o meu conhecimento, se é tudo o que tenho. Pensar em uma última lembrança implica obrigatoriamente na existência de pensamentos anteriores, ou então, em uma vida anterior. Mas, sobre esta vida não sei mais nada. Só consigo pensar na sensação da grama úmida e cada vez mais entranhada nas minhas sensações. Nem tenho certeza da existência de algo para além disso. Como poderia? Se o que vem aos meus sentidos é uma caminhada lenta e curta através de um jardim úmido e fora do tempo cognoscível? É menos difícil explicar tudo pela simples inexistência, minha própria inexistência antes de minha lembrança mais remota. Para mim a vida real é diferente desta débil recordação e nem precisaria mais pensar nisso. Estas memórias só persistem por capricho. Para longe destes flashes insondáveis, minha realidade se impõe inexorável. Até este pensamento não surge mais do que um clarão passageiro, fugaz e está por completo à mercê dos sentidos primários. Estes sim. Estes sentidos me fazem explodir! Distante da reflexão, que não consegue passar de um esforço efêmero e até inútil, a realidade, a minha própria existência, algo como um tempo presente, está escancarada em todos os níveis. Nesta condição primária e original tudo faz sentido e tudo está conectado. Isso eu posso explicar e não ter dúvidas. Não poderia ter nenhuma dúvida de uma realidade tão intensa e vibrante. Apesar destes ecos, sussurros de uma memória estranha, a plenitude da realidade é latente. Não existe nem dor nem conforto, só existe o mais simples e direto, a existência transparente e irrestrita, como estar em uma fortaleza invisível. Tudo está latejando, desde os pontos mais indiferentes, onde quase nada pode ser sentido e só existe um fraco sinal de sensibilidade, até os menores e mais sólidos poros vitais. A intensidade de minha existência é tão fantástica que dá a impressão de imortalidade, mas sei que isto é irreal, nada tão vivo e tão caloroso pode ser tão forte e perene. Através de meu ser totalmente esticado tudo flui sem nunca parar. Sou esticado, alongado, puxado pelas extremidades, como um puxão que me retorce aos poucos, mas não deixo de sentir a pressão sólida e seca que é o principal, a solidez rude parece ser o mais primitivo, original e o próprio fim. Todas as pulsações, até as mais sutis, são compactas, quase que esmagadas, e assim as percebo por causa de sua brevidade. Só que a aspereza dominante não sobrepõe por completo e nem pode esmagar as pequenas palpitações, estes mínimos respiros, semelhantes a minúsculas gotas de vida surgindo e morrendo por todos os contornos do corpo. As frestas e poros deste corpo são perpetuamente atravessados por um som grave e monótono, raramente alterado ou entrecortado, e o corpo de limites certamente intangíveis torna-se também uma esponja, a despeito de sua dureza, e filtra e transforma a soma de todas as frequências. Da mesma forma, a dureza não impede as rápidas adaptações de todas as partes para se manter em equilíbrio quando chegam inexplicáveis as rajadas de círculos invisíveis. Porém, quase tudo isto é simplesmente refletido para longe antes mesmo de ser capturado e acaba não passando de uma carícia, uma existência inteira entregue aos afagos da dança e à probabilidade de se tornar música. Quando penso no céu e no vazio consigo perceber, ou talvez só consiga imaginar, as curvinhas mais frágeis e quase sem sinais do meu ser. É através delas que mais percebo o que acontece, é assim que consigo pelo menos ter a sutil impressão dos meus limites. Nestas extremidades de incontáveis ramificações a vida está agarrada de maneira reveladora, mas displicente, chega a ser até jocosa. E a revelação consiste, sobretudo, na combinação de sentidos, no calor e nos primeiros sinais enviados a todo meu corpo que chegou a hora de ficar mais forte. A displicência irônica consiste na fragilidade e efemeridade desta parte, projetadas em direção ao nada, em constante improviso, se esticando cada vez mais, se contorcendo às cegas tentando lamber cada baforada de aquecimento. As sensações podem ser descritas como um pulso estável, em constante renovação, como um ciclo bastante perceptível e conduzido pelo tempo. Na última ponta da ramificação mais sensível dos limites de minha extensão, é ali que posso sentir com um pouco mais de singularidade. É ali que também posso perceber a passagem do tempo. Às vezes um sinal, já bastante leve e difícil de ser notado, vai enfraquecendo ainda mais, pouco a pouco e em progressão quase perfeita, até parar por completo e por algum tempo, daquele lugar, nada existir. Agora já aprendi que isto significa um desaparecimento, aquela sensação se perdeu para sempre e dela nunca mais terei notícias. Mas, deste mesmo lugar, naquela pontinha em forma de olho, de boca e de ouvido, não demora muito para que incríveis e minúsculos estalos iniciem novíssimos e inéditos sinais, totalmente singulares e reconhecidos pela minha velha pulsação. Aos poucos procuro sentir o todo e daquele ponto exato posso distinguir mais uma faísca vibrante, acenando e aquecendo. Em certos pontos, também nestes lugares mais extremados e ramificados, acontecem coisas ainda mais raras e maravilhosas! É quando uma incontrolável urgência se impõe sobre todos os outros eventos do ciclo habitual. Todos os sentidos se desligam por alguns instantes, em total descontrole, em abandono e irresponsáveis. Dali algo novo vai surgir, algo que parece não me importar mais, mas que consigo perceber como infinitamente original e único, algo que só poderia existir desta maneira, espontâneo e indomável. E assim desabrocha escancarada a minha síntese! Todas estas impressões são mínimas e precisam ser descobertas uma a uma entre minha rigorosa solidez. O prevalecente é o que chamo de sentidos primários, pois não precisam ser descobertos, são as sensações primeiras, urgentes, a identidade pura antes do pensamento reflexivo, um estado arraigado em profundidade, sem dor e sem prazer. Estou firme, vivo, em franca existência sorvendo as entranhas da terra. Esta sim é minha condição dominante, distante das nuances, uma existência fácil de resumir, em silêncio, absorvido em indeterminada espera.



Leandro Gaertner
Gaspar e Itapema, Setembro de 2009
Imagens: Árvore e flor Magnólia-branca (Magnolia grandiflora)
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