Dia 53
Escrito na Floresta de Sherwood
Agora estou deixando Manchester com uma ótima impressão da cidade. Afinal tive uma perfeita e silenciosa noite de sono! O albergue está super vazio, pois é segunda-feira normal, estou matando aula. Não entendo minha forma de avaliação pra uma cidade, mas de Manchester eu gostei. É uma Curitiba sem aquela favelança do subúrbio, não é limpinha mas também não é suja. O centro é Curitiba de corpo e alma. Estou a caminho de Nottingham, no centro do país, dizendo tchau pra minha primeira sessão de cinema na Inglaterra.
Cheguei em Nottingham para o almoço às 12:00 horas. Depois fui até o centro municipal de informações para saber como ir até a Floresta de Sherwood. A moça do balcão explicou e fui conferir o que restou do Castelo de Nottingham com a estátua de Robin Hood. Já tinha resolvido pegar o busão das 14:00 horas. Tudo resolvido... Dei aquele passeio no castelo, nos jardins, tirei fotos, falei com dois senhores que era do Brasil – a mesma coisa de todos finais de semana... + ou – 13:30 voltei para a região do Centro Vitória onde sabia ser o ponto. Procurei, procurei, não achei nada! Voltei para as informações puteado, mas falei normalmente com o recepcionista. O indiano deu-me outro mapa e agora entendi. Foi cagada minha não encontrar a estação certa do ônibus 33 para uma linha que passa perto da Floresta de Sherwood. Achando a estação correta peguei o ônibus correto às 15:35. Queria voltar logo para pegar o trem das 19 horas...
(Depois eu continuo pois já está muito escuro, preciso tentar dormir!!!)
Resolvi continuar ainda hoje pois este momento é único!!!
A floresta é mágica, impossivelmente penetrante, cativante, a sensação de estar aqui, deste jeito como estou é nova, original, natural, completa.
Total!!!
A escuridão vai tomando conta e é difícil enxergar, mas faço pela importância desta noite para minha recordação futura... Tenho um pouco de receio pela noite que cai sobre as folhas. Espero não chover, é tudo fantasticamente excitante. Minhas mãos cheiram a barro e grama, estou sujo, minha roupa muito. Deitado no desconforto estou mais confortável como nunca estive. Olho para cima, o carvalho antigo está imóvel com os finos galhos balançando ao vento. Sinto algumas gotas caindo do céu cinza querendo escurecer... Estou feliz por poder estar aqui, feliz por viver com saúde e poder fazer o que estou fazendo!!!
Nunca mais esquecer este instante que gostaria compartilhar com a família. Sinto-me quase completo, é incrível, inexplicável...
Eu amo viver !!!!!!
AMANHECEU
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Comecei a andar mato adentro. Esta florestas na Inglaterra não podem ser chamadas de mato pois são bem abertas, árvores grandes (carvalhos) e distantes. O solo é coberto por uma espécie de gramínea com várias espécies de plantas pequenas como a samambaia. Andando entre as árvores, resolvi escalar um carvalho. Tentei no primeiro que pareceu fácil, mas não consegui. Atravessei uma clareira, escolhi outro carvalho e consegui chegar ao topo. Ele é meio inclinado facilitando o meu desejo. Queria tirar uma foto do alto da árvore, mas chegando no topo com muito sufoco, vejo que os galhos tampam a vista, não é o carvalho ideal. Além de ter acabado o filme de 24 poses e não 36, como pensava. Minutos antes de começar meu passeio fora do rumo, quando já ia saindo do parque , vi um círculo de pinheiros grandes, densos e escuros, formando uma perfeita cabana no centro. Me passou pela cabeça pela primeira vez a possibilidade de dormir na floresta... Ri, mas achei sério e possível.
No alto do carvalho, sentindo toda aquela adrenalina pensei mais sério ainda sobre dormir no mato. Por quê não? Por quê não? Desci da árvore e continuei refletindo sobre a possibilidade. Via só três aspectos negativos: “aula amanhã, sem fotos, não poderia mais enganar o cobrador com a data do passe de trem”. Fiquei uns 15 minutos no pé da árvore tentando bolar saídas para ainda conseguir falsificar o Brit Rail. Muito bandido! A pergunta ainda ficou no ar e voltei pensativo e sorridente para a vila Edwinstowe. Como achava que o filme era de 36 poses, nem olhei e, quando a câmera pifou no alto do carvalho, pensei que era problema da pilha. Fui até um bazar, troquei as pilhas, que realmente estavam fraquejando, descobri que o maior grilo era com o filme e troquei. Perfeito! Segundo problema resolvido. O primeiro, o da aula, nem levei em consideração... Sem perceber eu torcia para não encontrar motivos para ir embora. Tudo me veio à mente, inclusive voltar semana que vem, especialmente para dormir na floresta. Logo descartei pois não seria a mesma coisa, não seria natural! Voltei para o ponto de ônibus, tinha comprado uma passagem com returno. Precisava daquela viagem de 45 minutos para pensar mais. O cérebro esta a mil!!! Aos poucos as chances de dormir ao relento pela primeira vez foram aumentando... Comecei a seguir outra linha de pensamento após resolver o terceiro problema. Em relação aos passes de trem, que me deixou um tanto apreensivo, descartei: “Eu não vou perder dinheiro, só não vou ganhar!”
Levando em conta o lado bom, me achei imbecil de ter vacilado fazer algo tão único por dinheiro ilegal, ainda por cima. Estava decidido!!! Passar a noite do dia 3 de junho para o dia 4 de junho, a céu aberto, na Floresta de Sherwood!!! Uma decisão muito maluca, que saiu não sei de onde, mas importante pelo puro e simples ato do pensar e fazer, deixando acontecer. Em Nottingham comprei meu jantar no McDonalds, fiz tudo rápido para pegar o próximo ônibus. Quando o motorista me viu de novo até ficou pasmo... É o melhor motorista que já conheci, muito legal e assobia todo o percurso. No caminho de volta para Edwinstowe, como já claramente iria dormir no mato, fui pensando como dizer pra mãe no telefone na quarta-feira. Só rindo... Desci do ônibus e comecei a caminhar rumo à aventura. Estava me sentindo tão bem andando pela estrada rumo à floresta que é impossível por nesta agenda todo complexo sentimento. Precisaria de páginas, muitas páginas para tentar pôr no papel o que pensava naquele momento.
Chegando, no estacionamento ainda tinha alguns carros, apesar de ser 20:30, algumas poucas pessoas passeavam. Ainda na entrada fiz uma cópia à mão muito rudimentar do mapa do parque onde os turistas tem acesso. Estava pronto para fazer a parte mais legal: procurar um bom lugar para se aconchegar. Andei um tempinho pelos rumos, sempre completando o mapa que fiz na agenda. Parei num ponto que pareceu bom, pulei a cerca e entrei no verde. Nem procurei muito e já achei o lugar ideal. Um lugar limpo, sem samambaias, apenas um capim macio. Para dar mais emoção decidi que iria dormir no pé de um velho carvalho. Como solo é bastante humoso poderia ter arrancado muitas pequenas árvores para me camuflar melhor. Não o fiz, estou num parque ecológico. Escondi minha chamativa mochila debaixo de uns arbustos, catei algumas folhas e fiz minha cama. Exatamente 21:40 estava pronto para dormir, até escovei os dentes com o gelo derretido no copo de coca-cola do McDonalds.
O lugar que escolhi é + ou – distante do rumo usado pelos turistas, fica no meio do espaço que existe entre estes caminhos. No mapa no final da agenda, talvez a visualização seja melhor...
Comecei a escrever ainda noite, tive que parar às 10:20 pela escuridão. Não total pois a lua está cheia. Animal!! Que momento, que lugar... Deitei já com a gota do orvalho pingando de leve das árvores. Abri o guarda-chuva e coloquei sobre as pernas. O corpo estava bem protegido com a jaqueta e o capuz. Tentei dormir! Não deu! Já esperava por isso mas ignorei. O frio apertou, levantei, peguei minha mochila e usei ela para tampar um quinto das minhas pernas! Sabia que dormir em si, seria a pior parte. Ao ar livre na Inglaterra não é muito aconselhável. Dormi mal mas realizado... Ou melhor só cochilei, para dormir precisaria de um cobertor.
Agora estou na raiz do meu carvalho, querendo deixar a floresta e voltar para a civilização. O nascer do sol está sendo lindo, acompanhado por esquilos e até uma grande e ligeira lebre. Sem contar com a passarinhada que começou logo no primeiro clarão, às 3:30. Tudo isso, mais a realidade fora do papel, cheiro frio, emoção, gerando uma infinita satisfação...
Estou deixando a floresta de Sherwood, uma decisão simples, prática, unida a muita vontade de fazer. Nunca mais poderei esquecer tudo que aconteceu nesta autêntica Grãventura!
ADEUS PRA
f l o r e s t a ! ! !
Escrito no trem e em Brighton
Consegui mudar totalmente minha rotina. Minha viagem fez por merecer o nome de batismo. Fiz a diferença entre eu e os outros turistas! Poderia ter perfeitamente ido pra casa, planejado melhor com cobertor, comida, etc. Mas jamais seria a mesma coisa, assim de supetão é melhor, tudo acontece por acontecer acontecendo. É tudo muito doido!!!
Quando no ônibus ontem, a caminho da noite na floresta, tinha receio, mas conseguia saber porquê. Hoje sei que estava com medo de mudar o planejado, mesmo sabendo que seria uma experiência inesquecível... Simplesmente não pensei mais em coisas ruins, sempre procurando enxergar o lado bom. A decisão de fazer foi imediata e fulminante. A condição de pensar n o realizar ou não realizar foi rápida, uma hora e meia, a consciência de ter medo ou não durará sempre durante toda a vida. O detalhe desta vez foi o de escolher a coragem, uma coisa pequena que poderá servir como exemplo para meu futuro. Quando tiver uma oportunidade única, diferente, lembrarei da minha indecisão de ontem e optarei pela confiança! – Nunca pensei que teria uma segunda-feira tão legal!!!
Nesses últimos dois dias meu diário está numa divertida confusão... Quando “acordei” hoje na floresta com os pássaros, escrevi muito, aproveitando o embalo da situação. Tive bastante tempo para pensar pois ainda era muito cedo 4:30 AM, tudo fechado. Fiquei lá sentado junto à árvore, sentindo cada segundo com o mistério, lenda, magia e esquilos. Num desses instantes escutei um barulho no mato, olhei pra trás e vi um coelho gigante sair da moita. Meu primeiro reflexo disse ser um bambi, depois caí na real e me conformei com uma lebre papa-léguas.
A floresta inteira ainda estava um pouco úmida pela noite, eu, úmido e gelado. Numa próxima vez um cobertor será bem–vindo. Valeu cada milésimo de segundo, cada respiração naquele ar puro será importante pela decisão... Creio que muitos frutos nascerão partindo destes pensamentos, novas opiniões surgirão, tenho certeza que serão legais como foi minha primeira noite ao relento. Estreando melhor, só duas vezes: “Debaixo dos galhos de um antigo carvalho na lendária Floresta de Sherwood!!!”
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Durante todo este tempo estou escrevendo no trem, treme bastante e é neguinho com celular pra todo lado... Chegando em Londres fui direto pro metrô, destino estação Victória, mais próxima da rodoviária. Peguei o busão das 14:30 para Brighton. O calor em Londres está animal, cheguei a suar no ônibus. Durante a viagem “dormi” bastante, como no trem. Estou bem mas com sono, tenho disposição mas quero dormir... Coisas de Sherwood.
Quando contei para Mrs. Hallifax minha aventura ela quase teve um ataque de tanto que gostou, não parava de repetir elogios, colocando muitos lados positivos no feito, toda hora retomava o assunto floresta!!! No livrão ilustrado da Mrs. Hallifax tem uma foto do amanhecer na floresta de Sherwood. A foto tem aquele solzinho penetrando devagar nos carvalhos com um pouco de neblina, vendo aquilo senti um aperto no coração pois não sei quando verei aquilo de novo! Toquei flauta, senti o conforto da casa, mas meu coração agora é feito de Lendas e Aventuras !
Junho de 1996
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