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terça-feira, 29 de setembro de 2009

Carta de Benjamin Costalat (1922)

OS OITO BATUTAS
Fujo um pouco ao normal deste blog ao incluir uma carta de 1922 do cronista carioca Benjamin Costalat ao jornal Gazeta de Noticias. Na época muito se discutiu sobre a ida dos Batutas à Paris, seu valor, sua qualidade musical, questões racistas (pois a maioria do grupo era de músicos negros), se seriam eles representantes legítimos ou não, adequados ou não, da cultura brasileira, que vivia momentos de afirmação nacionalista em pleno ano do centenário da independência... Esta história vai muito mais longe e foi maravilhosamente contada na tese de doutorado (que li muitos trechos emocionado e com os olhos marejados) de Luiza Mara Braga Martins, defendida ainda este ano no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
Este velho texto que segue não só merece, como precisa ser lido por todos os chorões e amantes da boa música! E o coloco aqui com muito orgulho por também ser um chorão, flautista, acadêmico boêmio, doctorant-bon-vivant, empenhado em continuar esta história, tocando Pixinguinha nas salas da Sorbonne!



"Foi um verdadeiro escândalo quando, há uns quatro anos, os Oito Batutas apareceram. Eram músicos brasileiros que vinham cantar coisas brasileiras! Isso em plena Avenida, em pleno almofadismo, no meio de todos esses meninos anêmicos, frequentadores de cabarés, que só falam francês e só dançam tangos argentinos! No meio do internacionalismo das costureiras francesas, das livrarias italianas, das sorveterias espanholas, dos automóveis americanos, das mulheres polacas, do esnobismo cosmopolita e imbecil!
Não faltaram censuras aos modestos Oito Batutas. Aos heroicos Oito Batutas, que pretendiam, num cinema da Avenida, cantar a verdadeira terra brasileira, através de sua música popular, sinceramente sem artifícios nem cabotinismo, ao som espontâneo dos seus violões e dos seus cavaquinhos. A guerra que lhes fizeram foi atroz. Como músicos eram bons, batutas de verdade, violeiros e cantadores magníficos. Como a flauta de Pixinguinha fosse melhor do que qualquer outra flauta por aí saída com dez diplomas de dez institutos, começaram os despeitados a alegar a cor dos Oito Batutas, na maioria pretos. Segundo os descontentes, era uma desmoralização para o Brasil ter na principal artéria de sua capital uma orquestra de negros. O que iria pensar de nós o estrangeiro?
Tive a honra de defender (e essa defesa foi das que fiz com mais entusiasmo em minha vida de jornal) os Oito Batutas naquela ocasião. Hoje, porém, tenho que voltar ao assunto: os Oito Batutas embarcam esta semana para Paris.
- Para Paris?
- Mas isso é uma desmoralização!
- Como é que o ministro do Exterior não toma providencia?
- Agora é que o Brasil vai ficar inteiramente desmoralizado!
Calem-se os imbecis. Calem-se os patriotas baratos. Calem-se os músicos pernósticos que fazem música das Casas Mozart e Artur Napoleão. Os Oito Batutas não desmoralizarão o Brasil. Levarão a verdadeira música brasileira, essa que ainda não foi contaminada por influências alheias e que vibra e que sofre e que geme por si, cantando luares dos sertões e os olhos da cabocla... Levarão o perfume das nossas matas, o orgulho das nossas florestas, a grandeza da nossa terra, a melancolia da nossa gente, a bondade e o amor dos nossos corações, ditos e cantados pelo verso simples e a música sublime da alma popular... Levarão o verdadeiro Brasil, desconhecido dos próprios brasileiros, mas formidável assim mesmo no enigma de suas forças e de suas aspirações...
- Mas são negros !
- Que importa ! São brasileiros !
Devemos procurar ser conhecidos na Europa tal qual somos. Com os nossos negros e com tudo o mais... Nada perderemos com isso. Temos uma personalidade internacional tão digna quanto as outras, e cumpre afirmá-la a cada instante:
- Somos assim. E se nos quiserem...
Detesto esses bons patriotas que, na Europa, querendo fazer propaganda desta terra, negam que no Brasil haja calor e negros, duas coisas que eles consideram bastante deselegantes.
- Mas, por que?
Porque consideram o calor e o negro duas coisas vergonhosas, se elas, primeiro, não o são e, segundo, são bem nossas, bem brasileiras? Eu quisera que no Brasil houvesse gente verde, gente de todas as cores, calor de enlouquecer, calor de matar, para poder afirmar com orgulho a existência de todas essas pretendidas calamidades aos europeus! E se eles se espantassem com o calor do meu país, eu me espantaria com o frio deles, se eles gritassem contra o sol, eu gritaria contra o gelo, se eles falassem contra o preto, eu falaria contra o branco, e assim não acabaríamos nunca! Não acabaríamos mesmo nunca! Cá por mim, não acabaria! Tenho muita coisa a dizer da Europa em reação às coisas que se disserem no Brasil!
Não é, pois, vergonha sermos conhecidos tal qual somos. Ao contrário, isso nos deve honrar.
Vergonha é sermos inteiramente desconhecidos. E é o que somos.
Noutro dia ainda, apareceu o Almanach Hachette, de 1922, que é comprado aos milhares e há anos, no Brasil, dando uma descrição fantástica da bandeira brasileira. Mas, uma descrição fantástica! O francesinho que a escreveu falara em linhas paralelas e nãosei mais quantas asneiras!
Isto é que é vergonha. E sem vergonha são estes livreiros daqui que vendem semelhante porcaria e não devolvem imediatamente ao Sr. Hachette o seu latrinário almanaque com um pouco de creolina.
Amanhã, também não teremos obrigação de conhecer a bandeira francesa. Podemos descrevê-la como entendermos. Com qualquer cor, com qualquer símbolo. E, naturalmente, o Sr. Hachette será o primeiro a protestar... vendendo mais caro os seus livros.
O sucesso dos “Oito Batutas”, em Paris, será grande. Será a revelação de uma música inteiramente nova na beleza de seus ritmos e de sua melodia.
Paris que eu vi, ainda há meses, festejar uma grande orquestra americana de pretos. “The Syncopated Band”, que tocava Beethoven e todos os clássicos com acompanhamento de buzina de automóvel, apito de trem, campainhas, latas velhas e os barulhos mais infernais e mais prosaicos que a imaginação mórbida do jazz-band conseguia inventar, uma orquestra que enlouquecia, uma música que dava cólicas; Paris, que foi em peso, de casaca, com luxuosíssimas toilettes, ouvir religiosamente todo aquele ruído ridículo no Theatre des Champs Elysées, naturalmente saberá fazer distinção entre nossos músicos e os palhaços americanos, os homens das latas, das buzinas e dos apitos...
Os americanos levaram barulho. Os nossos levam sentimento. O que saiu das latas, vai sair agora dos corações. A diferença é grande... Não é mais Beethoven com chocalhos que os franceses vão ouvir. É a música de uma terra e a alma de uma gente distante. Terra do luar, da cabocla, do violão... Terra admirável de sentimento onde até os coqueiros morrem de saudade!...
Tu não te lembras da casinha pequenina
Onde o nosso amor nasceu
Tinha um coqueiro ao lado
Que, coitado, de saudades já morreu!
E ouvindo as nossas modinhas, e ouvindo cantar as nossas noites de luar e o nosso sertão e os olhos das nossas morenas, e o nosso amor e as nossas saudades, muitos franceses hão de se comover. E no cabaret, estonteante de alegria e de luzes artificiais, muita cocotte, olhos fundos de crayon, lábios úmidos de champagne, há de chorar ouvindo a ‘asa branca da serra’ ou uma ‘casinha na praia’. Há de chorar, e com razão, a casa branca que ela nunca teve, nem na praia, nem na serra...
Chorarás, mulher!, mesmo sem compreender as palavras, porque a modinha brasileira fala pela voz de seu violão. E todos o entendem na sua linguagem cantante...
Chorarás a pequena casa branca da felicidade onde a garrafa de champagne é um riacho que geme mansamente todo o dia e toda a noite, e vem, puro, lá dos altos das montanhas infinitas... E compreenderás, enfim, graças à modinha, plangente mas feliz, que é ainda cá nestes maravilhosos sertões brasileiros que há um pouco de beleza e de felicidade espalhadas entre os homens..."
BEMJAMIM COSTALAT
Janeiro de 1922


Fonte: Museu da Imagem e do Som, Arquivo Almirante: Carta de COSTALAT, Benjamin, na Gazeta de Noticias, domingo, 22 de janeiro de 1922, p. 2, 7ª Coluna.
Foto: Jornal A Noite, 14 de agosto de 1922

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