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terça-feira, 5 de agosto de 2008

---------- A NOITE ----------


Ao sair muito rápido da avenida principal e entrar numa rua menor com paralelepípedos dirigindo um pequeno carro, o músico percebe que a lua está cheia, confere o seu caminho e olha de novo para cima, repara vagamente na silhueta de alguns telhados, nas nuvens indefinidas e nos galhos mais altos das árvores que se alongam encurvados e finos em pequenos movimentos. O carro rápido acompanhado do borbulhante barulho dos pneus sobre o calçamento de pedras passa tão veloz e com um trajeto tão certo que quase não dá para notar o contorno das casas, as sombras, a vegetação escura e os cantos não iluminados. Estes detalhes são fugazes e o músico não consegue ir além da observação, não pode estacar num olhar mais particular em busca daquele prazer incompreensível e nostálgico, que às vezes pode até ser um pouco aborrecido; logo nem pensa mais na noite e seus folgados pensamentos anteriores tornam-se incompletos, precisa se ocupar dos cruzamentos do trânsito. Então ele continua a ponderar com agradável liberdade que, no meio de uma cidade, a noite só pode observar e, ele mesmo, não pode mais que observá-la, existindo um corte preciso entre eles.
Para ele existe a possibilidade da noite e de todas as suas coisas secretas deixarem a simples condição de observadas, como se fosse um cenário, para tornarem-se determinantes nos fatos. Nesta seqüência de fantasias, a noite só deixa sua condição de observada quando o observador a percebe e sente medo; nessas horas o observador percebe-se dentro da noite e é envolvido! O músico só pôde ter estes aforismos enquanto dirigia porque já havia experimentado o medo, aquele medo que é o “único aviso” capaz de tornar a noite perceptível, nas idas solitárias à casinha de madeira do sítio. Neste lugar não há saída, quando escurece e as horas passam é fácil notar-se dentro da noite com toda a intensidade. A casa está incrustada no fundo de uma estreita várzea e cercada de altíssimos paredões de mato, é uma fenda que parece ser o núcleo, o próprio centro gravitacional da noite. Quando ela chega é melhor nem abrir a porta e sim ficar dentro com a companhia do fogo, da flauta, do vinho e de outras coisas iluminadas e aquecidas no interior daquela casinha de cem anos. Na casinha do sítio, longe da cidade e dos vizinhos, somente com os sons vindos do riacho, do vento e da mata, o músico percebe a noite completa por causa do medo. Quantas vezes já ficara paralisado enquanto estava quase dormindo, deitado a espera do fim de alguma coisa que arranhava a parede pelo lado de fora. Era um instante que o coração parava e a casa inteira tremia até ele lembrar-se que o gado estava solto e fazer uma citação cheia de alívio de seu pai “o boi é um bicho curioso...”. Ou quando, concentrado na sua mastigação durante o jantar, era surpreendido por uma avalanche de galhos quebrados descendo do morro. A escuridão insondável que cerca a casa com seus infinitos eventos sonoros lhe assusta, mantêm os sentidos em alerta e jamais o deixa esquecer que está no meio e completamente à mercê dos sustos da noite. É difícil dizer se existe um lugar mais amado neste mundo.
Ao fazer o trajeto entre a casinha do sítio e o vizinho, distante uns quinhentos metros por uma estreita estrada de capim roçado, o músico vibra num temor eufórico nos primeiros passos, certamente os exatos dez segundos ensinados pelo seu avô para fechar os olhos e acostumar-se com a escuridão, alguns instantes antes de controlar-se e começar a assobiar. Quando fica quieto e caminha cadenciadamente atento onde está, a noite torna-se densa e a sua textura palpável. A pele é atingida por baforadas de ar quente e logo em seguida gelada por um ar frio que parece ter sido mandado direto no rosto. Ele pára um pouco para saber de qual direção vem esta corrente fria, de onde vem este calor tão confortável, será que existe algo respirando bem na sua nuca? Enquanto caminha na escuridão, guiando-se por um traço tênue na estradinha, rodopia nessas imagens informes e instáveis, às vezes sendo tudo rasgado de repente por um gemido agudo vindo de algum lugar do mato sobre sua cabeça. Este percurso é completamente diferente nas noites de lua cheia. Nestas noites mais claras, a passagem pela estrada fica mais fácil e o próprio ar mais leve, a noite recua para as encostas do morro e observa o caminhante passando reto em direção à luzinha depois da curva. Quando não tem lua o caminho precisa ser aberto à força!
O músico viu a noite incompleta enquanto dirigia na cidade, pois apenas podia observá-la, mas os estranhos ruídos vindos da escuridão do lado de fora da casa do sítio fazem com que a noite possa ser imaginada. A imaginação é a chave desta representação, é ela que transforma as sombras em seres desconhecidos e fantásticos, os sons da noite em avisos. A imaginação nos encurrala na claridade, nos faz espreitar pelo cantinho da janela, é ela que faz o músico voltar para junto do fogão e tocar mais um prelúdio de Bach. A verdadeira noite traz irremediavelmente pensamentos sérios por causa do silêncio das coisas conhecidas, o provocador da expectativa. Esta expectativa provocada é ansiosa, é o puro medo, mas não o medo de violências humanas ou de simplórias sobrenaturalidades, é um medo mais indizível, do irreal e do invisível, o medo impelido pela imaginação, que quase nos faz sair andando noite adentro ao encontro das criaturas mitológicas; será que é assim que elas se criam? Então, este ciclo de contornos impressionistas fecha-se quando ocorre o silêncio, a expectativa e a transfiguração da noite através da imaginação. Para o músico, neste lugar sua flauta pode tornar-se fantástica ao ecoar e misturar-se pelas pedras, raízes e árvores da mata escura, onde se escondem e brincam as criaturas impossíveis.
Nas cidades conhecidas ou nas estranhas em qualquer país, a noite é a mesma e sua essência extraordinária permanece constante e inflexível. Para os caminhantes atentos ao que acontece nos grandes e velhos jardins, ao muro arruinado coberto de hera ou nas partes mais desviadas dos parques, a noite continua instigando a imaginação, provocando a beleza dos contrários ao sustentar no ar os arrepios do temor e da curiosidade, o desejo de ficar horas ali como espectador. O músico dentro de seu carro atravessa a noite com estes pensamentos, aguardando o momento de reencontrar com mais calma alguns destes segredos tão fabulosos.

(Escrito em: Gaspar, Julho de 2006 e Janeiro de 2007)

Imagem: Caçador na Floresta (Caspar David Friedrich)


Leando Gaertner

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