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terça-feira, 1 de setembro de 2009

*Oma Irma*



O sol já subia há mais de uma hora quando uns passinhos abafados foram ouvidos na casa. A mulher põe seus chinelinhos de pano e vai um pouco encurvada pelo corredor em direção à cozinha, às vezes até parece querer se apoiar na parede, como se tivesse uma leve tontura. Passa bem devagar pelo degrau que dá acesso à copa, piscando os olhos encovados atrás dos óculos, vai até a caixa de lenha, escolhe uns tocos e os mete no fogão junto com umas folhas de jornal. A chapa começa a esquentar e um cheiro de fumaça se mistura na cozinha, ela amarra o avental espiando lá fora o pátio vazio e então coloca uma chaleira cheia de água no fogão a gás enquanto sua filha no andar de cima logo escuta as louças para o café. Quem a visse naquela manhã veria uma mulher pequena, cada vez menor, com uns 80 anos se movimentando com gestos lentos e automáticos. Para o velho corpo todo aquele ritual agora é feito com calma. A mais leve reação de um sentido é agarrada com atenção, como se fosse de importância vital, as mãos, os olhos e os ouvidos nunca estiveram tão unidos e a rotina é uma de suas melhores aliadas. Desse jeito a velhinha simplesmente continua indo em frente.
Hoje ela vive com seu marido doente que quase nunca fala e com sua filha mais velha. Para as tarefas mais pesadas ainda conta com a ajuda de uma empregada, antiga conhecida da família. O café da manhã, o almoço e o jantar são as obrigações da oma e todos os dias ela se entrega a isto com tamanha devoção que é difícil de acreditar não fazer tudo com verdadeira alegria. Nesta manhã ela tinha começado com o sol já alto, mas nem sempre acontecera assim. Muitos anos antes, também trabalhava no açougue da família ao lado da casa, quando o trabalho iniciava ainda de madrugada. Sua principal função diária era preparar a primeira refeição para os trabalhadores que chegavam de outros bairros e por muito tempo também ajudou nos embutidos produzidos no açougue. A oma, com seu marido e filhos, antigamente com seus sogros, viviam do abate de bois e porcos para a venda da carne nos mercados da região. A casa e o açougue não se separavam e o trabalho era constante, entre as duas construções passavam as cargas de lenha para o fumeiro e de animais que iriam esperar a morte na mangueira. Existia um grande movimento de pessoas entrando e saindo, comerciantes, empregados, clientes e curiosos para ver o sangue da matança. Mas isto já faz tempo e agora ela não precisa mais pular da cama tão cedo, mesmo assim, as manhãs não duram muito sem de repente ouvirmos seus passinhos em direção ao fogão à lenha.
Durante quase todo o dia a casa permanece em silêncio, as refeições até criam alguma animação passageira na cozinha e os carros mais barulhentos lembram que a estrada passa rente à fachada. Mas na maior parte das horas a casa se volta para o grande jardim, que ocupa um lote inteiro no lado oposto ao açougue, onde até poderia ser construída uma nova casa. Netos e bisnetos agradeciam por isto nunca ter precisado acontecer, o grande jardim que vai da estrada até o barranco do rio sempre fora um lugar de curiosas explorações e brincadeiras. Para as longas tardes que os velhos passam na varandinha nos fundos da casa, o jardim de grama cortada, com uma frondosa jabuticabeira, flamboyants, uma nervosa e espinhenta paineira, sombreiros e um pé de ipê, é o refúgio de olhares gastos, de pensamentos fugidios.
No início da manhã, ao meio-dia e ao anoitecer a oma prepara e esquenta a comida abnegada na sua função, enchendo a mesa com seus potinhos e pães ela parece estar totalmente absorvida em servir. Não é raro também vê-la indo rápido ao armário das louças quando chega uma visita inesperada; por nunca sair de casa, é uma anfitriã em prontidão. Um de seus netos que mora ao lado, na casa depois do jardim, a acompanhava diversas vezes nas refeições. Ele se perguntava, olhando a velhinha nas suas voltas entre o fogão e a mesa, qual seria a ligação dela com aquele trabalho todo. “Deixa oma, não precisa mais trazer nada.” Para ele, nestas horas se misturavam na atitude da velhinha a gentileza e o condicionamento. Geralmente as gentilezas estão ligadas a uma situação de extremo domínio, onde podem ser calculadas e desta forma os gentis estão no auge do controle de suas articulações. Uma gentileza pode estar cheia de preocupações metafísico-religiosas, de uma necessidade de traquejo social não inteiramente livre da demagogia, como os automatismos de polidez adquiridos nos primeiros hábitos, de uma simples bajulação ou então, a mais incrível das explicações, a gentileza como gozo narcíseo. Como o narciso altruísta que afaga seu bondoso coração ao dar espaço para outro carro entrar na fila. Mas as gentilezas da oma são de outra natureza, são atos amorosos que após tantas voltas tornaram-se reflexos amorosos. Quando ela se levanta da mesa pela terceira vez em busca de mais potinhos de comida, ela está reagindo como a dona de casa que quer servir sua família. A oma dá uns risinhos encolhendo os ombros e com passos curtos continua a encher a mesa: “Tá! Tá!”
O passar dos anos cristalizou na mulher uma essência inalterável e esta constância essencial lhe é especialmente marcante. É normal ouvir de seus filhos: “Minha mãe sempre foi desse jeitinho.” Certamente alguns de seus conhecidos mais próximos até se esquecem da sua condição de mulher, sua atitude e pequenos detalhes são tão perenes que ela talvez já seja uma daquelas pessoas transformadas em instituição. Após se casar nunca mais trabalhou fora de casa, exceto no açougue da família. Sua educação se reflete muito nos moldes do século XIX, experimentando como esposa e três filhos as singularidades de uma família patriarcal e, durante toda sua longa vida de casamento, o que significa a maior parte de sua própria existência, ela voltou suas atenções para os entes familiares. Como os outros, que não podem mais enxergá-la como uma unidade autônoma, ela também parece não ter conhecimento de nenhuma vontade exclusivamente sua, com exceção de algumas pequenas vaidades como uns brinquinhos ou um pouco de maquiagem. Assim, tão mergulhada nesta micro-comunidade, um de seus únicos desejos demonstrados é o de ficar em casa.
Para seus muitos descendentes a convivência com a oma é de uma candura dificilmente perturbável, a simplicidade dos modos e das coisas que diz a torna muito querida. O seu jeito reto de interpretar já causou situações divertidas na família. Uma noite quando estavam assistindo o jornal da TV, o jornalista anunciou o lindo gol de bicicleta que seria mostrado no próximo bloco depois dos comerciais. Ninguém se mexeu nessa hora e no final do jornal a oma ainda continuava de olhos atentos na televisão. “Eu não vi nenhuma bicicleta entrando neste jogo!” Ela denunciava a falha do repórter com seu sotaque dos antigos colonos.
Todos os natais a oma prepara diversos envelopes com dinheiro para presentear seus netos e bisnetos. Uma vez, na correria para arrumar tudo em um natal especialmente agitado, quando até o Papai-Noel apareceu, ela acabou escondendo o montinho de envelopes num lugar muito seguro. Seguro até mesmo da sua memória! Quando a perda foi anunciada em desespero, uma verdadeira e desenfreada caça ao tesouro começou por toda a casa. No meio da correria uma das noras avistou o montinho cuidadosamente encaixado debaixo do forno de micro-ondas.
Nas conversas durante as refeições as coisas precisam ser ditas com clareza para poderem ser processadas pelo jeitinho simples da oma, ela não raramente troca as histórias que são contadas com atropelo. Uma vaga concentração acentua sua ingenuidade e o resultado é um entendimento muitas vezes simplório das novidades. Mas isto não é maior que seu entendimento geral sobre as coisas, que de tanta constância está sólido numa coerência de valores invioláveis. Não importando os entremeios, ela quer todos os seus unidos e felizes até o final.
Nesta tarde depois de seu descanso do meio-dia, a oma recolhe algumas camisas e panos pendurados no pequeno varal atrás da casa. Leva a pequena pilha de roupas até o quartinho da frente e começa a passar com rapidez, dando batidinhas com o ferro aquecido, na mesma hora em que a filha sai de carro e o marido dorme no quarto ao lado. Por ele estar doente precisaram mudar sua cama para este cômodo no piso de baixo, o velho homem mal pode subir as escadas e passa a maior parte do dia dormindo ou sentado na varanda.
É um meio de tarde aprazível de outono. A casa possui vários cantos escuros, tapetes, móveis escuros e antigos que a tornam sóbria, quase sombria. Pela porta preta da sala de visita, um pouco pelas janelas da cozinha e por outras frestas indefinidas entram os raios de sol avermelhados e oblíquos. No quarto onde está a oma, bem de frente para a movimentada estrada de asfalto, a luz entra com toda a força, esquentando e abafando o ambiente. Este barulhento quartinho aos poucos fica morno e com um cheiro forte de roupa passada e ali a oma repete os movimentos de dezenas de anos, alinhando as roupas com cuidado, dentro de seus pensamentos.
Quando volta pelo corredor escuro em direção aos fundos da casa, sente nas pernas o arzinho frio vindo da cozinha. Vai recolher o resto da roupa seca e escuta a sinuosa e aguda melodia de um instrumento musical passando pelo jardim. Também se misturam no ar os sons da serra elétrica funcionando no rancho e as rolinhas ululando sobre sua cabeça nos longos galhos do sombreiro. O homem que realiza trabalhos para a casa está serrando a lenha no rancho, ele é um solitário que desaparece de tempos em tempos e volta em busca de pequenos serviços, quase mudo por uma gagueira que arrasa a língua e lhe é intransponível, permanece em estado de embriagada serenidade, convivendo com a possibilidade da indigência. A oma entra na casa carregando nos braços a roupa que vai passar, mas antes ajuda o marido a levantar-se da cama e o acompanha até uma cadeira na varanda. Ela lhe oferece água, falando seu nome com uma voz estralada, acentuando levemente a primeira sílaba. O marido concorda silencioso com a cabeça e vira o copo cheio de uma só vez, depois de saciado estica o braço com o copo vazio e solta o corpo lentamente. Então ela resolve deixar as roupas para passar outra hora e senta ao lado do opa na varandinha atrás da casa, com vista para os fundos, para o pátio, o rancho e o jardim. Enquanto ele já vai cochilando ela se curva na leitura da bíblia sobre os joelhos fininhos e desta maneira eles ficam ali, aguardando o retorno da filha.
A tarde passa com a copa das árvores mais altas alaranjadas pelo sol descendente e bem nesta hora a grama começa a ficar gelada se andamos descalços. Quando o carro finalmente reaparece pelo calçamento atrás da casa, a oma se levanta ligeira e vai esquentar a água. A filha chega falante com alguns papéis e caixas de remédio; ela tem trabalhado bastante pelo velho pai e também quase nunca sai de casa, é o contato com os médicos e com o mundo exterior.
Uma pequena toalha é arrumada até a metade da mesa e a oma coloca os potes de doce e geleias, ajeitando com cuidado a louça para três pessoas tomarem o café. O opa é levado pela mão passo a passo até seu lugar e espera para ser servido, agora os três estão sozinhos na penumbra da copa-cozinha. Algumas perguntas em voz mais alta são feitas ao homem sentado: “Pai! Já tomou o remédio?” “Onde está o remédio?” As duas demoram a se juntarem à mesa. “Pai! Sabe quem morreu ontem? O Willy Becker.” A oma encobre a boca aberta com as duas mãos e olha com atenção para a filha, o velho levanta o olhar profundo e triste por um instante e, num longo suspiro, volta a encarar o tampo da mesa com sua xícara enorme. Eles ficam ali sentados por pouco tempo e conversam apenas algumas frases. A filha elogia o doce da Helga, a velha oma diz que amanhã precisa acabar de passar a roupa.
Depois de lavar a louça vai até o velho rancho de madeira pegar uma enxada. A oma quase sempre usa vestidinhos até os joelhos e chinelos que aparecem os dedos do pé, ela caminha pelo pátio ainda mais arcada e encolhida que de costume, como se fora da casa se sentisse menor do que já era. Entre devaneios sem fim, pensa no velho de sua geração que morrera ontem e calcula aliviada que ele era mais velho do que ela. Passa entre o rancho e o viveiro abandonado segurando a enxada para baixo. O viveiro está cheio de plantas crescendo em liberdade em vasos de plástico e de barro, trepando pelas grades deterioradas ou plantadas no chão, a maior planta é um fícus que fugiu do controle; que copa mais cheia, que esconde poucos ou nenhum ninho e onde se vê de noite os gambás passeando pelos galhos. Mais atrás no jardim, antes de chegar ao barranco do rio, a oma entra pelo portãozinho que se abre para o antigo galinheiro, agora um grande quadrado cheio de mato bem alimentado crescendo sem piedade. Dentro do antigo galinheiro ela consegue ver de um lado a caixa d’água de cinco metros de altura torta como a Torre de Pisa, “se ela cair, o rancho vai junto.” Do outro lado, o alto muro que separa seu terreno da casa do seu filho mais novo, onde agora moram dois de seus nove netos. A velha se entorta um pouco para frente e começa a arrancar o capim com a ferramenta, a terra escura tem algumas pedrinhas que fazem um som forte a cada golpe. Ela trabalha devagar e com movimentos regulares, franzindo um pouco o rosto e após capinar alguns metros aparenta estar alheia ao que acontece fora de sua atividade.
Todo o cenário, que vai do pátio do antigo açougue e sua mangueira abandonada, o rancho velho que serve como garagem e depósito de ferramentas e velharias, a grande casa cheia de vasos bem cuidados, o comprido jardim e o barranco do rio, é onde a oma passa seus dias. Nestes lugares ela preenche seu tempo com pequenas e constantes lidas. Para um observador desatento pode ser difícil notá-la andando pelo quintal, mesmo se ela estiver bem à sua frente, no meio do jardim na coleta de acerolas. A oma já se confunde com seu próprio espaço, seus canteiros, sua casa e suas árvores. Mas, para um observador atento, a velha mulher de dedinhos nodosos é transcendente. Percebê-la andando entre os arbustos e flores é como ver algo importante no último instante, um pouco antes de desaparecer. É um privilégio! Escutar as pancadinhas de sua enxada no outro lado do muro é uma alegre surpresa, é como um pensamento inesgotável, porém suave e sem enfeites, “a oma agora está capinando...”
Antes de escurecer completamente a oma já tem os trabalhos para a janta bem adiantados. O dia termina com a última novela, às vezes até mais cedo e as conversas com a filha são breves e funcionais, as portas são fechadas e os pássaros do jardim e do telhado se aquietam. Se passar alguém andando muito devagar pela estrada o cachorro vai latir e arrastar a corrente pelo calçamento do pátio. Em algumas noites se podem ouvir miados lamentosos por toda vizinhança e outros cachorros ou ainda algum silvo arrepiante vindo de longe pelos lados do barranco do rio. Quem espera na sala ou fica parado no corredor escuta seu próprio coração batendo e a casa não reage mais. As lâmpadas são fracas e os cantos se enchem de esconderijos fazendo esquecer as formas que poucas horas antes eram iluminadas, o tique-taque seco do relógio de parede deixa o silêncio ainda mais evidente. Também existe um outro grande relógio de estimação pendurado que não funciona há incontáveis anos e olhar para aquela caixa de madeira escura com os ponteiros parados causa um estranho desconforto. O fogão à lenha está esfriando, mas na cozinha ainda dura um pouco do cheiro de fumaça; quando crianças, netos e bisnetos tinham medo da casa nesta hora, parecia que o ar nos pés ficava cada vez mais gelado obrigando todos a irem para seus quartos, quase dava para ver os fantasmas - a casa estava transformada.
A oma se prepara para deitar, satisfazendo as últimas exigências de sua rotina, anda para o quarto iluminado no fim do corredor e ainda escuta a filha fechando as janelas lá em cima. Logo vem pronta do banheiro com os cabelos soltos e de camisola. O marido já dorme profundamente quando ela se ajeita no travesseiro e estica o braço para apagar a luz.

Com amor para Irma Wiese Gaertner





Leandro Gaertner
Blumenau e Gaspar, Fevereiro de 2006 e Janeiro de 2007.


Imagem: Manhã com névoa (Alfred Sisley 1874)

PS. No dia em que resolvi ler este texto para Oma, anos depois de ter escrito, ela disse que quase tinha perdido meu pai na hora do parto, disse que ele tinha nascido muito roxo. Ela suspirou e disse “Ainda bem que não perdi...” Se ela já tem essa sensação de alívio, imagina eu.


Um comentário:

Celine BG disse...

singela e doce como a oma é... conseguisse captar o brilho de uma pessoa quase invisível no seu meio...temos mesmo que agradecer que o roxinho sobreviveu...