Pesquisar este blog

domingo, 27 de maio de 2012

{orfeu21}


 Luca Martins
Pouco mais de duas semanas após as récitas do musical Orfeu21, estreado no grande palco giratório do Teatro Carlos Gomes em Blumenau, reviro minhas memórias e aquela impressão de satisfação ainda ecoa e ecoará. Como público que fui, queria agradecer e parabenizar a todos envolvidos, desde a elaboração do projeto, aos criadores, aos inventores, aos atores, aos administradores, aos cantores, aos dançarinos, aos figurinistas, aos figurantes, aos solistas, aos instrumentistas, aos secretários, aos zeladores, aos professores, aos produtores, aos voluntários e anônimos, aos diretores, aos iluminadores, aos patrocinadores, a todos artistas, porque todos nessa hora se tornaram artistas!

Cinco récitas lotadas no grande auditório do Carlos Gomes? Gente voltando pra casa sem ingresso? Como fico feliz com isso!!!! Não precisamos de prova maior da sede que as pessoas têm de novas histórias e estórias. Precisamos de criação artística. Orfeu21, uma velha história recontada e absorvida por nossos inventores conterrâneos e contemporâneos, o texto de Gregory Haertel, a música de André de Souza, direção coreográfica de Beatriz Niemeyer, direção geral de Pépe Sedrez, o Orfeu de Fábio Hostert, a Eurídice de Luca Martins... a “palavra dos criadores” escrita no programa foi muito mais do que cumprida: o espetáculo foi acessível, foi direto e foi atual, foi trágico como é trágica a vida em todas as épocas e em todos os lugares, e nossa época foi habilmente desmaqueada no palco por estes artistas.  Senti muitos afetos, um lencinho foi pouco, mas também de emoção feliz por ver um texto tão urgente e necessário sendo falado, dançado, cantado, tocado e gritado na sala de visitas do Vale do Itajaí! Coisa raríssima no mar de “eventos culturais” patrocinados com dinheiro da população deste país.

Senti a ironia do casamento de véu e grinalda que convida o público a observar num palco suas próprias práticas, pra mim este foi o primeiro impacto: “não, isso não é um teatro, isso eu também já vivi!” Orfeu, transfigurado no personagem Rogério, um típico e midiático astro do rock de nosso tempo e Eurídice que aparece na doce bailarina Alice, que me levaram a mil giros no cenário, mil sorrisos ao me ver capturado, vidrado no roteiro.

As questões expressas em Orfeu21 são das mais urgentes atualidades. A despeito das revoluções e revoluções dos séculos e décadas passadas, ainda continuamos a sustentar uma hierarquização do poder econômico, até mesmo confirmando em sinal verde a manutenção de uma classe de eleitos a dormir no luxo e a acordar no privilégio, com tantos ganhos financeiros que seria mesmo impossível ter tempo para ser útil à sociedade, como deveriam.

Fábio Hostert
Orfeu21 traz ao palco uma passeata de reajuste salarial, onde a bailarina Alice acaba por ser vítima de uma bala de revólver... A cena é desenhada com a dura realidade de um policial empunhando sua arma, na dura tarefa de pouco pensar, mas sim de cumprir ordens e dominar seu deserto de estranhos... Acho que os artistas de Orfeu21 trouxeram esta questão escancarada no alto do camarote.

O cenário mais que apropriado ao trono de Hades é o “pronto socorro” do hospital público e é bem ali que o público do Teatro Carlos Gomes daquele sábado pareceu se dividir, e não sabia mais se ria ou se chorava. Na cena do trio de cantoras deitadas no leito hospitalar, a música era ironicamente jocosa e parecia embalar momentos de bom humor, porém a letra só denunciava a tão hedionda situação que ainda é imposta aos doentes que não fazem parte do clubinho dos bons salários. A música era engraçada, o texto rimado, mas o grito, quase um sprechgesang, vinha de um peito apertado pelo câncer. Durante este trio uns riam, outros não.

Logo vejo o astro de rock Rogério, entre sua dor da eutanásia cercado pelos paparazzi, e mais uma vez nos estarrece nossa contemporaneidade fetichista ao absurdo, que consome, que consome, que consome e come e devora tudo com um apetite tão cruel quanto o apetite de Cérbero, até a morte. O cão de três cabeças é também o próprio sistema de saúde inventado na nossa época, que te dá o tapinha e o tiro pelas costas. A história de Orfeu se reconta todos os dias...

Queria mais uma vez cumprimentar e agradecer aos artistas que criaram e tornaram possível o musical Orfeu21 em Blumenau. Acredito que esta obra de arte precisa ser apresentada em mais lugares, com vários elencos e para vários públicos, pois sua mensagem é urgente e nossa sociedade, nossas sociedades, nossas ruas, nossas casas, nossos pensamentos, nossas palavras, nosso olhar, nosso tempo e nossa fala precisam da arte sensível que denuncie a crueldade.
~ ~ ~ ~ ~



Leandro Gaertner
Curitiba, maio de 2012. 

Nenhum comentário: