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sábado, 11 de abril de 2009

DIÁRIO - GALOS NA CABEÇA

A primeira coisa que pensei ao acordar naquele dia foi no estranho zumbido em meu ouvido esquerdo. Lembrava que tinha ido dormir ainda com uma sensação de gripe, com o corpo dolorido e a cabeça comprimida, esperando me levantar melhor. De fato me sentia bem, mas com um agudo e ininterrupto apito no ouvido esquerdo, bem audível nas primeiras horas da manhã no pequeno hotel em frente à rodoviária. Ao ligar o chuveiro vi que os sons estavam realmente estranhos, o barulho da água estava de alguma forma misturado, como os sons de conversa que ecoavam pelo corredor do hotel e ricocheteavam em minha cabeça como ecos.
Quando saí para a rua pude perceber a qual ponto estava minha percepção, não conseguia identificar com precisão qual a exata direção dos sons que me chegavam. Notei que os agudos estavam mais alterados quando passei por um grupo de pessoas e as vozes das mulheres se deformaram enquanto as dos homens ficaram mais estáveis, apesar de também apresentarem certo grau de estranheza. Continuei andando pela calçada do mercado público ao lado do hotel, muito atento à infinidade de sons que uma movimentada cidade possui e nesta hora já não estava mais ouvindo o apito agudo, só um grande emaranhado de sons que, apesar de parecerem bem contornados, tinham um momento impreciso que lembrava um empilhamento de ecos. Fiquei impressionado com o fenômeno e o atribui ao mal estar e ao princípio de febre que tivera dois dias antes, talvez por causa de uma incomodação, imaginando neste instante o lado esquerdo da minha cabeça todo entupido. Ao assobiar uma notinha aguda fiquei ainda mais surpreso, pois mesmo estando certo de emitir apenas um som de cada vez no meu assobio, eu estava ouvindo dois sons de alturas distintas ao mesmo tempo. Fiquei impressionado ao produzir um dueto que só poderia ser ouvido na minha cabeça! O ouvido direito tocava o som real que eu assobiava enquanto o esquerdo um outro som mais grave e ainda, quanto mais agudo o assobio mais nítida ficava esta nota grave ouvida no lado esquerdo entupido. Caminhei alguns metros percebendo esta audição dupla como um estéreo de aparelhos diferentes e estranhando muito os sons agudos vindos de longe.
A coisa ficou séria quando um galo no mercado público começou a cantar e tive dúvidas da sua exata localização, mesmo vendo ele todo empertigado cinco metros a minha frente; na verdade também tive dúvidas se era aquele galo que cantava ou ainda, se vários galos cantavam ao meu redor. Até cheguei a pensar que um galo poderia emitir um canto onipresente que me encobria por inteiro, com o som ribombando na minha cabeça já em diversas alturas, intensidades e velocidades, vindas de todos os lados e de cima, e era isso que me pareceu naquele momento a coisa mais aceitável! Passei pelo galo olhando de lado e sugando restinho do chocolate em caixinha que gosto de beber como desjejum, o assobio continuava lá com duas alturas diferentes, uma em cada lado da cabeça.
Ao passar a pé por trechos mais silenciosos da cidade comecei a estudar o que estava acontecendo, assobiando e prestando atenção nos sons que se formavam. Após algumas tentativas me pareceu que ouvia no lado esquerdo algo como uma “sétima menor” abaixo do som do lado direito, formando um intervalo harmônico. Para quem não souber do que se trata um intervalo harmônico sonoro de sétima menor basta ir até um piano e pressionar a tecla Si bemol simultaneamente com a primeira tecla Dó à esquerda; mais ou menos este feito se produzia em mim quando assobiava. Será por que afinal a gripe foi gerar esta dissonância e não um outro intervalo qualquer? Já estava rindo e imaginando uma modinha caipira em terças paralelas sendo desenhada só na minha mente.
Mais adiante um carro usado como propaganda de um candidato passou tocando um daqueles típicos jingles e me assustou de vez. A música que ouvia não fazia o menor sentido, parecia ter sido gravada por instrumentos completamente desafinados, ou falando mais tecnicamente, parecia que cada instrumento e cantor do jingle estavam numa tonalidade diferente, para algum músico aquilo talvez fizesse algum sentido se pensasse em politonalidade. Ouvir música pela primeira vez nessas condições me desesperou! Como ficaria o meu futuro como músico, ainda como tocador de um instrumento tão agudo como a flauta? Na mesma hora já pensei em estudar trompa. Ainda bem que estava no mestrado e gostando de algumas elucubrações teóricas... Mas não poder mais tocar ou ouvir música decentemente?! Eu bem poderia compor algo totalmente estranho aos ouvidos normais, como um novo sistema musical baseado em sétimas menores, mas que soasse tradicional e confortável para mim. A certeza de que esse novo sistema fosse coerente dependeria exclusivamente do seu resultado “normal” para a minha percepção. Se para mim soasse tradicional e reconhecível, o novo sistema teria alguma validade; mesmo soando desconexo para os antigos ouvintes ele ainda teria uma construção fundamentada e esta seria a sua importância.
Resolvi ir ao cinema do shopping (como se existissem muitas opções) e um pouco antes de entrar aconteceu novamente o mesmo efeito do galo, só que agora com uma criança aos gritos, o que quase me obrigou a proteger os ouvidos com as mãos e a sair correndo. Fui ver um excelente filme de ação americano e mais uma vez minha audição me surpreendeu, desta vez com o teminha romântico do casal principal, em andamento lento e lânguido tocado ao piano. O divertido foi ver um filme de investigação tipicamente de Hollywood (Slevin), com muita violência, cenas rápidas e final feliz com um tema musical central igual ao daqueles filmes alternativos do cinema europeu, onde a trilha parece estar rodando num disco de baixa rotação ou está danificada pelo tempo, criando uma variação instável das alturas, uma ambiência de filme antigo. Engraçado uma superprodução com Bruce Willis com trilha de filme B. Depois da sessão foi até um alívio voltar para a rua a caminho do campus do meu curso.
Um pouco antes de entrar numa sala de aula com piano já tinha notado que o intervalo entre os ouvidos não era mais o mesmo, ou pelo menos foi essa minha impressão, parecia ser agora uma oitava justa. Ao teclar o piano vi que tudo ainda soava embaralhado e que antes de iniciar a aula teria duas horas para tomar café, terminar a análise do “Der Dandy” do Pierrot Lunaire e ter minha orientação para a dissertação. Durante a conversa de mais de uma hora com minha professora nem mesmo tive tempo ou oportunidade de lhe contar sobre minha alteração auditiva, nem mesmo percebi quando ou como exatamente os dois ouvidos parecem ter se equalizado. A conversa foi tão intensa e decisiva que esqueci dos galos, da sétima menor ou oitava justa e, finalmente, vislumbrei meu objeto de pesquisa boiando no referencial teórico.
O dia seguinte ainda restava um pequeno e agudíssimo apito no lado esquerdo e em tudo ainda restava uma tonta confusão, apesar de não ter mais o intervalo entre os ouvidos. Como comemoração à quase volta da normalidade e com muita vontade de tocar, sentei num banco da praça que mais gosto e toquei.

Leandro Gaertner - Gaspar, Setembro de 2006.

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